Por Augusto Buonicore, no site da Fundação Maurício Grabois:
“Ser radical é ir às raízes dos problemas e a raiz do homem é o próprio homem” (K. Marx).
Estávamos no ano de 1949 e um jovem estudioso, vivendo no interior da Bahia, resolveu enviar uma longa carta ao historiador Caio Prado Jr. Nela, falava dos seus planos de realizar uma pesquisa sobre a história das rebeliões negras no Brasil. Para isso, pedia ajuda ao eminente intelectual marxista. A resposta, contudo, não foi nada animadora. Ela sugeria que o rapaz abandonasse o plano original, pois morava numa região onde a escravatura não tinha tido um grande papel. E, mais grave, ali não teria condições de ter acesso às fontes históricas necessárias para desenvolver tão ousado projeto. Então, propunha que o missivista pegasse a “pena” e contasse “com toda simplicidade” o que “observava à sua volta”. Ou seja, descrevesse a situação do sertão baiano, onde vivia. Uma sugestão bastante prudente. Nove entre dez orientadores acadêmicos proporiam a mesma coisa.
Mas, felizmente, o jovem de nossa história resolveu ignorar o conselho sensato e se meteu na difícil, e pouco promissora, tarefa de escrever sobre a história da luta dos negros brasileiros. O primeiro grande resultado desse esforço hercúleo foi o livro Rebeliões da Senzala, publicado em 1959. Hoje considerado um clássico da nossa historiografia. O nome do garoto, como vocês já devem ter adivinhado, era Clóvis Moura.
Rebeliões da Senzala rompeu com o paradigma predominante, que subestimava o papel dos negros escravizados no processo de construção da nação brasileira e da sua própria libertação. Os escravos não eram – como em geral se afirmava – uma massa passiva sobre a qual os verdadeiros atores interpretavam o drama histórico. Durante todo o período colonial e imperial eles protestaram e lutaram por sua liberdade e dignidade. As revoltas e os quilombos não foram algo excepcional, exceções que confirmavam a regra. Constituíram-se como uma maneira de ser dos trabalhadores numa sociedade assentada na mais brutal forma de exploração: a escravidão. Mais de um século antes dois grandes intelectuais revolucionários alemães haviam afirmado que “a luta de classes era o motor da história”. No Brasil, as coisas não podiam ser diferentes.
Embora considerado um trabalho pioneiro – e até mesmo um clássico –, Rebeliões da Senzala não deu ao autor o reconhecimento acadêmico merecido. Ele continuou sendo um intelectual à margem da universidade e da vertente principal do pensamento social brasileiro. Contudo, não desanimou e continuou perseguindo o seu grande objetivo: entender as origens e as razões da permanência da opressão dos negros no Brasil, numa época em que muitos diziam que isso simplesmente não existia. Muitos viam o nosso país como uma terra sem preconceitos, sem racismos. Consideravam-no uma “democracia racial”.
A respeito disso, damos a palavra ao professor Kabengele Munanga: “Sobre um total de vinte e sete títulos em nosso levantamento, vinte deles tratam exclusivamente da história, dos problemas e da situação do negro brasileiro. Neste sentido, ele foi um dos maiores estudiosos, pensadores e intelectuais da questão negra no país”. E conclui: Clóvis “foi realmente um intelectual orgânico do povo negro”. Entre os muitos títulos que publicou estão: O negro de bom escravo a mau cidadão, Os quilombos e a rebelião negra, Brasil: as raízes do protesto negro, As injustiças de Clio: o negro na historiografia brasileira, Sociologia do negro brasileiro, História do negro brasileiro e Dicionário da escravidão negra no Brasil.
