Por Renan Borges Simão, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:
1 Elizabeth Kolbert, “Why facts don’t change our minds” [Por que fatos não mudam nossa mentalidade], New Yorker, 27 fev. 2017.
2 Sean Illing, “How the media should respond to Trump’s lies” [Como a mídia deve reagir às mentiras de Trump], Vox, 18 nov. 2018.
3 Piero Leirner, “Uma contribuição para o anti-Bolsonarismo”, Sul 21, 9 out. 2018.
4 Guilherme Seto, “Comunicação de Bolsonaro usa tática militar de ponta, diz especialista”, Folha de S.Paulo, 14 out. 2018.
5 Gabriel Ferreira e João Pedro Soares, “Comunicação de Bolsonaro usa tática militar de ponta, diz especialista”, Época, 24 out. 2018.
6 Antonio García Martínez, “Why WhatsApp became a hotbed for rumors and lies in Brazil” [Por que o WhatsApp se tornou um viveiro de rumores e mentiras no Brasil], Wired, 18 abr. 2018.
7 Ver Naomi Oreskes, “Por que devemos confiar nos cientistas”, TEDSalon NY2014, maio 2014.
8 Benoit Denizet-Lewis, “How Do You Change Voters’ Minds? Have a Conversation” [Como mudar a mentalidade dos eleitores? Converse], The New York Times Magazine, 7 abr. 2016.
9 Rosana Pinheiro-Machado, “O que as forças progressistas podem fazer agora”, The Intercept Brasil, 29 out. 2018.
10 Ver:.
No fim de novembro, as visualizações do vídeo “Por que mentiras óbvias geram ótima propaganda”, do site Vox, passaram de 1 milhão. Baseando-se no artigo “The Russian ‘Firehose of Falsehood’ Propaganda Model” (2016), do think tanknorte-americano Rand Corporation, a peça aponta quatro aspectos principais da propaganda russa: 1) alto volume de conteúdo; 2) produção rápida, contínua e repetitiva; 3) sem comprometimento com a realidade; e 4) sem consistência entre o que se diz entre um discurso e outro. Essencialmente, isso é o firehosing (fluxo de uma mangueira de incêndio).
Coautor do artigo com a psicóloga social Miriam Matthews, o cientista social Christopher Paul diz no vídeo que nunca pensou que “alguém pudesse aplicar o estudo à política norte-americana”. A relutância de Paul tem razões políticas. O estudo que concebe o firehosing foi financiado pelo Gabinete do Secretário de Defesa dos Estados Unidos, e a Rand é, há mais de meio século, ligada à segurança nacional norte-americana. O think tank afirmou que Paul e Miriam não estavam disponíveis para falar com a reportagem.
Tendo como recorte o período de 2008 até a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014, o estudo descreve o funcionamento da máquina de propaganda russa para indicar como essas mensagens podem ser assimiladas, apoiando-se em conceitos como influência e persuasão da psicologia experimental e social.
Além dos quatro elementos de disseminação de informação já citados, o artigo aponta que os principais canais de propaganda são noticiários de TV e web, “trolls de internet financiados” para atuar nas redes sociais e discursos falsos de Vladimir Putin. Para os autores, eles têm como objetivo “entreter, confundir e cansar” as pessoas. Essas frentes multicanais, quando combinadas com a máquina governamental, criam um monopólio das primeiras impressões. Por não precisar checar fatos e declarações, apenas dar interpretações favoráveis ao governo, a propaganda sempre tem a “primeira notícia”. A combinação das primeiras impressões e a repetição de mensagens com o mesmo teor ideológico tendem a gerar mais credibilidade, diz o estudo. Quando são detalhadas por evidências secundárias – como acontece em toda boa propaganda –, o senso de autoridade é elevado. Até quando fatos checados e desbancados alcançam grande parte das pessoas, a informação antes creditada como válida pode, a exemplo da tendência de viés de confirmação, “continuar a moldar a memória das pessoas e influenciar suas decisões”, escrevem os autores. O processo se intensifica quando sentimentos de “aversão, medo e felicidade” são suscitados pelas mensagens disfarçadas de notícia.
O artigo avisa que, se a inconsistência gerada por informações falsas vier das ações de propaganda, as audiências tendem a fazer vista grossa para as contradições. Não apresentam, no entanto, conclusões sobre como a “inconsistência se acumula para uma única figura poderosa”, ou seja, quando o líder discursa e traz para si a responsabilidade de recuar de posições e mentir claramente. “Isso não pode ser bom para sua credibilidade”, dizem os autores.
