Por Luiz Gonzaga Belluzzo, no site da Fundação Maurício Grabois:
O senhor presidente da República, Jair Bolsonaro, pretende combater o desemprego com as armas da generalização da informalidade no mercado de trabalho. Ele disse: “mais informalidade, mais emprego”. Naturalmente, entre as vítimas dessa empreitada está a Justiça do Trabalho.
Em outros tempos, o então presidente Fernando Henrique Cardoso declarou estar “virando uma página da era Vargas”. As arengas presidenciais referem-se, com certeza, ao “necessário abandono das práticas corporativas, centralizadoras e autoritárias da legislação trabalhista brasileira.”
Os liberais nativos não perdem a oportunidade para girar a manivela do realejo, tocando incessantemente a canção intitulada: A CLT é cópia da Carta del Lavoro. Constatado o vício de origem, a palavra de ordem, nesses tempos de globalização e de império da democracia, é “destruir o infame”.
Toneladas de tinta foram e continuam sendo derramadas sobre outras tantas de papel para exaltar a tal de globalização, a maior integração das economias, os incontroláveis processos de automação e de informatização, a terceirização e a redução do número de assalariados, o fim do trabalho e o poder disciplinador dos mercados financeiros.
A repetição desses motes parece tão sinistra quanto o choro das carpideiras, pelo menos para a grande maioria dos pretendentes a ingressar no clube dos ricos ou das sociedades desenvolvidas. Os acontecimentos recentes mostram que, apesar da retórica triunfalista, o acesso ao almejado título de sócio do clube dos desenvolvidos torna-se cada vez mais restrito.
Por outro lado, nos países adiantados cresce o número de cidadãos e cidadãs que não concordam com a mão única que pretendem impor às suas vidas. A sensação entre as classes não-proprietárias é que, de uns tempos a esta parte, aumentou a insegurança. Além do desemprego crônico e endêmico, os que continuam empregados assistem ao encolhimento das oportunidades de um emprego estável e bem remunerado. Não bastasse isso, estão sob constante ameaça de definhamento as instituições do Estado do Bem-Estar, que ao longo das últimas décadas vinham assegurando, nos países desenvolvidos, direitos sociais e econômicos aos grupos mais frágeis da sociedade.
No livro The Jobless Future, Stanley Aronowitz estuda as transformações no mercado de trabalho e estabelece a distinção entre trabalho e emprego. O trabalho para os remanescentes torna-se mais duro e exigente e desaparecem os empregos seguros, de longo prazo. Estão em extinção os empregos que proporcionam aposentadorias e pensões, seguro-saúde e outros. Com esses “privilégios” vai de embrulho a esperança de uma remuneração mais generosa na medida em que o trabalhador avança na carreira.
Guy Standing, autor de livros e artigos importantes sobre o surgimento do precariato, faz uma distinção crucial entre a habitual insegurança dos assalariados e o surgimento de uma nova categoria de trabalhadores. Standing afirma que a falta de segurança no trabalho sempre existiu. Mas não é a insegurança que define o precariato. “Os integrantes desse grupo estão sujeitos a pressões que os habituaram à instabilidade em seus empregos e suas vidas.
De forma ainda mais significativa, não possuem qualquer identidade ocupacional ou narrativa de desenvolvimento profissional. E, ao contrário do antigo proletariado, ou dos assalariados que estão acima no ranking socioeconômico, o precariato está sujeito à exploração e diversas formas de opressão, por se encontrar fora do mercado de trabalho formalmente remunerado.
O que distingue o precariato é a sua trajetória de perda de direitos civis, culturais, políticos, sociais e econômicos. Não possuem os direitos integrais dos cidadãos que os cercam, estão reduzidos à condição de suplicantes, próximos da mendicância, dependentes das decisões de burocratas, instituições de caridade e outros que detêm o poder econômico.
O problema é, principalmente, o da insegurança na remuneração. Se houvesse políticas sensíveis para garanti-la, como por meio de uma renda mínima, poderíamos aceitar a insegurança no emprego. A insegurança ocupacional é de outra natureza, já que buscamos desenvolver uma identidade ocupacional, e muitos gostariam de fazer o mesmo. Tal sensação de insegurança é o resultado da invasão, em todas as esferas da vida, das normas da mercantilização e da concorrência, como critérios dominantes da integração e do reconhecimento social. Nos países em que os sistemas de proteção contra os freqüentes “acidentes” ou falhas do mercado são parciais ou estão em franca regressão, a insegurança assume formas ameaçadoras para o convívio social. A expansão da informalidade e da precarização das relações de trabalho - e a desagregação familiar que as acompanham - tendem a avançar para a criminalidade eventual e, depois, para o crime organizado. Os subsistemas socioeconômicos que vivem da atividade criminosa ou ilegal passam a ocupar o espaço deixado pelo desaparecimento das oportunidades de vida antes oferecidas pela economia “oficial”.