O livro Dialética Radical do Brasil Negro, como outros tantos trabalhos de Clóvis Moura, estava fora de catálogo há muito tempo e vinha se tornando uma verdadeira raridade bibliográfica. Fato que, sem dúvida, acarretou grandes prejuízos àqueles jovens estudiosos e militantes sociais que desejavam ter contato direto com essa interpretação radical e original da formação social brasileira. Por isso, a Fundação Maurício Grabois e o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre o Negro Brasileiro da USP resolveram unir esforços visando a republicá-la, contribuindo para maior difusão do pensamento de Clóvis Moura.
A primeira edição foi lançada há exatamente 20 anos, quando o neoliberalismo dava as cartas na América Latina e no Brasil. Naquela época, os movimentos sociais lutavam diariamente para preservar os seus direitos. Hoje a situação está mudada. Desde a posse do presidente Lula em 2003, o povo pobre não apenas tem mantido como vem ampliando suas conquistas. A população negra – que constitui a base da nossa pirâmide social – tornou-se a maior beneficiada pelos projetos governamentais. Ganhou com o aumento real do salário mínimo, a preservação do emprego, a extensão de direitos às empregadas domésticas, a instituição dos programas Bolsa Família e Minha Casa Minha Vida. Atendendo à pressão do movimento negro, esses governos aprovaram o Estatuto da Igualdade Racial e a política de cotas raciais.
Os negros e pobres, finalmente, puderam ter acesso ao ensino superior. Este era, até então, uma espécie de reserva de mercado das camadas médias e altas. Essas mudanças também estão ligadas ao aumento da consciência, da organização e das lutas dos próprios negros, através de suas entidades. A diferença é que, dessa vez, os movimentos antirracistas encontraram governantes mais sensíveis e propensos a atender parte de suas reivindicações históricas.
Voltando a Clóvis Moura, devemos dizer que ele não foi apenas um intelectual, autor de uma série de livros importantes sobre a temática negra, mas também um ativo militante das causas sociais. Desde os anos 1940 atuava no Partido Comunista do Brasil, contribuindo com a sua imprensa. Algumas décadas depois, em plena ditadura militar, se envolveria diretamente com o movimento negro que se reorganizava sob novas bases. Tornou-se um colaborador do Movimento Negro Unificado (MNU) e da União de Negros Pela Igualdade (Unegro), da qual se transformou no principal ideólogo.
Fazia isso porque tinha consciência de sua situação enquanto negro brasileiro. Num artigo, Kabengele Munanga nos contou um episódio envolvendo Clóvis Moura e que marcou sua vida: “O conheci em 1976, durante o ciclo de palestras na ‘Semana do Negro’ (...). Para quem acabara de chegar ao Brasil, com certeza de estar entrando no maior país de democracia racial do mundo, a minha surpresa foi muito grande ao ouvir o professor Clóvis Moura denunciar, na sua fala, a discriminação racial contra o negro no país. O que mais me impressionou, foi ele se referir ao negro na primeira pessoa do plural ‘nós negros’, ao invés de falar na terceira pessoa ‘ele negro’, ‘eles negros’. Usava a primeira pessoa para deixar claro ao público presente, que ele também, embora mestiço claro, considerava-se negro. No auditório algumas pessoas murmuravam, inconformadas com a sua ousadia de considerar-se negro num país onde os não brancos são (...) chamados de morenos, até os indivíduos fenotipicamente negros”. Assim era Clóvis Moura.
O modo de produção escravista e suas etapas
O livro que o leitor tem em mãos traz importantes contribuições ao debate sobre os modos de produção predominantes nos primeiros séculos da nossa história. Clóvis Moura, compartilhando da tese defendida por Jacob Gorender, definia-o como um Modo de Produção Escravista, pois não havíamos tido naquele período a predominância de relações de tipo feudal e muito menos capitalista. Foi essa constatação original que nos permitiu compreender mais e melhor a dinâmica da luta de classes, especialmente o papel desempenhado pelos negros escravizados. Estes, finalmente, puderam aparecer com um novo estatuto na historiografia brasileira. Deixaram de ser vistos como elementos passivo se passaram a ser considerados agentes importantes no processo de transformação da sociedade e na própria superação da escravidão.