Para tentar inibir efeitos da tática, Paul e Miriam indicam brevemente que apenas rebater as mentiras disseminadas não é uma ação eficaz. Já mostrar outra narrativa, tal como contar como funciona a criação de mentiras dos propagandistas, sim, seria um método mais efetivo. De maneira simplificada, é o que o linguista norte-americano George Lakoff chama de verdade-sanduíche:2 primeiro exponha o que é verdade; depois aponte qual é a mentira e diga como ela é diferente do fato verdadeiro; depois repita a verdade e conte quais são as consequências dessa contradição. A ideia é tentar desmentir discursos falsos sem repeti-los.
O Brasil de Bolsonaro
Para chegarmos ao Brasil atual e compreendermos como a tática do firehosingse aproxima de Bolsonaro, devemos considerar como gênese o ano de 2013 e entender sua ascensão como parte de outro método: a guerra híbrida. Essa é a análise de Piero Leirner, antropólogo e especialista em estratégia militar. Desde as Jornadas de Junho, os escândalos de corrupção do establishmentpolítico e suas conclusões na Justiça, o descrédito do Legislativo, o impeachment de Dilma Rousseff e, finalmente, as eleições, grupos políticos se aproveitam desses fatos e usam discursos antipetistas e antissistema com o objetivo de mobilizar também por meio da confusão. Criou-se, segundo Leirner, um ambiente de dissonância cognitiva que seria restabelecido sempre com uma solução de ordem, sendo Bolsonaro o que mais se aproveitou disso. “Esse processo começou como guerra híbrida e terminou como firehose of falsehood”, diz o professor da Universidade Federal de São Carlos. “Bolsonaro foi a ponta de um processo que começou lá atrás, mas que não se tinha certeza de como iria terminar.”
Para Leirner, o jogo de informações e contrainformações3 é indício de que a guerra híbrida4 (também chamada de não convencional, formulada pelo pesquisador russo-americano Andrew Korybko) foi estratégia da qual o presidente eleito se beneficiou. Assim, posições extremistas e desconexas de aliados de Bolsonaro geraram ganhos políticos, contanto que estivessem coesos aos valores centrais do universo bolsonarista: antielitismo, autoritarismo e conservadorismo moral. O que importa, acrescenta Leirner, “é a qualidade da informação, o que ela mobiliza, que símbolos e estruturas vão ser utilizados, e como”. No embate assimétrico que acontece nas redes sociais, mais especificamente no WhatsApp, mensagens partem de um “núcleo exemplar” (que podem ser aliados de Bolsonaro) e chegam a “estações de repetição” (autônomas ou não) que ampliam o alcance das mensagens. O ecossistema criado é descentralizado e estimula voluntários a produzir em rede seus próprios conteúdos, interagir com outros grupos e legitimar práticas. Esquema similar foi descrito em reportagem da revista Época,5mencionando a possibilidade de segmentação de disparos em massa para grupos específicos. De forma intensa, aparições em TV e grande imprensa abastecem o processo.
Com a institucionalização da figura de Bolsonaro, algo que já pode ser visto na formação ministerial, o cenário muda. A suposta estratégia de semear instabilidade para colher autoridade conferiu seus efeitos colaterais, denotando inabilidade política. Os recuos de Bolsonaro sobre a redução de status dos ministérios do Meio Ambiente e do Trabalho são exemplos de que há mais fogo amigo ao seu redor do que ele mesmo esperava. Com indícios como esses, afirma Leirner, “tudo de que Bolsonaro não precisa é continuar a estratégia [de guerra assimétrica], pois corre o risco de ela própria produzir instabilidade para ele”.
A comunicação direta com sua base, todavia, dá sinais de que essa estratégia vai continuar. Seu primeiro discurso como presidente eleito foi uma transmissão ao vivo no Facebook, com alguns veículos de comunicação barrados. Seguindo a cartilha de Donald Trump – este um espelho midiático e almejado aliado político –, o Twitter é seu canal oficial de comunicação. Ali ele faz, para quase 2,5 milhões de seguidores, desde anúncios oficiais até endossos a canais de YouTube que exaltam sua política. Como Trump, Bolsonaro posiciona parte da imprensa tradicional como adversária e aposta em meios de comunicação alternativos. No primeiro pronunciamento pós-eleição, Bolsonaro mostrou apreço por seu público nas redes sociais: “Eu só cheguei aqui porque vocês, internautas, povo brasileiro, acreditaram em mim”.
