Por Moriti Neto, na revista CartaCapital:
Santa Maria, no interior gaúcho, é palco de uma disputa com potencial para criar um efeito em cascata no resto do País. Ou até internacional. Nomes poderosos, altas cifras e uma das marcas mais influentes do mundo aparecem em denúncias de um caso considerado exemplar de manobras tributárias bilionárias e prejudiciais aos cofres públicos. O alvo é o sistema Coca-Cola, investigado no gabinete da delegacia da Receita Federal localizada no município. Depoimentos de quem conhece a operação da multinacional descortinam transações fiscais que influenciam direta e negativamente a receita tributária.
Em 9 de outubro de 2018, a delegacia da Receita recebeu documentos complementares – e reveladores – sobre manobras de engarrafadores para escapar do pagamento do Imposto sobre Produtos Industrializados. O esquema envolve a comercialização do xarope de Coca.
Considerado o principal insumo da “receita mágica e secreta” do refrigerante que vende 1,7 bilhão de latas, copos ou garrafas por dia no mundo, o xarope é produzido na Amazônia, mais precisamente na Zona Franca de Manaus, e é peça-chave no caso recém-descoberto no Sul, o que compõe um novo episódio de um ano complexo para a empresa.
Em várias partes do mundo, os governos têm aumentado os impostos sobre bebidas adoçadas, enquanto se acumulam evidências dos danos à saúde provocados pelo consumo. Não bastasse, o Brasil, que sempre foi um paraíso para os fabricantes, ofereceu uma temporada particular de desgostos. O governo federal ensaiou, pela primeira vez, reverter um esquema de créditos bilionários em favor da corporação denunciado há anos por auditores da Receita, que suspeitam de superfaturamento no preço do xarope com o intuito de obter mais vantagens tributárias.
Antes, o concentrado era produzido pelas próprias engarrafadoras, que o diluíam em água e gás, embalavam e distribuíam. Incentivos fiscais criados na década de 1990 abriram, no entanto, a brecha para que as grandes empresas de bebidas ganhassem mais dinheiro, instalando unidades de produção do insumo no Amazonas. A Recofarma começou a operar na Zona Franca em maio daquele ano, centralizando a fabricação do concentrado e deixando as envasadoras com as outras etapas da produção.
Em média, as engarrafadoras nacionais chegam a comprar o concentrado da Recofarma por preços que variam de 140 a 200 reais, enquanto o mesmo produto é exportado a outros países por no máximo 22 dólares, ou cerca de 70 reais, cifra que pode cair até perto de 25 reais, a depender do país importador.
Santa Maria, no interior gaúcho, é palco de uma disputa com potencial para criar um efeito em cascata no resto do País. Ou até internacional. Nomes poderosos, altas cifras e uma das marcas mais influentes do mundo aparecem em denúncias de um caso considerado exemplar de manobras tributárias bilionárias e prejudiciais aos cofres públicos. O alvo é o sistema Coca-Cola, investigado no gabinete da delegacia da Receita Federal localizada no município. Depoimentos de quem conhece a operação da multinacional descortinam transações fiscais que influenciam direta e negativamente a receita tributária.
Em 9 de outubro de 2018, a delegacia da Receita recebeu documentos complementares – e reveladores – sobre manobras de engarrafadores para escapar do pagamento do Imposto sobre Produtos Industrializados. O esquema envolve a comercialização do xarope de Coca.
Considerado o principal insumo da “receita mágica e secreta” do refrigerante que vende 1,7 bilhão de latas, copos ou garrafas por dia no mundo, o xarope é produzido na Amazônia, mais precisamente na Zona Franca de Manaus, e é peça-chave no caso recém-descoberto no Sul, o que compõe um novo episódio de um ano complexo para a empresa.
Em várias partes do mundo, os governos têm aumentado os impostos sobre bebidas adoçadas, enquanto se acumulam evidências dos danos à saúde provocados pelo consumo. Não bastasse, o Brasil, que sempre foi um paraíso para os fabricantes, ofereceu uma temporada particular de desgostos. O governo federal ensaiou, pela primeira vez, reverter um esquema de créditos bilionários em favor da corporação denunciado há anos por auditores da Receita, que suspeitam de superfaturamento no preço do xarope com o intuito de obter mais vantagens tributárias.
Antes, o concentrado era produzido pelas próprias engarrafadoras, que o diluíam em água e gás, embalavam e distribuíam. Incentivos fiscais criados na década de 1990 abriram, no entanto, a brecha para que as grandes empresas de bebidas ganhassem mais dinheiro, instalando unidades de produção do insumo no Amazonas. A Recofarma começou a operar na Zona Franca em maio daquele ano, centralizando a fabricação do concentrado e deixando as envasadoras com as outras etapas da produção.
