sábado, 22 de dezembro de 2018

Cinco razões para defender Battisti

Por Igor Fuser, no site Outras Palavras:

No momento em que escrevo estas linhas, o escritor Cesare Battisti, de 63 anos, estrangeiro regularmente residente no Brasil por decisão de todas as instâncias cabíveis dos poderes públicos deste país, exerce o direito mais fundamental de todo ser humano: o de preservar, por qualquer meio, sua vida e sua liberdade.

Cada dia que Battisti sobrevive à caçada policial é um desgosto para Jair Bolsonaro, impedido de pôr em prática sua concepção ditatorial que encara o cargo de Presidente da República como uma carta branca para qualquer tipo de arbítrio.

Em abril deste ano, o então candidato do PSL, em conversa com o embaixador da Itália, lançou uma de suas típicas bravatas: “No ano que vem, vou mandar um presente para vocês: o Cesare Battisti!”. O assunto só voltou à tona por conta dessa promessa descabida.

Battisti, ex-ativista de esquerda condenado (injustamente, conforme explicarei logo adiante) a prisão perpétua pelo Judiciário da Itália, mora no Brasil desde 2004. É casado com brasileira e tem um filho brasileiro. Sempre respeitou as leis deste país e exerce dignamente sua profissão.

A questão judicial envolvendo sua permanência no Brasil foi definitivamente resolvida em dezembro de 2010, quando o presidente Lula, exercendo um poder a ele atribuído pelo Supremo Tribunal Federal (STF), tomou a decisão de rejeitar o pedido de extradição feito pelas autoridades italianas.

Sabe-se lá quais foram as obscuras negociatas de bastidores entre Michel Temer e o futuro governante que levaram o impostor em final de mandato a usar a extradição de Battisti como um agrado ao seu sucessor, como se fosse um desses brindes de fim de ano.

O fato é que, em outubro, Temer revogou a decisão de Lula em favor de Cesare Battisti, num ato que foi definido com muita clareza pelo jornalista Josias de Souza, blogueiro da Folha de S.Paulo e figura totalmente insuspeita de esquerdismo:

“Quando o assunto é cadeia, Michel Temer vira um presidente paradoxal. Denunciado duas vezes (corrupção passiva e obstrução de justiça), investigado em outros dois inquéritos (corrupção e lavagem de dinheiro), Temer pega em lanças no Supremo pela prerrogativa de livrar corruptos da cadeia. Com o mesmo ímpeto, ele guerreia pelo direito de extraditar o condenado Cesare Battisti para um cárcere na Itália.”

Sejam quais forem os motivos da decisão de Temer, ela abriu o caminho para que o juiz Luiz Fux inaugurasse prematuramente as perseguições políticas da era Bolsonaro ao determinar, na quinta-feira dia 13 de dezembro, a prisão de Battisti, que desde então tem conseguido se manter em liberdade, driblando os policiais mobilizados por sua captura. Para sua sorte, o Brasil é um país de 8,5 milhões de quilômetros quadrados.

Curiosamente, foi o mesmo Fux quem, na década passada, quando o caso tramitava no STF, deu a liminar que travou a extradição, gerando o impasse que culminou com decisão do STF de delegar a Lula a palavra final. Segundo Fux, não se trata de uma incoerência e sim de levar em conta que as “conjunturas sociais” de hoje são bem diferentes daquelas vigentes em 2010. Assim funciona o STF: uma ministra (Rosa Weber) que mantém Lula na prisão apesar de ser dizer favorável à sua soltura, um ministro (Fux) que admite mudar suas próprias decisões de acordo com os ventos da política.

Diante de tudo isso, é importante que os brasileiros realmente comprometidos com a democracia e com os valores humanistas básicos tomem posição em solidariedade a Cesare Battisti neste momento crucial em que se colocam em jogo, ao mesmo tempo, seu destino pessoal e nosso destino coletivo como país (supostamente) civilizado.

Apresento aqui, de forma resumida, cinco razões em favor de que Cesare Battisti possa permanecer no Brasil com sua família, tranquilamente, como lhe é de direito:

1- O mais importante: Battisti é inocente. O episódio da sua condenação, na Itália, é um escândalo comparável à farsa judicial armada por Sergio Moro contra o ex-presidente Lula. O italiano foi preso, no final dos anos 1970, por sua participação num grupo de extrema-esquerda, e condenado a uma pena de treze anos por vários delitos políticos, como subversão. Fugiu da cadeia poucos meses depois e reapareceu na França, onde obteve asilo político. Só então, as autoridades judiciais italianas, como uma espécie de vendetta, decidiram acusá-lo pelo assassinato de quatro homens (três deles, fascistas envolvidos em diversos tipos de violência). Sem qualquer prova, somente com base em delações premiadas de ex-companheiros que dessa forma conseguiram aliviar suas penas, Battisti foi condenado a prisão perpétua. Para saber mais sobre o assunto, recomendo o excelente livro de Carlos Lugarzo, “Os Cenários Ocultos do Caso Battisti” (Geração Editorial, 2012).

