segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Não é populismo, é fascismo

Por Manuel Carvalho da Silva, no site Sul-21:

É surpreendente que sociedades carregadas de injustiças e desigualdades, polarizadas em guetos, se tornem perigosas? Sociedades onde uma ínfima minoria é muita rica e manipula todos os poderes, uma grande parte é extremamente pobre e não tem voz, e no meio fica um enorme massa de seres humanos a deslizar para o lado da privação e da desesperança são sociedades em perigo. Neste contexto, será surpresa surgirem messias providenciais que, prometendo autoridade e segurança, encontram um público disponível para os apoiar e até para lhes propiciar vitórias eleitorais? Não, não é. Está a acontecer hoje o que já aconteceu no passado.

Não é preciso recorrer a eufemismos para designar este tipo de processos políticos. Anda meio mundo a falar do fenômeno do populismo e dos seus perigos, quando o que está na nossa frente são mesmo expressões do fascismo. A diferença na sua manifestação decorre das novas condições das sociedades, das formas de relacionamento, de comunicar, de agir que, aliás, até lhe potenciam camuflagens.

Deparamo-nos com expressões de fascismo como ele sempre foi. O que melhor o carateriza é velho: criminalização de opiniões críticas; opressão de classe; sobre-exploração do trabalho; submissão das mulheres; discriminação de minorias; afirmação do racismo e da xenofobia; ataque à cultura e a uma educação plural; desacreditação de livres representações coletivas que expressam os diversos interesses da sociedade; promoção de animosidades e ódios para abrir campo a um unanimismo ditatorial a que toda a estrutura e organização do Estado se devem submeter, porque pretensamente interpreta o interesse nacional; instrumentalização dos tribunais e dos sistemas de justiça; e, progressivamente, descaraterização e suspensão dos mecanismos democráticos de eleição e representação.

Nas últimas décadas têm-se vindo a gerar e a naturalizar instabilidades, precariedades e inseguranças em vez de se lhes dar combate e de assegurar o seu controlo. Até a maior parte das abordagens sobre os avanços científicos e tecnológicos é apresentada quase só nas variáveis que sustentam visões apocalíticas do futuro, exatamente para submeter os seres humanos. Ampliaram-se as disfunções e roturas nas relações entre as pessoas, as gerações, as comunidades e os povos. As apropriações indevidas da riqueza e a maior expressão do roubo a que hoje assistimos tornaram-se “legais”.

A impotência perante as injustiças revolta as pessoas e atira-as para reações primárias que se tornam alimento do fascismo. Não é essa massa de indivíduos que é fascista ou vê o fascismo como solução. O que se passa é que a falta de segurança numa imensidão de situações – desde as precariedades no trabalho à insegurança pública – gera medos que isolam e acantonam as pessoas, diminuindo-lhes os ângulos de visão e de apreciação objetiva sobre o que se passa na sociedade. Qualquer cidadão, por mais esclarecido que possa ser, já experimentou esses sentimentos e bloqueios.

Temos hoje na Europa e noutros continentes dinâmicas fascistas e uma enorme condescendência perante o seu desenvolvimento. Muita boa gente atribui aos fascistas o “direito democrático” de livremente se explicarem, exprimirem e propagandearem, como se a democracia pudesse suportar tudo.

Em poucos dias, o novo presidente do Brasil e a sua equipe mostram-nos como é perigosa essa “tolerância”. O que eles expressam não são meros tiques de autoritarismo ou excessos conservadores, é sim um programa fascista que estilhaça o quadro de valores e de simbologias que o Brasil conquistou e ofereceu ao Mundo após a ditadura, é a pretensão de proibir a livre expressão de ideias a que chamam “ideologia”, de cilindrar os direitos dos trabalhadores e o próprio direito do trabalho, de pôr polícias a atirar para matar, supostamente bandidos, na prática tudo o que mexa em contracorrente.

Demorará algum tempo até que a maioria do povo brasileiro se dê conta da verdadeira natureza do bicho. Esperemos que não seja, desta vez, o tempo de toda uma geração, como aconteceu no passado.

Temos a responsabilidade de agir para evitar que a besta se instale no Brasil, no nosso país ou em qualquer outro.

* Manuel Carvalho da Silva é pesquisador português e professor universitário. Artigo publicado originalmente no Jornal de Notícias, de Portugal.

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