quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Agronegócio e mídia: monoculturas se conectam

Por Camila Nobrega e Olívia Bandeira, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:

Em letras garrafais, o prefixo “Agro” ocupa espaço em um conjunto de peças publicitárias exibidas há cerca de dois anos na emissora de maior audiência do país, a Rede Globo, exaltando principalmente produtos voltados para exportação e a produção agrícola em massa. Em uma dessas propagandas, a voz de um narrador introduz o vídeo com a frase “cana é agro”, para em seguida conduzir o telespectador por duas ilustrações que reproduzem um engenho dos tempos coloniais. Nas imagens, pessoas mantidas escravizadas carregam nos ombros o corte do canavial. A voz completa a narrativa, dizendo que “desde o Brasil colonial, a cana ajuda a movimentar a nossa economia”. Nada é dito sobre a estrutura social daquele tempo histórico. Ao contrário, o vídeo da campanha segue com imagens dos maquinários utilizados no campo hoje e termina com um tom de conclusão absoluta: “Cana é agro. Agro é tech, é pop, é tudo”.

Cortamos a cena para o mês de dezembro de 2018, quando a então futura ministra da Agricultura, Tereza Cristina (DEM-MS), produtora rural indicada pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), começou a se pronunciar sobre os seus planos para a pasta. Em suas falas, destacavam-se expressões como “agricultura de baixo carbono” e “produção sustentável”, uma linguagem revestida de modernidade e progresso que faz parte da mesma construção da ideia de “agro” defendida na campanha da Globo. Tudo sem tocar, porém, nas questões sociais do campo brasileiro, onde os níveis de desigualdade são alarmantes e as condições de insegurança alimentar avançam. E muito menos sem dizer que o tipo de agricultura representada na campanha e no discurso da ministra pouco tem a ver com a alimentação da população brasileira. Há mais em comum entre as duas narrativas – e há mais tempo – do que se costuma imaginar.

Já que as linhas de conexão não costumam ser expostas, é preciso buscar mais elementos sobre o que significa o agro nos dois discursos, na mídia e na narrativa política. Sobre a campanha “Agro é Tech, Agro é Pop, Agro é Tudo”, um texto publicado no site G1 sob o título Agronegócio é valorizado em campanha da Rede Globo já deixa bastante evidente a abordagem. Em palestras, o diretor de Marketing da emissora, Roberto Schmidt, falou no sentimento de aproximação e de “criação de orgulho” em relação ao agronegócio por meio da campanha. Ao mesmo tempo, o histórico da nova ministra também traz elementos. Na Câmara, ela teve atuação marcada pela defesa à aprovação do Projeto de Lei 6.299, de 2002, que flexibiliza as regras para fiscalização e aplicação de agrotóxicos no país.

Em ambos os casos, o agro em questão tem apenas um complemento – é o agronegócio que está em questão. Ou seja, é a parte da agricultura brasileira que, ao contrário do que a bancada ruralista diz e da representação majoritária na mídia, pouco tem a ver com alimentos. Cerca de 80% da produção do agronegócio corresponde a commodities agrícolas, enquanto quem responde por 70% da alimentação das brasileiras e dos brasileiros é a agricultura familiar [1], praticada em todo o país, inclusive em centros urbanos, mas que tem sido negligenciada na cobertura dos veículos de comunicação e nas políticas públicas.

Em silêncio, avançam os impactos sociais e ambientais trazidos pelo agronegócio. Segundo dados recentes do IBGE, cresceu 20,4% o uso de agrotóxicos entre 2006 e 2017, resultado da expansão do cultivo de monoculturas pelo agronegócio. Grandes proprietários de terra controlam 116 mil dos 350 mil hectares cultivados no Brasil [2]. A concentração é grande: 45% da área rural brasileira está em 0,91% das propriedades rurais. Já as áreas menores de 10 hectares, apesar de representarem 47% do total de propriedades rurais, abarcam apenas 2,3% da área total cultivada.

Após as primeiras semanas de governo de Jair Bolsonaro, são muitos os indícios de que a situação de concentração de terras e enorme desigualdade social no Brasil tendem a se agravar. Uma das evidências foi a oficialização de um antigo desejo da bancada ruralista: a entrega da demarcação de terras indígenas e quilombolas e do Serviço Florestal Brasileiro para a pasta da Agricultura, comandada por uma integrante do setor. Além disso, não foram poucas as menções de Bolsonaro à promessa de flexibilização da legislação ambiental e desregulamentação de áreas protegidas. Embora esses sejam debates fundamentais para a sociedade brasileira, eles não estiveram no foco da maior parte dos veículos de comunicação. Também sumiu do foco rapidamente a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), órgão que era de assessoramento imediato da Presidência da República e teve papel fundamental nas políticas de combate à fome e à pobreza, assim como no fortalecimento da agricultura familiar e da agroecologia no país, que se tornou referência internacional no tema.

