sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

A rebelião dos 'coletes amarelos' na França

Foto: AFP
Por Nuno Ramos de Almeida, no site Correio da Cidadania:

Se­gundo as es­ta­tís­ticas do Mi­nis­tério do In­te­rior francês, di­vul­gadas no mo­mento em que está convocada para o pró­ximo sá­bado uma quarta mo­bi­li­zação dos co­letes ama­relos, 136 mil pes­soas mani­fes­taram-se no dia 1 de de­zembro, 166 mil em 24 de no­vembro e 282 mil em 17 de no­vembro.

Mais de 682 pes­soas foram in­ter­pe­ladas pela po­lícia, 630 co­lo­cadas sob de­tenção. Pelo menos 281 pes­soas fi­caram fe­ridas, entre as quais 81 po­li­ciais.

Dis­si­padas as nu­vens de gás la­cri­mo­gêneo, urge fazer uma per­gunta: quem são os co­letes ama­relos? O fi­ló­sofo francês Jean-Luc Mi­chéa iro­ni­zava, ci­tando um autor, que são de­ma­siado po­bres para interessar à di­reita e de­ma­siado brancos para serem apoi­ados pela es­querda.

Apa­ren­te­mente, per­tencem a uma parte da França a quem o sa­lário não chega ao fim do mês. Pertencem a uma parte do país in­vi­sível e es­pa­ci­al­mente se­pa­rada das zonas mais ricas, o centro das grandes ci­dades ha­bi­tadas pelos ven­ce­dores do pro­cesso de glo­ba­li­zação e fi­nan­cei­ri­zação ne­o­li­beral que co­meçou nos anos 80.

Nesses lo­cais vivem mais de 60% dos fran­ceses, uma “França pe­ri­fé­rica”, nas pa­la­vras do geó­grafo Ch­ris­tophe Guilluy. Talvez por isso, as son­da­gens in­di­quem que mais de 70% dos fran­ceses concordam com as ra­zões do mo­vi­mento dos co­letes ama­relos.

Mar­garet That­cher ga­rantia, em 31 de ou­tubro de 1987, à re­vista “Woman’s Own”: “There is no society”, não havia so­ci­e­dade, mas apenas pes­soas in­di­vi­duais. Con­su­mi­dores gui­ados pela maximização da sa­tis­fação e a quem o seu egoísmo le­varia o mundo a pro­gredir.

Três dé­cadas de­pois destas pa­la­vras, a des­truição do Es­tado So­cial e dos me­ca­nismos que configuravam a pos­si­bi­li­dade de uma as­censão so­cial, como o en­sino e a saúde, e a eli­mi­nação sis­te­má­tica dos di­reitos so­ciais, em prol de su­postos di­reitos in­di­vi­duais, dei­xaram um lastro de des­truição, ato­mi­zação das pes­soas, e ter­ra­pla­nagem dos sin­di­catos e par­tidos do mo­vi­mento ope­rário que cor­po­ri­zavam e davam voz a muitos se­tores da po­pu­lação.

O caos que vi­vemos hoje nas ruas de Paris, a ex­pandir-se para todo o mundo, é her­deiro deste pro­cesso po­lí­tico que des­truiu as po­lí­ticas key­ne­si­anas que ti­nham ga­ran­tido uma re­par­tição mais equi­ta­tiva do ren­di­mento, nos 30 anos de ouro do pós-guerra, e um con­trato so­cial que in­te­grava sec­tores im­por­tantes das classes po­pu­lares. Esse con­senso so­cial – numa al­tura em que havia uma con­cor­rência entre o Oci­dente e o bloco so­ci­a­lista – era uma forma de evitar crises, rup­turas e re­vo­lu­ções. O fim da União So­vié­tica sig­ni­ficou em grande parte o fim da ne­ces­si­dade pre­mente de as elites ca­pi­ta­listas pa­garem a paz so­cial.