Em média, as engarrafadoras nacionais chegam a comprar o concentrado da Recofarma por preços que variam de 140 a 200 reais, enquanto o mesmo produto é exportado a outros países por no máximo 22 dólares, ou cerca de 70 reais, cifra que pode cair até perto de 25 reais, a depender do país importador.
Os produtos da Coca seguem como líderes em participação no mercado brasileiro. Como as engarrafadoras conseguem ser tão competitivas no Brasil pagando tais preços no principal insumo dos refrigerantes? O auditor fiscal responsável por tomar os depoimentos no Rio Grande do Sul talvez tenha conseguido encontrar a resposta.
A 4,3 mil quilômetros de distância de Manaus, a CVI Refrigerantes Ltda., de Santa Maria, foi denunciada por incorporar uma lógica que só parece vantajosa por causa do “planejamento tributário abusivo”. Para os auditores, é estranho que uma empresa gaúcha gaste tanto combustível para transportar um xarope composto por água e açúcar.
Esse esquema tem um pilar que não é percebido facilmente. As fabricantes recebem de 15 a 20 centavos de real de subsídios para cada lata consumida. Em garrafas de dois litros, o valor repassado fica entre 45 e 50 centavos. Todo contribuinte brasileiro, tome ou não Coca-Cola, guaraná e assemelhados, repassa à indústria 10 reais ao ano só na compensação do IPI.
Entre o que deixa de entrar nos cofres públicos e o que sai, cada cidadão arca com 35 reais anualmente em incentivos.
A Constituição Brasileira define que os impostos entre uma etapa e outra da industrialização não são cumulativos. Para evitar um efeito em cascata, a cada operação o poder público cria uma compensação sobre o tributo pago na etapa anterior, de maneira que o consumidor final não tenha de arcar com todo o peso tributário. Ou seja, se o industrial compra o concentrado a 100 reais, com uma alíquota de 20%, acumula um crédito de 20 reais, que podem ser usados inclusive para abater dívidas com a União. No caso da Zona Franca de Manaus, o IPI é, no entanto, zero. Ainda assim, as engarrafadoras que compram o xarope cobram o crédito.
A Coca e a Ambev recebem a maior parte dos 2 bilhões de reais anuais devolvidos de IPI a quem compra concentrados de refrigerantes, chás e sucos na Zona Franca. Nos cálculos da Receita, a isso se somam 200 milhões de PIS-Cofins e 1 bilhão de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços. Por fim, há o abatimento de 75% no Imposto de Renda e isenção de Imposto Predial e Territorial Urbano.
Por baixo, a União, estados e municípios deixam de arrecadar perto de 7 bilhões de reais por ano.
A CVI, descreve a denúncia, recebe isenção de tributos pela produção do insumo na Zona Franca, mas não se dá por satisfeita com o benefício fiscal. E os depoentes mostram como a competitividade do sistema Coca-Cola prossegue mesmo assim.
O superfaturamento acontece por uma motivação simples: quanto maior o preço do concentrado, maiores os créditos obtidos do IPI usados para abater outros tributos. O segundo movimento é mais complexo. O mistério para a Receita era provar o esquema e demonstrar como a operação produz o ganho de bilhões em vantagens tributárias e mantém a Coca vendendo outros bilhões de reais em refrigerantes. E ele surgiu com os testemunhos prestados em solo gaúcho.
De acordo com depoimentos colhidos durante a investigação, um “acerto por fora” entre a Recofarma e a CVI garante que todas as partes envolvidas ganhem. Em uma espécie de “encontro de contas bancárias”, franqueado e franqueador inflacionam os créditos de IPI por meio de notas fiscais superfaturadas pela fabricante do xarope em Manaus.
A CVI, por sua vez, dá a entrada das notas no fluxo contábil, mas não as paga de fato (total ou parcialmente), já que o dinheiro retorna por meio de transferências bancárias feitas entre contas de pessoas jurídicas, acertando a devolução de parcelas significativas dos valores superfaturados nas notas fiscais.
As testemunhas destacam que a movimentação inclui a divisão da receita derivada dos créditos gerados artificialmente com o IPI: 50% a 50%. Essa manipulação financeira geralmente envolve quantias milionárias e é sistematicamente repassada pela Recofarma no dia 20 de cada mês. A denúncia abriu uma nova linha de investigação. A transação Recofarma/CVI pode representar um padrão no relacionamento entre a fábrica de Manaus e os demais engarrafadores da bebida no Brasil.