Agroecologia brasileira: referência mundial, mas fora da cobertura da grande mídia

Enquanto as diversas formas de ocupação do território nas zonas rurais multiplicam-se e buscam visibilidade, a mídia e o Congresso brasileiro seguem majoritariamente no ritmo da monocultura. Em contracorrente, é fortalecida mundialmente a agroecologia – que nasce na América Latina sob a ideia de um cultivo de alimentos saudáveis, a partir da agricultura local e familiar e sem agrotóxicos, tendo como base a justiça socioambiental. Na prática, significa a implementação de sistemas de produção agrícola diversos, os agroecossistemas, que sejam socialmente justos, economicamente viáveis para grupos de diferentes contextos e que mantenham a diversidade ecológica [3].

Mesmo que o Brasil ocupe posição internacional de destaque no tema, a baixa cobertura sobre a agroecologia e outras alternativas de produção nos meios de comunicação tradicionais não corresponde ao real tamanho e à importância que possuem.

Essa monocultura de discursos tem algumas razões. Uma delas é a concentração da propriedade da mídia, definida por padrões internacionais como um dos principais indicadores de risco à pluralidade de ideais em circulação na sociedade. No Brasil, a situação é preocupante: apenas cinco grupos concentram mais da metade dos cinquenta veículos de comunicação de maior audiência, segundo dados do Monitoramento da Propriedade da Mídia (Media Ownership Monitor – MOM), pesquisa realizada pelo Intervozes e pela Repórteres Sem Fronteiras e publicada no final de 2017. De acordo com o estudo, o sistema de mídia brasileiro tem alta concentração de audiência e alta concentração geográfica, falta de transparência, além de interferências políticas, religiosas e econômicas. Entre as interferências econômicas, um dos destaques é que parte dos proprietários dos meios de comunicação de maior alcance no país possuem negócios no setor agropecuário.

As relações entre os grandes grupos de mídia brasileiros e o agronegócio são antigas. A Folha de S.Paulo, por exemplo, jornal impresso de maior tiragem do país, teve origem na Folha da Manhã S.A., empresa constituída em 1931 tendo em seu quadro de diretores e acionistas nomes como Otaviano Alves de Lima, que reforçou a adoção de uma linha editorial voltada para os “lavradores de São Paulo”, como o jornal designava os proprietários de terras, principalmente os cafeicultores.

Essas relações se mantiveram ao longo do tempo. De um lado, há aqueles que são ao mesmo tempo proprietários de terras e de veículos de comunicação. É o caso de João Carlos Di Genio, dono do Grupo Mix de Comunicação, responsável pela rádio Mix FM, sexta rede nacional de maior audiência. Além de ser o dono do Grupo Objetivo, um dos maiores grupos de educação privada no país, Di Genio tem cinco fazendas de produção de gado e reprodução de animais, em parceria com sua universidade, a Unip, e é um dos maiores proprietários de imóveis da cidade de São Paulo. Já o Alfa, um dos principais conglomerados financeiros do país, comandado por Aloysio de Andrade Faria, tem entre seus negócios ligados à terra a Agropalma, empresa de extração de óleo de palma, uma empresa de produção de couro (Soubach) e uma de exploração de água mineral (Águas Prata). O Alfa é proprietário da Rede Transamérica de Rádio, quinta rede nacional de maior audiência.

De outro lado, há aqueles que não apenas detêm os dois tipos de propriedade, como fazem um investimento grande na produção de conteúdo voltado ao agronegócio. O caso mais emblemático é o do já citado Grupo Globo, que aparece no MOM-Brasil como proprietário de nove dos cinquenta veículos de maior audiência no país. Os membros da família Marinho, donos do conglomerado, também têm fazendas e empresas de produção agrícola, como a Fazenda Bananal Agropecuária, as Fazendas Guara Agropecuária e a Mangaba Cultivo de Coco. Além disso, a Globo Comunicações e Participações S/A é integrante da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag).

Além da campanha Agro – A indústria riqueza do Brasil, na grade de programação do principal veículo do grupo, a Rede Globo, é apresentado o programa jornalístico Globo Rural, no ar desde 1980. O programa deu origem à revista de mesmo nome, publicada pela Editora Globo desde 1985, e à editoria Agro do portal de notícias G1. O produtor rural também é foco de projetos da Globo Negócios, como o Mapa da Mina, que permite o planejamento do investimento publicitário dos diversos setores da economia em audiências estratégicas a partir de levantamentos de dados do setor agropecuário.

