Em novembro do ano passado, Mario Magalhães avisou: está claro que Jair Bolsonaro iniciará uma cruzada contra a imprensa [1]. A hostilidade com que tratou os meios de comunicação durante e após a campanha seria uma preliminar da relação do seu governo com as redações. “Preservar o espírito crítico onde ele não se apagou será um dos maiores desafios do jornalismo e da democracia daqui por diante”, concluiu o autor da biografia “Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo”.
As humilhações a que submeteu jornalistas em sua posse foi outro aperitivo [2]. Tamanho desprezo toma forma na opção por não haver mediações entre o Planalto e a imprensa - não há porta-voz ou assessoria de comunicação nos moldes dos governos anteriores -, assim como no frenético uso das redes sociais. Comenta-se que a conta do mandatário no Twitter é o novo Diário Oficial.
Sua verborragia adolescente e seu comportamento treteiro, todavia, pôs na mesa a possibilidade de órgãos oficiais passarem a ser os responsáveis pela condução de seus perfis. Depois das repercussões negativas de uma arenga infantil que iniciou com Fernando Haddad no Twitter, o possível tornou-se necessário [3].
Mais do que censora, a Secretaria Especial de Comunicação Social fará de ora em diante o papel maternal e paternal de conferir civilidade, respeito e maturidade ao presidente em suas manifestações na internet.
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“É difícil encontrar algum analista que ainda se refira à Hungria – um país-membro da União Europeia – como uma democracia plena”, atestou Rafael Cariello em matéria sobre o país governado por Viktor Orbán desde 2010 [4]. Uma das razões para tal conclusão é exatamente a perseguição que o primeiro-ministro faz em relação aos meios de comunicação húngaros – mas não uma perseguição convencional, colocando cadeados em redações e prendendo jornalistas. Por meio da distribuição estratégica das verbas publicitárias – tidas como fundamentais para a sobrevivência dos veículos em tempos de crise – Orbán vem conseguindo sufocar toda a imprensa que não compõe as hostes situacionistas. “Aos amigos, a compra de anúncios. Para a imprensa crítica, os rigores do mercado”. O mesmíssimo script traçado pelo capitão em suas ameaças à Folha de S. Paulo [5].
Outra forma de sufocar a imprensa não-governista é a articulação da compra de veículos independentes por agentes do poder econômico que lhe são próximos. O mercado, mais uma vez, serve de anteparo a práticas no mínimo questionáveis do ponto de vista das chamadas democracias liberais. Foi com esta medida que o principal jornal independente do país foi tirado de circulação, ao passo que jornalistas que não seguem a linha chapa branca se esforçam em vão para achar emprego.
Bolsonaro trocou uma ideia com Orbán por telefone em novembro. “O povo brasileiro não sabe o que é ditadura ainda”, afirmou após a conversa [6]. Orbán, a quem o presidente chama de parceiro, deve saber muito bem, vide a moção aprovada pelo Parlamento da União Europeia contra a Hungria em razão de vir passando o trator por cima de regras e valores democráticos [7]. “Ditadura, pô, não podemos admitir”, justificou-se Jair ao explicar as razões de ter desconvidado Cuba e Venezuela para sua posse [8].
O primeiro-ministro disse também que considera o Brasil de Bolsonaro o mais alto paradigma do que seria uma democracia cristã [9]. É provável que se considere um democrata, assim como o marechal Costa e Silva também se via como um vanguardista dos direitos civis. “Estamos numa democracia: os jornais dizem o que querem”, afirmou em 1968 durante reunião com a comissão escolhida por aclamação na Passeata dos Cem Mil realizada dias antes. O atual presidente concorda que não existiu ditadura no período de 1964 a 1985. Vladimir Herzog, jornalista, não concordaria, assim como a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Brasil por ter dado de ombros à investigação de seu assassinato e tortura pelos militares [10] apesar da esdrúxula versão de que cometeu suicídio (defendida por sabemos quem [11]).
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Em 13 de dezembro, Bolsonaro soltou: “a gente enfrenta esses caras desde 1922”. Não poderia estar mais correto. O ano é o da fundação do Partido Comunista Brasileiro. Na constituinte de 1946, não foi o general Eurico Gaspar Dutra – que, por coincidência, também mantinha uma caricatural e agressiva relação de subserviência aos EUA – e sua base aliada que se empenharam em aprovar a emenda que garantiria a liberdade de imprensa. Foi o PCB, dos então deputados Jorge Amado e Carlos Marighella, que se preocupou em inscrever no texto constitucional tanto esta como outras liberdades individuais as quais, ignoradas pelos paulos guedes da época, vêm sofrendo frequentes ataques do discurso e da prática bolsonarista (a liberdade de culto, outra bandeira do Partidão na constituinte, também não escapou de ser enxovalhada pelo presidente [12]).