Novos caminhos para novas verdades
Nas redes sociais, notícias distorcidas (muitas vezes falsas) correm fácil e mais rápido que fatos verificáveis por poderem apelar a emoções. No WhatsApp, rede que segundo reportagem da Folha de S.Paulo (18 out. 2018) foi usada por empresas para disparos de centenas de milhões de mensagens anti-PT durante as eleições, a comunicação de 127 milhões de brasileiros em redes privadas e criptografadas se transformou, como descreveu a revista Wired, em um “boca a boca em larga escala”.6 Segundo pesquisa Datafolha de 26 de outubro, metade do eleitorado que usa o WhatsApp (66%) diz acreditar nas notícias que recebe pelo aplicativo.
Mais de 80% dos eleitores de Bolsonaro acreditaram na informação falsa de que Fernando Haddad (PT) distribuiu um “kit gay” (apelido pejorativo do material didático Escola sem homofobia) para crianças em escolas quando era ministro da Educação, de acordo com levantamento IDEIA Big Data/Avaaz. Mesmo após o pleito, o presidente eleito voltou a usar o discurso falso em entrevista ao Jornal Nacional.
O porquê da enésima repetição de uma mentira de 2011 oferece uma pista sobre como agir diante de discursos como esse, que buscam a polarização para se promover.
Como sugerido pelas professoras da UFRJ Tatiana Roque, historiadora da Ciência e da Filosofia, e Fernanda Bruno, pesquisadora de Tecnologias da Comunicação, discursos como o do “kit gay”, por exemplo, não se alastram apenas por desinformação, volume de mensagens (firehosing) ou falta de checagem factual. Conteúdos dessa natureza podem se espalhar por carregarem crenças e valores prévios alinhados a certos grupos. Em outras palavras, pode ser válido para muitas pessoas o seguinte raciocínio: “Isso pode ser falso, mas é útil para promover o que eu acredito” – situação essa que transcende campos políticos. Em artigo na Folha de S.Paulo (18 nov. 2018), as autoras apontam que uma alternativa seria propor uma nova forma de argumentar e nela combinar uma boa dose de crenças e valores comuns. Com base em um modelo proposto pela historiadora da Ciência Naomi Oreskes,7pode-se argumentar com um descrente do aquecimento global (a exemplo de Trump e do futuro chanceler brasileiro) sem depender totalmente de evidências científicas: “Se isso [aquecimento global] não estiver ocorrendo, não perderemos nada, pois teremos de todo modo criado um mundo melhor, com mais cuidado com o planeta e com a natureza”.
Estendendo o debate iniciado no artigo, Tatiana e Fernanda afirmam à reportagem que é necessário para a esquerda criar “novos parentescos entre nossos problemas”. Temas em disputa seriam, para Tatiana, a renda básica universal (“como forma de reconhecer os tipos de trabalho que já realizamos gratuitamente, seja nas redes sociais ou nas atividades domésticas”) e os compromissos com eficiência e gestão de instituições públicas (“não são exigências de direita, são de esquerda”). Outra pauta a ser trabalhada seria a educação pública de qualidade. “Será que uma parte considerável da população brasileira quer mesmo colocar toda essa categoria nesse clima de desconfiança?”, afirma Fernanda, referindo-se ao projeto Escola Sem Partido.
Sobretudo, para ambas, estratégias de comunicação, das instituições públicas às mídias, devem se tornar mais propositivas e menos reativas, atentando para os novos papéis de “valores, emoções e processos cognitivos” em um contexto de “produção e aferição da verdade”.
Escuta e “pessoalização da política”
Evan Davis, jornalista da BBC e autor do livro Post-Truth: Why We Have Reached Peak Bullshit and What We Can Do About It [Pós-verdade: por que atingimos um pico de besteiras e o que podemos fazer a respeito] (Little, Brown Book Group, 2017), reitera que apenas os fatos não afetam os apoiadores de líderes populistas (ele define Bolsonaro como tal). “Ao corrigir sempre os fatos, você mostra que o líder populista está errado, mas fica do lado do velho establishment”, diz o britânico ao Le Monde Diplomatique Brasil. Ele recomenda que, na argumentação, mostrar-se como confiável e passível de erro é o começo para o “outro lado” acreditar em você. “Se diz que seu lado está errado, você ganha muito mais confiança de quem apoia o populista”, afirma. Merecer a confiança do outro, segundo ele, deve vir primeiro. Depois, os fatos.
