Por Luis Felipe Miguel, no site da Fundação Maurício Grabois:
2- Hannah Arendt, A condição humana (Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987), p. 253.
3- Ver Andréia da Silva Daltoé e Juliene da Silva Marques, “A im(p)unidade parlamentar: ditadura e memória” (Memorare, vol. 4, nº 3, 2017, pp. 61-77).
4- Michael Hardt e Antonio Negri, Empire (Paris: Exils, 2000), p. 201.
* Publicado originalmente no Blog da Boitempo.
Em seu romance Andamios, publicado em 1997, o escritor uruguaio Mario Benedetti pôs em cena um ex-perseguido político que depois de anos de exílio retornava ao país. Perdido em meio a transformações que não conseguia compreender, num ambiente político que não casava com aquele de seu tempo de militância, ele pede ajuda a um amigo, que explica, sem rodeios, que é inútil tentar ligar as lembranças do passado com a realidade presente: “Democracia es amnesia” [1]. A ironia do romancista tem boa razão de ser. De fato, a experiência da redemocratização na América Latina, mas também em outros lugares do mundo, em muitos sentidos envolveu uma dose significativa de esquecimento voluntário.
Se Benedetti apresentava seu veredito para o Uruguai, o que dizer do Brasil? Mais do que em qualquer outro país do subcontinente, tivemos uma transição travada. Os crimes da ditadura nunca foram punidos e o trabalho de busca pela verdade histórica começou tardiamente e sob grande pressão. A lembrança do regime militar é tão tênue que a nostalgia em relação a ele é produzida de forma deliberada para gerar dividendos políticos. O homem que foi eleito no mês passado para ocupar a Presidência da República apresenta, como seu herói pessoal, o mais notório torturador de nossa história.
A ausência de memória foi, em primeiro lugar, o esquecimento dos crimes do regime autoritário, o que não apenas garantiu que seus responsáveis não seriam punidos mas também propiciou a manutenção de boa parte deles na elite governante. Não faltaram argumentos pragmáticos (e dignos de atenção) para justificar esta postura. Seria necessário manter a estabilidade de governos civis frágeis e evitar tensões desnecessárias na arena política. A única estratégia prudente seria a da “página virada”, que supõe que o passado está morto, enterrado, e o jogo recomeça com todas as contas zeradas. A busca pela justiça era anatematizada como “revanchismo”.
Nesse enquadramento, o problema toma a forma de um embate entre os imperativos abstratos da justiça e a necessidade pragmática de evitar, de imediato, o retrocesso político. É incorreto, porém, equivaler esse dilema a outro, entre a punição e o perdão. Numa passagem bem conhecida de A condição humana, Hannah Arendt enfatiza a importância que a promessa e o perdão têm na vida política. A promessa reduz a incerteza de resultados, característica de toda a ação, isto é, da interação comunicativa entre os seres humanos, dando-nos pontos de referência fixos para o futuro. E o perdão é necessário diante do inevitável fracasso das promessas, que não são capazes de barrar o irresistível fluxo da incerteza e portanto nunca, ou quase nunca, se cumprem. Mas o perdão não significa o esquecimento, nem mesmo abdicar da possibilidade da punição. Afinal, punir e perdoar, para a filósofa alemã, são alternativas, não opostos, e estabelecem uma relação complexa: não podemos perdoar aquilo que não poderíamos punir, nem temos como punir o imperdoável [2].
Cada vez que um chefe militar louvou a ditadura ou deblaterou contra uma comissão da verdade sem gerar qualquer reação, fortaleceu-se a compreensão de que os criminosos de Estado estavam além da punição e do perdão. Era a estratégia do pragmatismo absoluto. Porém, como a conjuntura política recente no Brasil demonstrou de maneira cabal, os problemas não desaparecem ao serem empurrados para baixo do tapete. O enfrentamento com eles é apenas adiado.
Mas há esquecimento também por parte dos opositores das ditaduras, que, com as exceções de praxe, adotaram o realismo pragmático, não hesitando em formar alianças com os antigos algozes e endossando, sem maiores controvérsias, a política da “página virada”. Contribuíram, assim, para apagar todas as máculas e a limpar até mesmo as piores biografias, em nome de uma democracia que a todos acolhia, sem distinções. Uma democracia cega, como se representa a justiça, mas sem a balança e a espada, pois abdicou do direito de discernir e, mais ainda, de punir.
Esquecimento, ainda, de antigos radicais e utopistas, convertidos à “política do poder”, desejosos de participar das novas coalizões de velhos adversários, que empalmavam os governos. A moderação devia cintilar em todos os discursos. As antigas aversões foram esquecidas, como a personagem de Benedetti, que deixara para trás sua “alergia ao imperialismo”. Por influência da política acomodatícia dominante, mas também, em grande medida, do colapso do mundo comunista, que estreitou a gama de opções políticas aceitáveis, nas democracias, ao que parece, todos os gatos deveriam ser pardos, comedidos e centristas.