Bem feitas as contas, as transformações econômicas e sociais que estamos presenciando, bem como as “teorias do progresso” que as acompanham, podem ser entendidas como produtos de uma nova tentativa de “reestruturação capitalista”, acompanhada, desta vez, de um revigoramento da ideologia do laissez-faire.
As “etapas de reestruturação capitalista” são os períodos de subversão das relações, até então existentes, entre a lógica econômica do capitalismo e as aspirações dos cidadãos à autonomia diante das esferas do poder e do dinheiro, a uma vida boa e decente. Alguém poderia sugerir - e não estaria errado - se dissesse que, nesses momentos de reestruturação, a luta política vai escolher as normas e os valores que, afinal, vão presidir os nossos destinos coletivos e individuais.
A última reestruturação importante daquilo que, parodiando Schumpeter, poderíamos chamar de Ordem Capitalista começou a se desenvolver a partir dos anos 30 e encontrou seu apogeu nas duas primeiras décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. Essa reordenação foi uma resposta aos desastres provocados pelas “falhas” do mercado auto-regulado, agravadas pelo apego dos governos a políticas fiscais e monetárias conservadoras. Essa miopia liberal-conservadora suscitou violentas reações de autoproteção da sociedade assolada por desgraças como o desemprego em massa, o desamparo, a falência, a bancarrota. Tratava-se essencialmente de uma rebelião contra a exclusão dos circuitos mercantis, o que significa, para milhões de pessoas, a impossibilidade de acesso aos meios necessários à sobrevivência.
Como já sugeriu o professor Cardoso de Mello, em trabalho recente, a Ilustração nos legou uma modernidade que avança de forma contraditória, impulsionada pela tensão permanente entre as forças e valores da concorrência capitalista e os anseios de realização da autonomia de um indivíduo integrado responsavelmente na sociedade. Do ponto de vista ético, esse conflito desenvolve-se em meio a fortes tensões entre a dimensão utilitarista da sociabilidade - forjada na indiferença do valor de troca e do dinheiro - e os projetos coletivos de progresso social. Fundamentalmente, esses projetos, no atual estágio do imaginário social, postulam a autonomia do indivíduo, ou seja, reivindicam o direito à singularidade e diferença, ao mesmo tempo em que afirmam o que Robert Bellah chamou de pertinência cívica. Essa virtude pode ser definida como a percepção e o reconhecimento de pertencer solidariamente a uma comunidade, sem ser esmagado por ela.
* Luiz Gonzaga Belluzzo é Economista, Professor de Economia no Instituto de Economia da Unicamp e na FACAMP. Publicado originalmente no site Carta Maior.
Em outros tempos, o então presidente Fernando Henrique Cardoso declarou estar “virando uma página da era Vargas”. As arengas presidenciais referem-se, com certeza, ao “necessário abandono das práticas corporativas, centralizadoras e autoritárias da legislação trabalhista brasileira.”
Os liberais nativos não perdem a oportunidade para girar a manivela do realejo, tocando incessantemente a canção intitulada: A CLT é cópia da Carta del Lavoro. Constatado o vício de origem, a palavra de ordem, nesses tempos de globalização e de império da democracia, é “destruir o infame”.
Toneladas de tinta foram e continuam sendo derramadas sobre outras tantas de papel para exaltar a tal de globalização, a maior integração das economias, os incontroláveis processos de automação e de informatização, a terceirização e a redução do número de assalariados, o fim do trabalho e o poder disciplinador dos mercados financeiros.
A repetição desses motes parece tão sinistra quanto o choro das carpideiras, pelo menos para a grande maioria dos pretendentes a ingressar no clube dos ricos ou das sociedades desenvolvidas. Os acontecimentos recentes mostram que, apesar da retórica triunfalista, o acesso ao almejado título de sócio do clube dos desenvolvidos torna-se cada vez mais restrito.
Por outro lado, nos países adiantados cresce o número de cidadãos e cidadãs que não concordam com a mão única que pretendem impor às suas vidas. A sensação entre as classes não-proprietárias é que, de uns tempos a esta parte, aumentou a insegurança. Além do desemprego crônico e endêmico, os que continuam empregados assistem ao encolhimento das oportunidades de um emprego estável e bem remunerado. Não bastasse isso, estão sob constante ameaça de definhamento as instituições do Estado do Bem-Estar, que ao longo das últimas décadas vinham assegurando, nos países desenvolvidos, direitos sociais e econômicos aos grupos mais frágeis da sociedade.
No livro The Jobless Future, Stanley Aronowitz estuda as transformações no mercado de trabalho e estabelece a distinção entre trabalho e emprego. O trabalho para os remanescentes torna-se mais duro e exigente e desaparecem os empregos seguros, de longo prazo. Estão em extinção os empregos que proporcionam aposentadorias e pensões, seguro-saúde e outros. Com esses “privilégios” vai de embrulho a esperança de uma remuneração mais generosa na medida em que o trabalhador avança na carreira.