2- Vamos falar claro: Battisti está sendo perseguido porque é um homem de esquerda. O caso é de alto interesse à ascendente extrema-direita italiana, doidinha para faturar politicamente com o show da extradição. Não por acaso, o político italiano que já está com as malas prontas para viajar ao Brasil e levar o prisioneiro à Itália, algemado, é o vice-primeiro-ministro Matteo Salvini, um notório fascista conhecido pelo seu ódio aos imigrantes. No Brasil, a polêmica em torno do assunto acompanha, em linhas gerais, a clivagem ideológica existente no país. A extradição de Battisti, desde o início, é uma bandeira dos reacionários dos mais diversos matizes, enquanto a esquerda, em geral, tomou partido em sua defesa (com a triste exceção da revista Carta Capital, que optou por engrossar o coro dos linchadores do escritor). Entregar Battisti à Itália favorece a campanha para desmoralizar a gestão presidencial de Lula e significa, na prática, o sinal de largada para um grande pogrom contra os partidos de esquerda, os movimentos sociais e todos aqueles que Bolsonaro chama de “os vermelhos”.

3- Ao pressionar o Brasil, por diferentes meios e até os dias de hoje, o governo da Itália põe em jogo a soberania política do nosso país. Chegou ao ponto de ameaçar com um boicote à Copa do Mundo de 2014, depois voltou atrás e, no final das contas, isso não fez a menor diferença. Na longa novela do Caso Battisti, não faltou nem mesmo um deputado italiano, Ettore Pirovano, que, em 2009, ao criticar o ministro da Justiça Tarso Genro por sua recusa em conceder a extradição, recorreu ao infame preconceito existente na Europa contra as mulheres brasileiras. “O Brasil é mais conhecido por suas dançarinas do que por seus juristas”, ironizou o parlamentar, do partido neofascista Liga do Norte. Entende-se, aí, o que quis dizer por dançarinas.

4- A extradição de Battisti é uma completa aberração do ponto de vista jurídico. Como bem lembrou o jornalista Celso Lungaretti no seu blog Náufrago da Utopia, “a sentença que a Itália quer fazer valer não só prescreveu em 2013 (trocando em miúdos: também está extinta), como se trata de uma condenação à prisão perpétua, ao passo que as leis brasileiras proíbem a extradição de quem vá cumprir no seu país de origem uma pena superior a 30 anos de reclusão”.

5- Finalmente, a extradição de Cesare Battisti representa uma grave violação ao princípio da segurança jurídica. A decisão de Lula, que negou o pedido de extradição em 2010, foi confirmada no ano seguinte pelo STF. Sim, depois de tudo, o decreto de Lula ainda foi submetido ao STF, que o aprovou no dia 11 de junho de 2011, por seis votos contra três. Os seis juízes que votaram a favor da decisão de Lula e pela rejeição das queixas da Itália foram Fux (impressionante!), Levandowski, Marco Aurélio, Carmen Lúcia, Ayres de Brito e Joaquim Barbosa. Em suma: assunto encerrado, julgado em todas as instâncias possíveis muito além do que seria imaginável. Desde então, Battisti já não é mais um refugiado político, e sim um imigrante com residência permanente, condição que mantém até o presente momento. Aceitar sua prisão e entrega a um governo estrangeiro significa admitir que as garantias jurídicas já não valem mais nada no Brasil, que qualquer cidadão ou cidadã pode a qualquer momento ser vítima do arbítrio do Estado, exatamente como ocorreu durante os 21 anos da ditadura militar – os tempos da tirania, que os fascistas estão tentando implantar novamente, mas não conseguirão.

* Igor Fuser é doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC). Este artigo foi elaborado para o projeto Jornalistas pela Democracia.

Um comentário:

  1. A criminalização de governos de esquerda é uma tática adotada pela extrema direita para desacreditar e inviabilizar qualquer candidatura dessa vertente política chegar ao poder. De uns tempos pra cá a Internet virou veiculo da extrema direita para espalhar mentiras de que icones da esquerda como Fidel Castro, Che Guevara, Lenine, Mao são genocidaa perversos que mataram mais que Hitler, Hiroito, ou Pinochet, Medici ou Videla. Tudo orquestrado e propagado por magnatas dos states que transformam governos progressistas e idependentes de esquerda de corruptos e genocidas.

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