Clóvis foi um pouco além ao destacar a existência de duas grandes etapas no Modo de Produção Escravista: o Escravismo Pleno e o Escravismo Tardio. Ou seja, o nosso escravismo não poderia ser visto como um bloco homogêneo, sem diferenciações. Cada uma dessas etapas comportaria determinadas formas de relação (e de lutas) entre as duas classes sociais fundamentais: os senhores e os escravos.
O Escravismo Pleno teria prevalecido do início da colonização até a extinção do tráfico negreiro em 1850. Caracterizava-se “pelo fato de as relações de produção escravista dominar em quase que totalmente a dinâmica social, econômica e política”. O fluxo permanente dessa mercadoria humana para o Brasil, graças ao tráfico intercontinental, garantia a reprodução do sistema. Grande parte dos lucros adquiridos com a exportação de produtos primários gastava-sena importação de escravos africanos. Cerca de 10 milhões deles entraram no país, fazendo-os ultrapassar o número de homens livres nas principais regiões da colônia. Nesse momento, as formas mais avançadas de protesto dos cativos eram as rebeliões, guerrilhas e a montagem de quilombos rurais. Os escravos se viam obrigados a lutar praticamente sozinhos, pois não tinham apoio em nenhuma das frações das classes dominantes. A necessidade de manter-se a escravidão era quase um consenso entre os homens livres, inclusive os mais pobres.
O Escravismo Tardio começou com o fim do “comércio infame” e seguiu até a Abolição da Escravatura em 1888. Foi uma fase caracterizada pelo declínio do modo de produção escravista, considerado uma verdadeira excrescência econômica e social nas regiões onde o capitalismo estava mais desenvolvido. O fim do tráfico eliminou a possibilidade de aquisição, em grande escala, de mão de obra servil. A consequência foi o seu encarecimento e o agravamento da crise nas províncias do Norte e Nordeste do país. Setores da população livre, inclusive das classes dominantes, começaram a não ver mais perspectiva na manutenção da escravidão e passaram a apostar na sua gradual superação, substituída pelo trabalho livre dos imigrantes europeus. Estavam criadas as condições para o surgimento da campanha abolicionista e a aprovação das primeiras leis emancipacionistas, como as leis do Ventre Livre (1871) e do Sexagenário (1885).
Nesta etapa alterou-se a composição étnica da escravaria, deixando de ser africana e tornando-se predominantemente nacional. O número de cativos se reduziu e eles passaram a ser minoria da população. A complexificação do trabalho urbano possibilitou a multiplicação de ofícios exercidos pelos escravos no comércio e na incipiente indústria. O seu trabalho não se restringia às fazendas e aos engenhos. Essa mudança pulverizou e tornou menos radicais as ações de contestação à ordem escravocrata. As rebeliões violentas, as guerrilhas e a construção de grandes quilombos nas matas distantes, longe da “civilização branca”, deixaram de ser a marca principal da rebeldia escrava na segunda metade do século XIX. A revolta escrava continuou existindo – expressa nas fugas coletivas das fazendas –, mas ela passou a se subordinar política e ideologicamente aos abolicionistas, em geral membros das camadas médias urbanas.
O objetivo final do escravo não era mais a constituição de quilombos – organização social permanente, assentada em valores africanos – e sim constituir-se em trabalhador livre, integrado à sociedade de classe num capitalismo em formação. Os novos quilombos – como o do Jabaquara em Santos – não tinham o mesmo caráter dos antigos. Eles eram montados perto dos centros urbanos e protegidos pelo movimento abolicionista. Alguns deles, inclusive, serviam de celeiros para fornecimento de mão de obra barata. “A última etapa da escravidão no Brasil”, escreveu Clóvis Moura, “recriou um novo pensamento tanto na classe possuidora de escravos, como nas áreas de trabalho livre e dos próprios escravos”.