Para explicar um tema espinhoso e ao mesmo tempo considerar vivências em jogo, outra opção de argumentação pode ser a imaginação sociológica, conceito cunhado pelo sociólogo C. Wright Mills. “É casar história e biografia. É trazer um contexto e humanizar as pessoas, saber qual ação política elas estão exercendo na vida e, com base nisso, criar uma conexão”, afirma Sabrina Fernandes, socióloga e youtuber no canal Tese Onze. Para ela, ouvir seus interlocutores é compreender uma realidade particular com implicações sociais. “É muito mais produtivo a gente oferecer as ferramentas corretas para as pessoas chegarem às próprias conclusões”, diz a também professora substituta e pesquisadora da Universidade de Brasília.
A ativista e comunicadora Debora Baldin, amiga de Sabrina, reafirma essa aposta em equipar as pessoas com métodos de avaliação de sua própria realidade. As duas enaltecem a escuta ativa como ferramenta de transformação política,8 pois mobilizaram grupos de panfletagem “diferentes” em São Paulo e Brasília durante o segundo turno das eleições. O diferencial das conversas era não falar de política partidária, mas de programas de governo com base em angústias pessoais, seja na rodoviária de Brasília, seja na porta de uma igreja evangélica da periferia de São Paulo. “O presencial é muito mais efetivo do que o virtual. As pessoas têm muita necessidade de diálogo”, afirma Debora. Mesmo admitindo que o caminho analógico é “mais lento” que o digital, ela acredita que disponibilizar um “modelo replicável de método e conteúdo” de argumentação pode formar “multiplicadores” para disputar nas redes sociais a veracidade dos fatos – pois nesses círculos haverá mais confiança entre os envolvidos. “Eles vão ter muito mais credibilidade para fazer isso do que eu”, afirma Sabrina. Em São Paulo, oficinas debatem desde inteligência emocional até reforma da previdência, passando pela “doutrina do choque”, da jornalista Naomi Klein, no centro de cultura e acolhimento de LGBTs Casa1. Ações nas ruas paulistanas voltam em dezembro.
No mesmo tom, a futura deputada estadual do Psol por São Paulo Mônica Seixas, eleita junto com outros oito militantes do mandato coletivo da Bancada Ativista, encampa a estratégia da “pessoalização da política” para criar “vínculos íntimos” com eleitores. “Nós, da Bancada Ativista, somos vulneráveis e periféricos de diversas formas. Nossa vida é o centro do debate da política que a gente quer criar”, afirma a jornalista de formação. “Sabemos que não vamos disputar com os formuladores das redes [de direita], mas precisamos disputar o [mesmo] público”, analisa. Alexandria Ocasio-Cortez, 28 anos, eleita em novembro como a parlamentar mais jovem da história do Congresso dos Estados Unidos, que teve súbita ascensão dentro da esquerda norte-americana, é uma inspiração para Mônica por mobilizar seus apoiadores mostrando os bastidores de sua vida política no Instagram. A agenda da Bancada Ativista deve rebater discursos conservadores para assegurar direitos, Mônica reconhece, mas pretende “criar pautas que vão ao encontro da solução das necessidades reais”. Exemplo: para rechaçar o Escola Sem Partido, argumentar com Escola Sem Estrutura. “Não é uma reação, é uma luta concreta para mobilizar as pessoas.”
Para Tatiana (que concorreu a deputada federal do Rio de Janeiro pelo Psol) e Fernanda, o próximo passo seria construir consensos por meio de dispositivos coletivos, os quais “talvez desafiem muito mais as crenças tradicionais da esquerda do que as dos movimentos identitários”. “O problema é a falta de estratégia geral da esquerda para lidar com pessoas com quem ela perdeu o contato, para fazer trabalho de base, para dialogar com os novos trabalhadores e o precariado”, analisam.