Outro caso é o do Grupo Bandeirantes, que aparece no MOM-Brasil com cinco dos cinquenta veículos de maior audiência. A família Saad, dona do grupo, também é proprietária de terras e teve algumas delas desapropriadas para a reforma agrária em 1989. O grupo possui o Canal de TV Terraviva, no ar desde 2005 e em exibição através de múltiplas plataformas, atingindo 98,8 milhões de espectadores, segundo o site da emissora. O mote do Terraviva é “O canal de quem planta e cria” e em seu perfil institucional se define como “um aliado do agronegócio”. A grade de programação mostra o perfil do canal que, de um lado, procura levar informações aos produtores rurais e, de outro, sensibilizar a sociedade sobre a importância do agronegócio ou agrobusiness, dois termos frequentemente utilizados pelo canal.

O caso do Terraviva permite observar que interesses empresariais aparecem não só na propriedade da mídia, mas entre aqueles que são responsáveis por levar informação ao telespectador. Os programas Agrimercado e Consutor Terraviva, por exemplo, são apresentados por Silmar Cesar Müller, repórter que também faz participações em programas das outras emissoras do grupo, como BandNewsTV e rádio BandNews FM e tem ampla atuação no mercado do agronegócio como consultor. Foi fundador e presidente durante 26 anos da Consultoria SAFRAS & Mercado, especializada em consultoria de planejamento para o agronegócio, criador da Agência SAFRAS, canal de notícias voltado para o mercado de commodities e agronegócios no Brasil e América do Sul, vice-presidente do Grupo IT Mídia e vice-presidente de Agronegócios do braço brasileiro e latino-americano da IBC–International Business Communications, empresa do grupo britânico INFORMA Group. Já o Direito & Certo é apresentado por Samanta Pineda, advogada especialista em Direito Socioambiental que trabalha também como “consultora e colaboradora” da Frente Parlamentar da Agropecuária no Congresso Nacional, da Abag e da Sociedade Rural Brasileira.

Estrutura fundiária: marca de desigualdade no país

Entender de que forma interesses empresariais podem influenciar a produção da notícia é fundamental para que a população possa consumir a informação produzida por esses veículos de forma crítica. A relação de propriedade entre mídia e agronegócio tem reflexos diretos em como a questão da terra é tratada no país, como mostra pesquisa recente desenvolvida por Ana Manuela Chã e publicada no livro Agronegócio e indústria cultural: estratégia das empresas para construir a hegemonia.

O quadro de concentração da comunicação e da estrutura fundiária brasileira se baseiam no imaginário social que legitimou a propriedade privada, a família heteronormativa e o acúmulo de capital a partir de processos coloniais. Outras formas de vida foram simbolicamente consolidadas como estranhas, exóticas, primitivas e pobres, subalternizando e/ou invisibilizando diversas identidades com base no racismo e no patriarcado, como mostrou Maristella Svampa [4].

Por outro lado, a democratização da comunicação e a defesa da liberdade de expressão significam a desconcentração da propriedade em busca de espaços para novas narrativas, como aquelas que questionam a noção de “desenvolvimento” como caminho dado para todas as realidades culturais e sociais. Diversas correntes disputam a ideia de “sustentável”, a partir de cosmovisões em que a terra não significa apenas um suporte ao trabalho humano, mas a uma ideia de sociedade baseada na reciprocidade, complementaridade e cooperação [5] e na ideia de bem-viver [6]. São racionalidades em que a terra, assim como outros recursos naturais, não pode ser um bem privado e objeto de acúmulo de capital, mas sim um bem comum.

* Camila Nobrega é jornalista e doutoranda em Ciência Política na Universidade Livre de Berlim; e Olívia Bandeira é jornalista, doutora em Antropologia e membro do conselho diretor do Intervozes.

Notas

[1] Ver em: http://www.mda.gov.br/sitemda/noticias/brasil-70-dos-alimentos-que-v%C3%A3o-%C3%A0-mesa-dos-brasileiros-s%C3%A3o-da-agricultura-familiar

[2] Censo Agropecuário de 2006/IBGE.

[3] Mais referências no artigo “Agroecologia, Agricultura Camponesa e Soberania Alimentar”, de Miguel Altieri. Disponível em http://revista.fct.unesp.br/index.php/nera/article/view/1362. Acesso em 05.01.2019

[4] Maristella Svampa. Feminismos del sur y ecofeminismo. Nueva sociedad(256), 2015, p.127-131.

[5] Idem.

[6] Margarita Aguinaga et al. Más allá del desarrollo. Fundação Rosa Luxemburgo; Abya Yala, 2011.

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