Os denunciantes conhecem com detalhes o sistema Coca-Cola e, consequentemente, o esquema com o IPI. Planilhas anexadas às declarações, denominadas de “espelho de lançamento contábil”, estendem-se por quase 12 anos, de agosto de 2002 a abril de 2014, e contabilizam o “encontro de contas Recofarma x CVI” em vários períodos. Somente a mais recente, de maio de 2013 a abril de 2014, revela a dimensão dos valores do “ajuste”. Um cruzamento de dados preliminar indica que a empresa gaúcha recebeu em torno de 21,5 milhões de reais em apenas 12 meses.
Um dos trechos do depoimento é claro: “Esse incentivo/subsídio de IPI é repassado para franquias no percentual de 50%, por meio de um encontro de contas entre franqueado e franqueador. E a CVI (uma das menores franquias do Brasil), mensalmente, no dia 20 de cada mês, recebe de 1 milhão a 3 milhões de reais como repasse. O repasse é realizado sem emissão de qualquer NF. Apenas uma planilha transmite a composição dos valores”. Além dos créditos do IPI, as empresas simulariam a entrada de recursos como reembolso de despesa de propaganda e até manutenção de geladeiras e freezers, segundo os declarantes.
“Essa sistemática, com certeza, é realizada por todo o sistema Coca-Cola no Brasil”, enfatiza uma das testemunhas.
Outro documento evidencia que as apurações se iniciaram antes da complementação de informações colhidas pela delegacia de Santa Maria. Ao menos desde 19 novembro de 2017 as transações são investigadas. Essa foi a data de um depoimento fundamental, no qual o auditor fiscal pergunta a um dos denunciantes sobre a existência de um padrão de determinação dos valores reembolsados. Resposta: a base é calculada de acordo com “o volume proporcional de compras de concentrado realizadas pelos franqueados junto da Recofarma (sic)”.
Em outro trecho, o depoente explica como os recursos oriundos do esquema são usados. A testemunha conta que, “uma vez que os recursos foram recebidos pela CVI, ela tinha total liberdade para dispor deles como melhor lhe aprouvesse”.
Por meio de nota, a Coca-Cola Brasil admitiu a investigação, mas não forneceu mais detalhes. “Em 28 anos de atividade na Zona Franca de Manaus, a Coca-Cola Brasil mantém a mesma política de preços, e a forma de operação segue o modelo estabelecido por lei para todas as empresas do Polo de Concentrados. O caso mencionado está na esfera administrativa, em fase de recurso.”
O responsável pela contabilidade da CVI, Vicente Piccinini, respondeu de forma ainda mais evasiva: “Esta demanda (as perguntas da reportagem) foi respondida ontem, pela Textual, agência do Sistema Coca-Cola Brasil”.
* Com João Peres
A 4,3 mil quilômetros de distância de Manaus, a CVI Refrigerantes Ltda., de Santa Maria, foi denunciada por incorporar uma lógica que só parece vantajosa por causa do “planejamento tributário abusivo”. Para os auditores, é estranho que uma empresa gaúcha gaste tanto combustível para transportar um xarope composto por água e açúcar.
Esse esquema tem um pilar que não é percebido facilmente. As fabricantes recebem de 15 a 20 centavos de real de subsídios para cada lata consumida. Em garrafas de dois litros, o valor repassado fica entre 45 e 50 centavos. Todo contribuinte brasileiro, tome ou não Coca-Cola, guaraná e assemelhados, repassa à indústria 10 reais ao ano só na compensação do IPI.
Entre o que deixa de entrar nos cofres públicos e o que sai, cada cidadão arca com 35 reais anualmente em incentivos.
A Constituição Brasileira define que os impostos entre uma etapa e outra da industrialização não são cumulativos. Para evitar um efeito em cascata, a cada operação o poder público cria uma compensação sobre o tributo pago na etapa anterior, de maneira que o consumidor final não tenha de arcar com todo o peso tributário. Ou seja, se o industrial compra o concentrado a 100 reais, com uma alíquota de 20%, acumula um crédito de 20 reais, que podem ser usados inclusive para abater dívidas com a União. No caso da Zona Franca de Manaus, o IPI é, no entanto, zero. Ainda assim, as engarrafadoras que compram o xarope cobram o crédito.
A Coca e a Ambev recebem a maior parte dos 2 bilhões de reais anuais devolvidos de IPI a quem compra concentrados de refrigerantes, chás e sucos na Zona Franca. Nos cálculos da Receita, a isso se somam 200 milhões de PIS-Cofins e 1 bilhão de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços. Por fim, há o abatimento de 75% no Imposto de Renda e isenção de Imposto Predial e Territorial Urbano.