É muito conveniente pintar o ex-deputado como um neandertal ignorante, tosco e estúpido. Além dos significados imediatos, agir dessa maneira acaba por servir como uma espécie de autoafirmação das diferenças intelectuais, morais e civilizatórias das forças progressistas diante da barbárie representada pelo outro lado. Mas será que ele e sua equipe são de fato idiotas em um mundo no qual o que se convencionou a chamar de idiotice passou a ser um ativo nas disputas das mentes e corações? [13] Quem está comendo poeira nessa briga?
É certo que Bolsonaro submete a imprensa a toda sorte de constrangimentos por saber que – ainda – não há atmosfera que permita ações mais incisivas.
No Brasil pós-2016, onde a presunção de inocência abotoou de vez o paletó, prender é a mais óbvia dessas ações. Em sua conta no Twitter, o deputado Eduardo Bolsonaro, reproduzindo um dos ensinamentos do marxista Herbert Marcuse na obra “A Ideologia da Sociedade Industrial”, escreveu que “diagnosticar ditaduras instaladas através da força é fácil. Mas um dos maiores desafios da atualidade é como diagnosticar e combater ditaduras que se instalam usando meios democráticos" [14].
Alguém discorda?
* Gustavo Freire Barbosa é advogado.
Notas:
[1] HTTPS://THEINTERCEPT.COM/2018/11/06/BOLSONARO-CONTRA-IMPRENSA/
[2] HTTPS://WWW1.FOLHA.UOL.COM.BR/COLUNAS/MONICABERGAMO/2019/01/UM-DIA-DE-CAO.SHTML
[3] HTTPS://ULTIMOSEGUNDO.IG.COM.BR/BRASIL/2019-01-06/BOLSONARO-NO-TWITTER.HTML
[4] HTTPS://PIAUI.FOLHA.UOL.COM.BR/MATERIA/A-FRONTEIRA/
[5] HTTPS://WWW.HUFFPOSTBRASIL.COM/2018/10/30/BOLSONARO-DIZ-QUE-FOLHA-DE-S-PAULO-ACABOU-MAS-OMITE-INFORMACOES-SOBRE-WAL-DO-ACAI_A_23575811/
[6] HTTPS://G1.GLOBO.COM/POLITICA/NOTICIA/2018/11/19/BOLSONARO-FALA-POR-TELEFONE-COM-LIDER-HUNGARO-DE-DIREITA-E-DIZ-QUE-SERA-GRANDE-PARCEIRO.GHTML
[7] HTTPS://G1.GLOBO.COM/MUNDO/NOTICIA/2018/09/12/PARLAMENTO-DA-UNIAO-EUROPEIA-ADOTA-ACAO-CONTRA-A-HUNGRIA-POR-VIOLAR-DEMOCRACIA-E-VALORES-EUROPEUS.GHTML
[8] HTTPS://WWW3.REDETV.UOL.COM.BR/BLOG/REINALDO/BOLSONARO-CONTRA-OS-MILITARES-2-ACHO-QUE-AGORA-O-ELEITO-TEM-DE-DESCONVIDAR-PENCA-DE-DITADURAS-MUNDO-AFORA-QUE-INTERESSAM-AO-BRASIL/
[9] HTTPS://BR.SPUTNIKNEWS.COM/EUROPA/2019011113090332-ORBAN-BOLSONARO-DEMOCRACIA-CRISTA/
[10] HTTPS://BRASIL.ELPAIS.COM/BRASIL/2018/07/04/POLITICA/1530734238_207748.HTML
[11] HTTPS://OGLOBO.GLOBO.COM/BRASIL/SOBRE-MORTE-DE-HERZOG-BOLSONARO-AFIRMA-QUE-SUICIDIO-ACONTECE-22863525
[12] HTTPS://WWW.YOUTUBE.COM/WATCH?V=CS0ISZZDZF0&T=20S
[13] HTTPS://WWW.CARTACAPITAL.COM.BR/OPINIAO/FALSOS-IDIOTAS/
[14] HTTPS://TWITTER.COM/BOLSONAROSP/STATUS/1083223952368041984.
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