“There is no al­ter­na­tive”, re­zava That­cher, na sua época, na­quilo que fi­caria co­nhe­cido como TINA. “Il n’y a pas d’al­ter­na­tive”, ga­rantia, ufa­nista, Ma­cron, em 2014. Cortes so­ciais, pri­va­ti­za­ções e fle­xi­bi­li­zação das normas la­bo­rais tor­naram-se pa­na­ceias uni­ver­sais. A si­tu­ação atual não é fruto da falha da glo­ba­li­zação, mas do seu su­cesso, ga­rante, no Guar­dian, o geó­grafo Ch­ris­tophe Guilluy: “Em dé­cadas re­centes, na eco­nomia fran­cesa, eu­ro­peia e dos EUA, con­ti­nuou a crescer a ri­queza para be­ne­fício dos mais ricos. O pro­blema é que ao mesmo tempo o de­sem­prego, a in­se­gu­rança e a po­breza também cres­ceram”.

Nesse sen­tido, o pre­si­dente francês, fa­zendo-se arauto de uma mo­der­ni­dade que per­mite cortar os im­postos aos mais ricos, aboliu a taxa de so­li­da­ri­e­dade, cor­tando 4 bi­lhões de euros de im­postos dos mais ricos, e ali­viou em 41 bi­lhões por ano os im­postos das grandes em­presas e mul­ti­na­ci­o­nais. No úl­timo or­ça­mento de 2018, cortou ainda mais 10 bi­lhões de euros nos im­postos sobre ca­pi­tais. Tudo isso ao mesmo tempo em que faz pagar os custos da “tran­sição eco­ló­gica” aos mais po­bres, que entre 2008 e 2016, per­deram 14,5 bi­lhões euros de poder de compra.

Um es­forço tanto mais dis­cu­tível, quando se sabe que apenas 19% dos 38 bi­lhões de euros re­co­lhidos nessas taxas estão afe­tados à cha­mada “tran­sição eco­ló­gica”, uma des­culpa eco­ló­gica que es­conde, de fato, os gi­gan­tescos cortes de im­postos aos ricos e às em­presas.

A pau­pe­ri­zação e a mar­gi­na­li­zação da maior parte da po­pu­lação, con­ju­gada com a au­sência de forças po­lí­ticas e so­ciais que deem voz a essas ca­madas, criou o magma para uma ex­plosão vi­o­lenta e des­con­tro­lada. São fa­tores que mul­ti­plicam essa apa­rente fúria ir­ra­ci­onal: a po­breza, a ato­mi­zação so­cial e a pas­sagem da an­tiga es­querda para a acei­tação im­plí­cita dos va­lores li­be­rais que co­locam acima dos di­reitos so­ciais os cha­mados di­reitos in­di­vi­duais.

“Ti­vemos pe­rante nós a ex­trema-di­reita de manhã, a ex­trema-es­querda de­pois do al­moço e os jo­vens dos su­búr­bios ao cair da noite”, re­lata um po­li­cial que ga­rante nunca ter visto na rua e à por­rada quase toda a gente no mesmo dia. Re­sul­tado: mais de 9.861 gra­nadas foram lan­çadas, só em Paris, no­me­a­da­mente as fa­mosas GLI-F4, que contêm 25g de TNT. A França tem a du­vi­dosa honra de ser o único país na União Eu­ro­peia que usa gra­nadas ex­plo­sivas contra ma­ni­fes­tantes, tendo essa prá­tica cus­tado a mão a um ma­ni­fes­tante nos re­centes pro­testos.

Um caos de pro­testos, com carros de luxo in­cen­di­ados, carros nor­mais em fogo, o arco do Triunfo gra­fi­tado e lojas pi­lhadas. “Vi um tipo fugir com um fri­go­rí­fico sobre uma bi­ci­cleta, outro le­vava uma be­to­neira, não con­sigo per­ceber para que é que aquilo lhe vai servir”, con­fessa um po­li­cial sur­preso.

* Nuno Ramos de Al­meida é jor­na­lista por­tu­guês, editor-exe­cu­tivo do Jornal I (www.​ionline.​pt).

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