A retomada da democratização do Brasil, quando ocorrer, terá que produzir uma nova política da memória. Tal como o sono da razão, a amnésia também cria monstros. A ausência de consciência histórica foi central para que um discurso como o de Bolsonaro ganhasse a força que ganhou. Na votação do impeachment de Dilma, a menção que o ex-capitão fez a Brilhante Ustra ainda era uma provocação cruel destinada a espezinhar a Presidente [3]. Pouco mais de dois anos depois, camisetas e cartazes de “Ustra vive” ostentados por jovens militantes revelavam que o “dr. Tibiriçá” dos porões da ditadura havia, sim, se convertido em ídolo da direita radicalizada. Por isso, independentemente da possibilidade efetiva de punir – ou de perdoar –, o conhecimento sobre o passado parece ser uma condição necessária para a edificação de uma ordem política renovada: “estabelecer e publicar a verdade sobre o passado recente”, como dizem Negri e Hardt, citando exemplos da América Latina e da África do Sul e observando que a “verdade”, no sentido bem concreto da documentação factual, exerce aqui um papel subversivo e regenerador, digno da melhor tradição iluminista [4].
Mas há outra dimensão a ser levada em conta. A democracia precisa possuir uma memória de si mesma, isto é, o reconhecimento de que a democratização é um processo sempre inacabado, que precisa constantemente se conectar com seus ideais para renovar suas forças no embate contra a acomodação e a oligarquização. Caso contrário, veremos outro tipo de esquecimento, o esquecimento das promessas centrais que a própria democracia faz: as promessas da igualdade política entre os cidadãos e da construção da autonomia coletiva, isto é, a instauração de uma sociedade em que as pessoas, em conjunto, são capazes de definir os rumos de suas vidas. A democracia que lembra de si mesma é a democracia que não se contenta com o ritual eleitoral, nem se acomoda à opressão e à dominação. Para ser mais sólida, a democracia não pode se limitar ao mínimo – deve buscar uma aproximação sempre maior a seu próprio ideal normativo original. É aí que a memória leva à imaginação, à busca por novas e mais igualitárias formas de organização do mundo social.
* Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém oBlog do Demodê, onde escreve regularmente. Autor, entre outros, de Democracia e representação: territórias em disputa (Editora Unesp, 2014), e, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). Colabora com os livros de intervenção Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil (Boitempo, 2016) e O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (Boitempo, 2018). Seu livro mais recente é Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória (Boitempo, 2018).
Notas
1- Mario Benedetti, Andamios (Madrid: Alfaguara, 1997, p. 19).
Se Benedetti apresentava seu veredito para o Uruguai, o que dizer do Brasil? Mais do que em qualquer outro país do subcontinente, tivemos uma transição travada. Os crimes da ditadura nunca foram punidos e o trabalho de busca pela verdade histórica começou tardiamente e sob grande pressão. A lembrança do regime militar é tão tênue que a nostalgia em relação a ele é produzida de forma deliberada para gerar dividendos políticos. O homem que foi eleito no mês passado para ocupar a Presidência da República apresenta, como seu herói pessoal, o mais notório torturador de nossa história.
A ausência de memória foi, em primeiro lugar, o esquecimento dos crimes do regime autoritário, o que não apenas garantiu que seus responsáveis não seriam punidos mas também propiciou a manutenção de boa parte deles na elite governante. Não faltaram argumentos pragmáticos (e dignos de atenção) para justificar esta postura. Seria necessário manter a estabilidade de governos civis frágeis e evitar tensões desnecessárias na arena política. A única estratégia prudente seria a da “página virada”, que supõe que o passado está morto, enterrado, e o jogo recomeça com todas as contas zeradas. A busca pela justiça era anatematizada como “revanchismo”.
Nesse enquadramento, o problema toma a forma de um embate entre os imperativos abstratos da justiça e a necessidade pragmática de evitar, de imediato, o retrocesso político. É incorreto, porém, equivaler esse dilema a outro, entre a punição e o perdão. Numa passagem bem conhecida de A condição humana, Hannah Arendt enfatiza a importância que a promessa e o perdão têm na vida política. A promessa reduz a incerteza de resultados, característica de toda a ação, isto é, da interação comunicativa entre os seres humanos, dando-nos pontos de referência fixos para o futuro. E o perdão é necessário diante do inevitável fracasso das promessas, que não são capazes de barrar o irresistível fluxo da incerteza e portanto nunca, ou quase nunca, se cumprem. Mas o perdão não significa o esquecimento, nem mesmo abdicar da possibilidade da punição. Afinal, punir e perdoar, para a filósofa alemã, são alternativas, não opostos, e estabelecem uma relação complexa: não podemos perdoar aquilo que não poderíamos punir, nem temos como punir o imperdoável [2].