Assemelhando-se ao que a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado defende para uma reinvenção da esquerda (“mais Mano Brown; menos manifesto de intelectuais e mais conversa olho no olho, ao bom e velho estilo de banquinha de bolo ‘vamos conversar?’”), a saída parece ser mudar a chave do diálogo.9 Ou, como Mano Brown intima: “Deixou de entender o povão, já era. […] Se não sabe, volta pra base e vai procurar saber”.10
* Renan Borges Simão é jornalista.
Notas
Coautor do artigo com a psicóloga social Miriam Matthews, o cientista social Christopher Paul diz no vídeo que nunca pensou que “alguém pudesse aplicar o estudo à política norte-americana”. A relutância de Paul tem razões políticas. O estudo que concebe o firehosing foi financiado pelo Gabinete do Secretário de Defesa dos Estados Unidos, e a Rand é, há mais de meio século, ligada à segurança nacional norte-americana. O think tank afirmou que Paul e Miriam não estavam disponíveis para falar com a reportagem.
Tendo como recorte o período de 2008 até a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014, o estudo descreve o funcionamento da máquina de propaganda russa para indicar como essas mensagens podem ser assimiladas, apoiando-se em conceitos como influência e persuasão da psicologia experimental e social.
Além dos quatro elementos de disseminação de informação já citados, o artigo aponta que os principais canais de propaganda são noticiários de TV e web, “trolls de internet financiados” para atuar nas redes sociais e discursos falsos de Vladimir Putin. Para os autores, eles têm como objetivo “entreter, confundir e cansar” as pessoas. Essas frentes multicanais, quando combinadas com a máquina governamental, criam um monopólio das primeiras impressões. Por não precisar checar fatos e declarações, apenas dar interpretações favoráveis ao governo, a propaganda sempre tem a “primeira notícia”. A combinação das primeiras impressões e a repetição de mensagens com o mesmo teor ideológico tendem a gerar mais credibilidade, diz o estudo. Quando são detalhadas por evidências secundárias – como acontece em toda boa propaganda –, o senso de autoridade é elevado. Até quando fatos checados e desbancados alcançam grande parte das pessoas, a informação antes creditada como válida pode, a exemplo da tendência de viés de confirmação, “continuar a moldar a memória das pessoas e influenciar suas decisões”, escrevem os autores. O processo se intensifica quando sentimentos de “aversão, medo e felicidade” são suscitados pelas mensagens disfarçadas de notícia.
O artigo avisa que, se a inconsistência gerada por informações falsas vier das ações de propaganda, as audiências tendem a fazer vista grossa para as contradições. Não apresentam, no entanto, conclusões sobre como a “inconsistência se acumula para uma única figura poderosa”, ou seja, quando o líder discursa e traz para si a responsabilidade de recuar de posições e mentir claramente. “Isso não pode ser bom para sua credibilidade”, dizem os autores.
Para tentar inibir efeitos da tática, Paul e Miriam indicam brevemente que apenas rebater as mentiras disseminadas não é uma ação eficaz. Já mostrar outra narrativa, tal como contar como funciona a criação de mentiras dos propagandistas, sim, seria um método mais efetivo. De maneira simplificada, é o que o linguista norte-americano George Lakoff chama de verdade-sanduíche:2 primeiro exponha o que é verdade; depois aponte qual é a mentira e diga como ela é diferente do fato verdadeiro; depois repita a verdade e conte quais são as consequências dessa contradição. A ideia é tentar desmentir discursos falsos sem repeti-los.
O Brasil de Bolsonaro
Para chegarmos ao Brasil atual e compreendermos como a tática do firehosingse aproxima de Bolsonaro, devemos considerar como gênese o ano de 2013 e entender sua ascensão como parte de outro método: a guerra híbrida. Essa é a análise de Piero Leirner, antropólogo e especialista em estratégia militar. Desde as Jornadas de Junho, os escândalos de corrupção do establishmentpolítico e suas conclusões na Justiça, o descrédito do Legislativo, o impeachment de Dilma Rousseff e, finalmente, as eleições, grupos políticos se aproveitam desses fatos e usam discursos antipetistas e antissistema com o objetivo de mobilizar também por meio da confusão. Criou-se, segundo Leirner, um ambiente de dissonância cognitiva que seria restabelecido sempre com uma solução de ordem, sendo Bolsonaro o que mais se aproveitou disso. “Esse processo começou como guerra híbrida e terminou como firehose of falsehood”, diz o professor da Universidade Federal de São Carlos. “Bolsonaro foi a ponta de um processo que começou lá atrás, mas que não se tinha certeza de como iria terminar.”