O autor ainda capta a transformação ideológica ocorrida no interior das classes dominantes durante a crise final do escravismo e nos primeiros anos da República Oligárquica. O racismo mudaria de qualidade, transformando-se no que conhecemos hoje como racismo moderno ou científico. Afirmou ele: “As elites intelectuais desenvolveram a ideologia do racismo como arma justificadora dessa estratégia (de dominação), qualificando o trabalhador nacional nãobranco de um modo geral, e o negro em particular, como incapaz de enfrentar os desafios da nova etapa de organização do trabalho que se apresentava com o fim da escravidão”. Entre o final do século XIX e o início do século XX, a ideologia racista tornou-se hegemônica, especialmente na academia e nas altas esferas da sociedade.
Segundo o “racismo científico”, os negros eram cultural e biologicamente inferiores aos brancos. Constituiu-se a partir daí toda uma hierarquia social, não formalizada através de leis, baseada nas diversas tonalidades da cor da pele. Nessa escala de valores o negro ocupava a base da pirâmide, os “mulatos” o meio e os brancos o topo. Tal mecanismo era extremamente funcional no processo de divisão dos próprios trabalhadores.
Por uma teoria engajada na luta do seu tempo
O livro Dialética Radical do Brasil Negro assume uma postura crítica diante de uma corrente que ganhou força na academia entre os anos 1980 e 1990. Uma corrente que subestimava os aspectos conflituosos existentes na relação senhor/escravo e focava suas atenções prioritariamente nos acordos (ou negociações) informais realizados entre eles, que permitiriam ao polo explorado (o escravo) conseguir melhores condições de vida e de trabalho. Seria esse comportamento negociado que explicaria as particularidades do escravismo brasileiro e não o conflito. E, ironicamente, concluíam: “aqui, entre Zumbi e Pai João, o escravo negocia”. Segundo essa lógica revisionista, “os sociólogos e historiadores que trabalham com a categoria da contradição e do conflito como elemento central da dinâmica social estariam se deixando influenciar por elementos emocionais, extracientíficos, ideológicos”. Essa crítica acadêmica era dirigida, fundamentalmente, contra a perspectiva marxista clássica.
O comunista Clóvis Moura negou, categoricamente, que “a conciliação, a barganha, o acordo tenham se sobreposto ao conflito e ao descontentamento; a pacificação à violência e a empatia à resistência”. Pelo contrário, para se entender “a dinâmica social de um modo de produção e os mecanismos que o fizeram ser substituído por outro, deve-se procurar nas contradições e nos conflitos as causas geradoras dessa dinâmica e não nas áreas neutras e estáticas de conciliação existente no sistema”. E concluiu: “se todos os escravos fossem disciplinados, fizessem acordos, aceitassem a cultura da escravidão (...), como diria Marx, a história pararia”. E a história não parou.
Uma das características salientes do pensamento de Clóvis Moura é a sadia desconfiança em relação à chamada sociologia (e historiografia) acadêmica. Em Sociologia da Práxis, publicada no México em 1976, Clóvis afirmou: “O seu título de ciência deu-lhe um status de respeitabilidade que se amplia à medida que ele se sofistica e refina. Os jargões cada vez mais indecifráveis; a criação de um código de linguagem cada vez mais inacessível aos leigos; a especialização cada dia mais extremada e que pesquisa detalhes cada vez menores de uma realidade social inquestionavelmente irrelevante; a sua pretensa imparcialidade; o empirismo e a sua falta de visão histórica colocam-na como um instrumento altamente valioso, sofisticado e inatacável no sentido de impedir a radicalização das soluções dos problemas sociais”. Segundo Fábio Nogueira: “para Clóvis Moura a única alternativa à sociologia acadêmica (...) seria a sociologia da práxis, construída fora desse espaço de legitimação intelectual, por cientistas ‘independentes’ no território livre em que o saber e a prática fundem-se na experiência”. Talvez isso explique as enormes dificuldades encontradas por esse autor para penetrar nas universidades brasileiras.