Por baixo, a União, estados e municípios deixam de arrecadar perto de 7 bilhões de reais por ano.
A CVI, descreve a denúncia, recebe isenção de tributos pela produção do insumo na Zona Franca, mas não se dá por satisfeita com o benefício fiscal. E os depoentes mostram como a competitividade do sistema Coca-Cola prossegue mesmo assim.
O superfaturamento acontece por uma motivação simples: quanto maior o preço do concentrado, maiores os créditos obtidos do IPI usados para abater outros tributos. O segundo movimento é mais complexo. O mistério para a Receita era provar o esquema e demonstrar como a operação produz o ganho de bilhões em vantagens tributárias e mantém a Coca vendendo outros bilhões de reais em refrigerantes. E ele surgiu com os testemunhos prestados em solo gaúcho.
De acordo com depoimentos colhidos durante a investigação, um “acerto por fora” entre a Recofarma e a CVI garante que todas as partes envolvidas ganhem. Em uma espécie de “encontro de contas bancárias”, franqueado e franqueador inflacionam os créditos de IPI por meio de notas fiscais superfaturadas pela fabricante do xarope em Manaus.
A CVI, por sua vez, dá a entrada das notas no fluxo contábil, mas não as paga de fato (total ou parcialmente), já que o dinheiro retorna por meio de transferências bancárias feitas entre contas de pessoas jurídicas, acertando a devolução de parcelas significativas dos valores superfaturados nas notas fiscais.
As testemunhas destacam que a movimentação inclui a divisão da receita derivada dos créditos gerados artificialmente com o IPI: 50% a 50%. Essa manipulação financeira geralmente envolve quantias milionárias e é sistematicamente repassada pela Recofarma no dia 20 de cada mês. A denúncia abriu uma nova linha de investigação. A transação Recofarma/CVI pode representar um padrão no relacionamento entre a fábrica de Manaus e os demais engarrafadores da bebida no Brasil.
Os denunciantes conhecem com detalhes o sistema Coca-Cola e, consequentemente, o esquema com o IPI. Planilhas anexadas às declarações, denominadas de “espelho de lançamento contábil”, estendem-se por quase 12 anos, de agosto de 2002 a abril de 2014, e contabilizam o “encontro de contas Recofarma x CVI” em vários períodos. Somente a mais recente, de maio de 2013 a abril de 2014, revela a dimensão dos valores do “ajuste”. Um cruzamento de dados preliminar indica que a empresa gaúcha recebeu em torno de 21,5 milhões de reais em apenas 12 meses.
Um dos trechos do depoimento é claro: “Esse incentivo/subsídio de IPI é repassado para franquias no percentual de 50%, por meio de um encontro de contas entre franqueado e franqueador. E a CVI (uma das menores franquias do Brasil), mensalmente, no dia 20 de cada mês, recebe de 1 milhão a 3 milhões de reais como repasse. O repasse é realizado sem emissão de qualquer NF. Apenas uma planilha transmite a composição dos valores”. Além dos créditos do IPI, as empresas simulariam a entrada de recursos como reembolso de despesa de propaganda e até manutenção de geladeiras e freezers, segundo os declarantes.
“Essa sistemática, com certeza, é realizada por todo o sistema Coca-Cola no Brasil”, enfatiza uma das testemunhas.
Outro documento evidencia que as apurações se iniciaram antes da complementação de informações colhidas pela delegacia de Santa Maria. Ao menos desde 19 novembro de 2017 as transações são investigadas. Essa foi a data de um depoimento fundamental, no qual o auditor fiscal pergunta a um dos denunciantes sobre a existência de um padrão de determinação dos valores reembolsados. Resposta: a base é calculada de acordo com “o volume proporcional de compras de concentrado realizadas pelos franqueados junto da Recofarma (sic)”.
Em outro trecho, o depoente explica como os recursos oriundos do esquema são usados. A testemunha conta que, “uma vez que os recursos foram recebidos pela CVI, ela tinha total liberdade para dispor deles como melhor lhe aprouvesse”.
Por meio de nota, a Coca-Cola Brasil admitiu a investigação, mas não forneceu mais detalhes. “Em 28 anos de atividade na Zona Franca de Manaus, a Coca-Cola Brasil mantém a mesma política de preços, e a forma de operação segue o modelo estabelecido por lei para todas as empresas do Polo de Concentrados. O caso mencionado está na esfera administrativa, em fase de recurso.”
O responsável pela contabilidade da CVI, Vicente Piccinini, respondeu de forma ainda mais evasiva: “Esta demanda (as perguntas da reportagem) foi respondida ontem, pela Textual, agência do Sistema Coca-Cola Brasil”.
* Com João Peres
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