Guy Standing, autor de livros e artigos importantes sobre o surgimento do precariato, faz uma distinção crucial entre a habitual insegurança dos assalariados e o surgimento de uma nova categoria de trabalhadores. Standing afirma que a falta de segurança no trabalho sempre existiu. Mas não é a insegurança que define o precariato. “Os integrantes desse grupo estão sujeitos a pressões que os habituaram à instabilidade em seus empregos e suas vidas.
De forma ainda mais significativa, não possuem qualquer identidade ocupacional ou narrativa de desenvolvimento profissional. E, ao contrário do antigo proletariado, ou dos assalariados que estão acima no ranking socioeconômico, o precariato está sujeito à exploração e diversas formas de opressão, por se encontrar fora do mercado de trabalho formalmente remunerado.
O que distingue o precariato é a sua trajetória de perda de direitos civis, culturais, políticos, sociais e econômicos. Não possuem os direitos integrais dos cidadãos que os cercam, estão reduzidos à condição de suplicantes, próximos da mendicância, dependentes das decisões de burocratas, instituições de caridade e outros que detêm o poder econômico.
O problema é, principalmente, o da insegurança na remuneração. Se houvesse políticas sensíveis para garanti-la, como por meio de uma renda mínima, poderíamos aceitar a insegurança no emprego. A insegurança ocupacional é de outra natureza, já que buscamos desenvolver uma identidade ocupacional, e muitos gostariam de fazer o mesmo. Tal sensação de insegurança é o resultado da invasão, em todas as esferas da vida, das normas da mercantilização e da concorrência, como critérios dominantes da integração e do reconhecimento social. Nos países em que os sistemas de proteção contra os freqüentes “acidentes” ou falhas do mercado são parciais ou estão em franca regressão, a insegurança assume formas ameaçadoras para o convívio social. A expansão da informalidade e da precarização das relações de trabalho - e a desagregação familiar que as acompanham - tendem a avançar para a criminalidade eventual e, depois, para o crime organizado. Os subsistemas socioeconômicos que vivem da atividade criminosa ou ilegal passam a ocupar o espaço deixado pelo desaparecimento das oportunidades de vida antes oferecidas pela economia “oficial”.
Bem feitas as contas, as transformações econômicas e sociais que estamos presenciando, bem como as “teorias do progresso” que as acompanham, podem ser entendidas como produtos de uma nova tentativa de “reestruturação capitalista”, acompanhada, desta vez, de um revigoramento da ideologia do laissez-faire.
As “etapas de reestruturação capitalista” são os períodos de subversão das relações, até então existentes, entre a lógica econômica do capitalismo e as aspirações dos cidadãos à autonomia diante das esferas do poder e do dinheiro, a uma vida boa e decente. Alguém poderia sugerir - e não estaria errado - se dissesse que, nesses momentos de reestruturação, a luta política vai escolher as normas e os valores que, afinal, vão presidir os nossos destinos coletivos e individuais.
A última reestruturação importante daquilo que, parodiando Schumpeter, poderíamos chamar de Ordem Capitalista começou a se desenvolver a partir dos anos 30 e encontrou seu apogeu nas duas primeiras décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. Essa reordenação foi uma resposta aos desastres provocados pelas “falhas” do mercado auto-regulado, agravadas pelo apego dos governos a políticas fiscais e monetárias conservadoras. Essa miopia liberal-conservadora suscitou violentas reações de autoproteção da sociedade assolada por desgraças como o desemprego em massa, o desamparo, a falência, a bancarrota. Tratava-se essencialmente de uma rebelião contra a exclusão dos circuitos mercantis, o que significa, para milhões de pessoas, a impossibilidade de acesso aos meios necessários à sobrevivência.
Como já sugeriu o professor Cardoso de Mello, em trabalho recente, a Ilustração nos legou uma modernidade que avança de forma contraditória, impulsionada pela tensão permanente entre as forças e valores da concorrência capitalista e os anseios de realização da autonomia de um indivíduo integrado responsavelmente na sociedade. Do ponto de vista ético, esse conflito desenvolve-se em meio a fortes tensões entre a dimensão utilitarista da sociabilidade - forjada na indiferença do valor de troca e do dinheiro - e os projetos coletivos de progresso social. Fundamentalmente, esses projetos, no atual estágio do imaginário social, postulam a autonomia do indivíduo, ou seja, reivindicam o direito à singularidade e diferença, ao mesmo tempo em que afirmam o que Robert Bellah chamou de pertinência cívica. Essa virtude pode ser definida como a percepção e o reconhecimento de pertencer solidariamente a uma comunidade, sem ser esmagado por ela.
* Luiz Gonzaga Belluzzo é Economista, Professor de Economia no Instituto de Economia da Unicamp e na FACAMP. Publicado originalmente no site Carta Maior.
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