Para Leirner, o jogo de informações e contrainformações3 é indício de que a guerra híbrida4 (também chamada de não convencional, formulada pelo pesquisador russo-americano Andrew Korybko) foi estratégia da qual o presidente eleito se beneficiou. Assim, posições extremistas e desconexas de aliados de Bolsonaro geraram ganhos políticos, contanto que estivessem coesos aos valores centrais do universo bolsonarista: antielitismo, autoritarismo e conservadorismo moral. O que importa, acrescenta Leirner, “é a qualidade da informação, o que ela mobiliza, que símbolos e estruturas vão ser utilizados, e como”. No embate assimétrico que acontece nas redes sociais, mais especificamente no WhatsApp, mensagens partem de um “núcleo exemplar” (que podem ser aliados de Bolsonaro) e chegam a “estações de repetição” (autônomas ou não) que ampliam o alcance das mensagens. O ecossistema criado é descentralizado e estimula voluntários a produzir em rede seus próprios conteúdos, interagir com outros grupos e legitimar práticas. Esquema similar foi descrito em reportagem da revista Época,5mencionando a possibilidade de segmentação de disparos em massa para grupos específicos. De forma intensa, aparições em TV e grande imprensa abastecem o processo.
Com a institucionalização da figura de Bolsonaro, algo que já pode ser visto na formação ministerial, o cenário muda. A suposta estratégia de semear instabilidade para colher autoridade conferiu seus efeitos colaterais, denotando inabilidade política. Os recuos de Bolsonaro sobre a redução de status dos ministérios do Meio Ambiente e do Trabalho são exemplos de que há mais fogo amigo ao seu redor do que ele mesmo esperava. Com indícios como esses, afirma Leirner, “tudo de que Bolsonaro não precisa é continuar a estratégia [de guerra assimétrica], pois corre o risco de ela própria produzir instabilidade para ele”.
A comunicação direta com sua base, todavia, dá sinais de que essa estratégia vai continuar. Seu primeiro discurso como presidente eleito foi uma transmissão ao vivo no Facebook, com alguns veículos de comunicação barrados. Seguindo a cartilha de Donald Trump – este um espelho midiático e almejado aliado político –, o Twitter é seu canal oficial de comunicação. Ali ele faz, para quase 2,5 milhões de seguidores, desde anúncios oficiais até endossos a canais de YouTube que exaltam sua política. Como Trump, Bolsonaro posiciona parte da imprensa tradicional como adversária e aposta em meios de comunicação alternativos. No primeiro pronunciamento pós-eleição, Bolsonaro mostrou apreço por seu público nas redes sociais: “Eu só cheguei aqui porque vocês, internautas, povo brasileiro, acreditaram em mim”.
Novos caminhos para novas verdades
Nas redes sociais, notícias distorcidas (muitas vezes falsas) correm fácil e mais rápido que fatos verificáveis por poderem apelar a emoções. No WhatsApp, rede que segundo reportagem da Folha de S.Paulo (18 out. 2018) foi usada por empresas para disparos de centenas de milhões de mensagens anti-PT durante as eleições, a comunicação de 127 milhões de brasileiros em redes privadas e criptografadas se transformou, como descreveu a revista Wired, em um “boca a boca em larga escala”.6 Segundo pesquisa Datafolha de 26 de outubro, metade do eleitorado que usa o WhatsApp (66%) diz acreditar nas notícias que recebe pelo aplicativo.
Mais de 80% dos eleitores de Bolsonaro acreditaram na informação falsa de que Fernando Haddad (PT) distribuiu um “kit gay” (apelido pejorativo do material didático Escola sem homofobia) para crianças em escolas quando era ministro da Educação, de acordo com levantamento IDEIA Big Data/Avaaz. Mesmo após o pleito, o presidente eleito voltou a usar o discurso falso em entrevista ao Jornal Nacional.
O porquê da enésima repetição de uma mentira de 2011 oferece uma pista sobre como agir diante de discursos como esse, que buscam a polarização para se promover.