Nos anos 1980, Clóvis Moura recebeu o título de Notório Saber pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Um sinal, ainda que tardio, do reconhecimento oficial pelo seu profícuo trabalho intelectual. Mas isso não eliminou sua visão crítica quanto ao saber meramente institucional, desvinculado da prática transformadora, e nem diminuiu o preconceito da universidade em relação a ele. Quem segurou a bandeira do “pensamento moureano” durante todos esses anos – impedindo que ela caísse no esquecimento – foram os movimentos negros, especialmente os vinculados a uma perspectiva socialista e marxista. Fato que deixava Clóvis Moura orgulhoso, pois ele sabia que “uma ideia só se transforma em força material quando ganha as massas”.
* Augusto César Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e revolução brasileira: encontros e desencontros e Meu verbo é lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.
Estávamos no ano de 1949 e um jovem estudioso, vivendo no interior da Bahia, resolveu enviar uma longa carta ao historiador Caio Prado Jr. Nela, falava dos seus planos de realizar uma pesquisa sobre a história das rebeliões negras no Brasil. Para isso, pedia ajuda ao eminente intelectual marxista. A resposta, contudo, não foi nada animadora. Ela sugeria que o rapaz abandonasse o plano original, pois morava numa região onde a escravatura não tinha tido um grande papel. E, mais grave, ali não teria condições de ter acesso às fontes históricas necessárias para desenvolver tão ousado projeto. Então, propunha que o missivista pegasse a “pena” e contasse “com toda simplicidade” o que “observava à sua volta”. Ou seja, descrevesse a situação do sertão baiano, onde vivia. Uma sugestão bastante prudente. Nove entre dez orientadores acadêmicos proporiam a mesma coisa.
Mas, felizmente, o jovem de nossa história resolveu ignorar o conselho sensato e se meteu na difícil, e pouco promissora, tarefa de escrever sobre a história da luta dos negros brasileiros. O primeiro grande resultado desse esforço hercúleo foi o livro Rebeliões da Senzala, publicado em 1959. Hoje considerado um clássico da nossa historiografia. O nome do garoto, como vocês já devem ter adivinhado, era Clóvis Moura.
Rebeliões da Senzala rompeu com o paradigma predominante, que subestimava o papel dos negros escravizados no processo de construção da nação brasileira e da sua própria libertação. Os escravos não eram – como em geral se afirmava – uma massa passiva sobre a qual os verdadeiros atores interpretavam o drama histórico. Durante todo o período colonial e imperial eles protestaram e lutaram por sua liberdade e dignidade. As revoltas e os quilombos não foram algo excepcional, exceções que confirmavam a regra. Constituíram-se como uma maneira de ser dos trabalhadores numa sociedade assentada na mais brutal forma de exploração: a escravidão. Mais de um século antes dois grandes intelectuais revolucionários alemães haviam afirmado que “a luta de classes era o motor da história”. No Brasil, as coisas não podiam ser diferentes.
Embora considerado um trabalho pioneiro – e até mesmo um clássico –, Rebeliões da Senzala não deu ao autor o reconhecimento acadêmico merecido. Ele continuou sendo um intelectual à margem da universidade e da vertente principal do pensamento social brasileiro. Contudo, não desanimou e continuou perseguindo o seu grande objetivo: entender as origens e as razões da permanência da opressão dos negros no Brasil, numa época em que muitos diziam que isso simplesmente não existia. Muitos viam o nosso país como uma terra sem preconceitos, sem racismos. Consideravam-no uma “democracia racial”.