Cada vez que um chefe militar louvou a ditadura ou deblaterou contra uma comissão da verdade sem gerar qualquer reação, fortaleceu-se a compreensão de que os criminosos de Estado estavam além da punição e do perdão. Era a estratégia do pragmatismo absoluto. Porém, como a conjuntura política recente no Brasil demonstrou de maneira cabal, os problemas não desaparecem ao serem empurrados para baixo do tapete. O enfrentamento com eles é apenas adiado.
Mas há esquecimento também por parte dos opositores das ditaduras, que, com as exceções de praxe, adotaram o realismo pragmático, não hesitando em formar alianças com os antigos algozes e endossando, sem maiores controvérsias, a política da “página virada”. Contribuíram, assim, para apagar todas as máculas e a limpar até mesmo as piores biografias, em nome de uma democracia que a todos acolhia, sem distinções. Uma democracia cega, como se representa a justiça, mas sem a balança e a espada, pois abdicou do direito de discernir e, mais ainda, de punir.
Esquecimento, ainda, de antigos radicais e utopistas, convertidos à “política do poder”, desejosos de participar das novas coalizões de velhos adversários, que empalmavam os governos. A moderação devia cintilar em todos os discursos. As antigas aversões foram esquecidas, como a personagem de Benedetti, que deixara para trás sua “alergia ao imperialismo”. Por influência da política acomodatícia dominante, mas também, em grande medida, do colapso do mundo comunista, que estreitou a gama de opções políticas aceitáveis, nas democracias, ao que parece, todos os gatos deveriam ser pardos, comedidos e centristas.
A retomada da democratização do Brasil, quando ocorrer, terá que produzir uma nova política da memória. Tal como o sono da razão, a amnésia também cria monstros. A ausência de consciência histórica foi central para que um discurso como o de Bolsonaro ganhasse a força que ganhou. Na votação do impeachment de Dilma, a menção que o ex-capitão fez a Brilhante Ustra ainda era uma provocação cruel destinada a espezinhar a Presidente [3]. Pouco mais de dois anos depois, camisetas e cartazes de “Ustra vive” ostentados por jovens militantes revelavam que o “dr. Tibiriçá” dos porões da ditadura havia, sim, se convertido em ídolo da direita radicalizada. Por isso, independentemente da possibilidade efetiva de punir – ou de perdoar –, o conhecimento sobre o passado parece ser uma condição necessária para a edificação de uma ordem política renovada: “estabelecer e publicar a verdade sobre o passado recente”, como dizem Negri e Hardt, citando exemplos da América Latina e da África do Sul e observando que a “verdade”, no sentido bem concreto da documentação factual, exerce aqui um papel subversivo e regenerador, digno da melhor tradição iluminista [4].
Mas há outra dimensão a ser levada em conta. A democracia precisa possuir uma memória de si mesma, isto é, o reconhecimento de que a democratização é um processo sempre inacabado, que precisa constantemente se conectar com seus ideais para renovar suas forças no embate contra a acomodação e a oligarquização. Caso contrário, veremos outro tipo de esquecimento, o esquecimento das promessas centrais que a própria democracia faz: as promessas da igualdade política entre os cidadãos e da construção da autonomia coletiva, isto é, a instauração de uma sociedade em que as pessoas, em conjunto, são capazes de definir os rumos de suas vidas. A democracia que lembra de si mesma é a democracia que não se contenta com o ritual eleitoral, nem se acomoda à opressão e à dominação. Para ser mais sólida, a democracia não pode se limitar ao mínimo – deve buscar uma aproximação sempre maior a seu próprio ideal normativo original. É aí que a memória leva à imaginação, à busca por novas e mais igualitárias formas de organização do mundo social.
* Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém oBlog do Demodê, onde escreve regularmente. Autor, entre outros, de Democracia e representação: territórias em disputa (Editora Unesp, 2014), e, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). Colabora com os livros de intervenção Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil (Boitempo, 2016) e O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (Boitempo, 2018). Seu livro mais recente é Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória (Boitempo, 2018).
Notas
1- Mario Benedetti, Andamios (Madrid: Alfaguara, 1997, p. 19).
2- Hannah Arendt, A condição humana (Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987), p. 253.
3- Ver Andréia da Silva Daltoé e Juliene da Silva Marques, “A im(p)unidade parlamentar: ditadura e memória” (Memorare, vol. 4, nº 3, 2017, pp. 61-77).
4- Michael Hardt e Antonio Negri, Empire (Paris: Exils, 2000), p. 201.
* Publicado originalmente no Blog da Boitempo.
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