Como sugerido pelas professoras da UFRJ Tatiana Roque, historiadora da Ciência e da Filosofia, e Fernanda Bruno, pesquisadora de Tecnologias da Comunicação, discursos como o do “kit gay”, por exemplo, não se alastram apenas por desinformação, volume de mensagens (firehosing) ou falta de checagem factual. Conteúdos dessa natureza podem se espalhar por carregarem crenças e valores prévios alinhados a certos grupos. Em outras palavras, pode ser válido para muitas pessoas o seguinte raciocínio: “Isso pode ser falso, mas é útil para promover o que eu acredito” – situação essa que transcende campos políticos. Em artigo na Folha de S.Paulo (18 nov. 2018), as autoras apontam que uma alternativa seria propor uma nova forma de argumentar e nela combinar uma boa dose de crenças e valores comuns. Com base em um modelo proposto pela historiadora da Ciência Naomi Oreskes,7pode-se argumentar com um descrente do aquecimento global (a exemplo de Trump e do futuro chanceler brasileiro) sem depender totalmente de evidências científicas: “Se isso [aquecimento global] não estiver ocorrendo, não perderemos nada, pois teremos de todo modo criado um mundo melhor, com mais cuidado com o planeta e com a natureza”.
Estendendo o debate iniciado no artigo, Tatiana e Fernanda afirmam à reportagem que é necessário para a esquerda criar “novos parentescos entre nossos problemas”. Temas em disputa seriam, para Tatiana, a renda básica universal (“como forma de reconhecer os tipos de trabalho que já realizamos gratuitamente, seja nas redes sociais ou nas atividades domésticas”) e os compromissos com eficiência e gestão de instituições públicas (“não são exigências de direita, são de esquerda”). Outra pauta a ser trabalhada seria a educação pública de qualidade. “Será que uma parte considerável da população brasileira quer mesmo colocar toda essa categoria nesse clima de desconfiança?”, afirma Fernanda, referindo-se ao projeto Escola Sem Partido.
Sobretudo, para ambas, estratégias de comunicação, das instituições públicas às mídias, devem se tornar mais propositivas e menos reativas, atentando para os novos papéis de “valores, emoções e processos cognitivos” em um contexto de “produção e aferição da verdade”.
Escuta e “pessoalização da política”
Evan Davis, jornalista da BBC e autor do livro Post-Truth: Why We Have Reached Peak Bullshit and What We Can Do About It [Pós-verdade: por que atingimos um pico de besteiras e o que podemos fazer a respeito] (Little, Brown Book Group, 2017), reitera que apenas os fatos não afetam os apoiadores de líderes populistas (ele define Bolsonaro como tal). “Ao corrigir sempre os fatos, você mostra que o líder populista está errado, mas fica do lado do velho establishment”, diz o britânico ao Le Monde Diplomatique Brasil. Ele recomenda que, na argumentação, mostrar-se como confiável e passível de erro é o começo para o “outro lado” acreditar em você. “Se diz que seu lado está errado, você ganha muito mais confiança de quem apoia o populista”, afirma. Merecer a confiança do outro, segundo ele, deve vir primeiro. Depois, os fatos.
Para explicar um tema espinhoso e ao mesmo tempo considerar vivências em jogo, outra opção de argumentação pode ser a imaginação sociológica, conceito cunhado pelo sociólogo C. Wright Mills. “É casar história e biografia. É trazer um contexto e humanizar as pessoas, saber qual ação política elas estão exercendo na vida e, com base nisso, criar uma conexão”, afirma Sabrina Fernandes, socióloga e youtuber no canal Tese Onze. Para ela, ouvir seus interlocutores é compreender uma realidade particular com implicações sociais. “É muito mais produtivo a gente oferecer as ferramentas corretas para as pessoas chegarem às próprias conclusões”, diz a também professora substituta e pesquisadora da Universidade de Brasília.
A ativista e comunicadora Debora Baldin, amiga de Sabrina, reafirma essa aposta em equipar as pessoas com métodos de avaliação de sua própria realidade. As duas enaltecem a escuta ativa como ferramenta de transformação política,8 pois mobilizaram grupos de panfletagem “diferentes” em São Paulo e Brasília durante o segundo turno das eleições. O diferencial das conversas era não falar de política partidária, mas de programas de governo com base em angústias pessoais, seja na rodoviária de Brasília, seja na porta de uma igreja evangélica da periferia de São Paulo. “O presencial é muito mais efetivo do que o virtual. As pessoas têm muita necessidade de diálogo”, afirma Debora. Mesmo admitindo que o caminho analógico é “mais lento” que o digital, ela acredita que disponibilizar um “modelo replicável de método e conteúdo” de argumentação pode formar “multiplicadores” para disputar nas redes sociais a veracidade dos fatos – pois nesses círculos haverá mais confiança entre os envolvidos. “Eles vão ter muito mais credibilidade para fazer isso do que eu”, afirma Sabrina. Em São Paulo, oficinas debatem desde inteligência emocional até reforma da previdência, passando pela “doutrina do choque”, da jornalista Naomi Klein, no centro de cultura e acolhimento de LGBTs Casa1. Ações nas ruas paulistanas voltam em dezembro.
No mesmo tom, a futura deputada estadual do Psol por São Paulo Mônica Seixas, eleita junto com outros oito militantes do mandato coletivo da Bancada Ativista, encampa a estratégia da “pessoalização da política” para criar “vínculos íntimos” com eleitores. “Nós, da Bancada Ativista, somos vulneráveis e periféricos de diversas formas. Nossa vida é o centro do debate da política que a gente quer criar”, afirma a jornalista de formação. “Sabemos que não vamos disputar com os formuladores das redes [de direita], mas precisamos disputar o [mesmo] público”, analisa. Alexandria Ocasio-Cortez, 28 anos, eleita em novembro como a parlamentar mais jovem da história do Congresso dos Estados Unidos, que teve súbita ascensão dentro da esquerda norte-americana, é uma inspiração para Mônica por mobilizar seus apoiadores mostrando os bastidores de sua vida política no Instagram. A agenda da Bancada Ativista deve rebater discursos conservadores para assegurar direitos, Mônica reconhece, mas pretende “criar pautas que vão ao encontro da solução das necessidades reais”. Exemplo: para rechaçar o Escola Sem Partido, argumentar com Escola Sem Estrutura. “Não é uma reação, é uma luta concreta para mobilizar as pessoas.”
Para Tatiana (que concorreu a deputada federal do Rio de Janeiro pelo Psol) e Fernanda, o próximo passo seria construir consensos por meio de dispositivos coletivos, os quais “talvez desafiem muito mais as crenças tradicionais da esquerda do que as dos movimentos identitários”. “O problema é a falta de estratégia geral da esquerda para lidar com pessoas com quem ela perdeu o contato, para fazer trabalho de base, para dialogar com os novos trabalhadores e o precariado”, analisam.
Assemelhando-se ao que a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado defende para uma reinvenção da esquerda (“mais Mano Brown; menos manifesto de intelectuais e mais conversa olho no olho, ao bom e velho estilo de banquinha de bolo ‘vamos conversar?’”), a saída parece ser mudar a chave do diálogo.9 Ou, como Mano Brown intima: “Deixou de entender o povão, já era. […] Se não sabe, volta pra base e vai procurar saber”.10
* Renan Borges Simão é jornalista.
Notas
1 Elizabeth Kolbert, “Why facts don’t change our minds” [Por que fatos não mudam nossa mentalidade], New Yorker, 27 fev. 2017.
2 Sean Illing, “How the media should respond to Trump’s lies” [Como a mídia deve reagir às mentiras de Trump], Vox, 18 nov. 2018.
3 Piero Leirner, “Uma contribuição para o anti-Bolsonarismo”, Sul 21, 9 out. 2018.
4 Guilherme Seto, “Comunicação de Bolsonaro usa tática militar de ponta, diz especialista”, Folha de S.Paulo, 14 out. 2018.
5 Gabriel Ferreira e João Pedro Soares, “Comunicação de Bolsonaro usa tática militar de ponta, diz especialista”, Época, 24 out. 2018.
6 Antonio García Martínez, “Why WhatsApp became a hotbed for rumors and lies in Brazil” [Por que o WhatsApp se tornou um viveiro de rumores e mentiras no Brasil], Wired, 18 abr. 2018.
7 Ver Naomi Oreskes, “Por que devemos confiar nos cientistas”, TEDSalon NY2014, maio 2014.
8 Benoit Denizet-Lewis, “How Do You Change Voters’ Minds? Have a Conversation” [Como mudar a mentalidade dos eleitores? Converse], The New York Times Magazine, 7 abr. 2016.
9 Rosana Pinheiro-Machado, “O que as forças progressistas podem fazer agora”, The Intercept Brasil, 29 out. 2018.
10 Ver:
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