A respeito disso, damos a palavra ao professor Kabengele Munanga: “Sobre um total de vinte e sete títulos em nosso levantamento, vinte deles tratam exclusivamente da história, dos problemas e da situação do negro brasileiro. Neste sentido, ele foi um dos maiores estudiosos, pensadores e intelectuais da questão negra no país”. E conclui: Clóvis “foi realmente um intelectual orgânico do povo negro”. Entre os muitos títulos que publicou estão: O negro de bom escravo a mau cidadão, Os quilombos e a rebelião negra, Brasil: as raízes do protesto negro, As injustiças de Clio: o negro na historiografia brasileira, Sociologia do negro brasileiro, História do negro brasileiro e Dicionário da escravidão negra no Brasil.
O livro Dialética Radical do Brasil Negro, como outros tantos trabalhos de Clóvis Moura, estava fora de catálogo há muito tempo e vinha se tornando uma verdadeira raridade bibliográfica. Fato que, sem dúvida, acarretou grandes prejuízos àqueles jovens estudiosos e militantes sociais que desejavam ter contato direto com essa interpretação radical e original da formação social brasileira. Por isso, a Fundação Maurício Grabois e o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre o Negro Brasileiro da USP resolveram unir esforços visando a republicá-la, contribuindo para maior difusão do pensamento de Clóvis Moura.
A primeira edição foi lançada há exatamente 20 anos, quando o neoliberalismo dava as cartas na América Latina e no Brasil. Naquela época, os movimentos sociais lutavam diariamente para preservar os seus direitos. Hoje a situação está mudada. Desde a posse do presidente Lula em 2003, o povo pobre não apenas tem mantido como vem ampliando suas conquistas. A população negra – que constitui a base da nossa pirâmide social – tornou-se a maior beneficiada pelos projetos governamentais. Ganhou com o aumento real do salário mínimo, a preservação do emprego, a extensão de direitos às empregadas domésticas, a instituição dos programas Bolsa Família e Minha Casa Minha Vida. Atendendo à pressão do movimento negro, esses governos aprovaram o Estatuto da Igualdade Racial e a política de cotas raciais.
Os negros e pobres, finalmente, puderam ter acesso ao ensino superior. Este era, até então, uma espécie de reserva de mercado das camadas médias e altas. Essas mudanças também estão ligadas ao aumento da consciência, da organização e das lutas dos próprios negros, através de suas entidades. A diferença é que, dessa vez, os movimentos antirracistas encontraram governantes mais sensíveis e propensos a atender parte de suas reivindicações históricas.
Voltando a Clóvis Moura, devemos dizer que ele não foi apenas um intelectual, autor de uma série de livros importantes sobre a temática negra, mas também um ativo militante das causas sociais. Desde os anos 1940 atuava no Partido Comunista do Brasil, contribuindo com a sua imprensa. Algumas décadas depois, em plena ditadura militar, se envolveria diretamente com o movimento negro que se reorganizava sob novas bases. Tornou-se um colaborador do Movimento Negro Unificado (MNU) e da União de Negros Pela Igualdade (Unegro), da qual se transformou no principal ideólogo.
Fazia isso porque tinha consciência de sua situação enquanto negro brasileiro. Num artigo, Kabengele Munanga nos contou um episódio envolvendo Clóvis Moura e que marcou sua vida: “O conheci em 1976, durante o ciclo de palestras na ‘Semana do Negro’ (...). Para quem acabara de chegar ao Brasil, com certeza de estar entrando no maior país de democracia racial do mundo, a minha surpresa foi muito grande ao ouvir o professor Clóvis Moura denunciar, na sua fala, a discriminação racial contra o negro no país. O que mais me impressionou, foi ele se referir ao negro na primeira pessoa do plural ‘nós negros’, ao invés de falar na terceira pessoa ‘ele negro’, ‘eles negros’. Usava a primeira pessoa para deixar claro ao público presente, que ele também, embora mestiço claro, considerava-se negro. No auditório algumas pessoas murmuravam, inconformadas com a sua ousadia de considerar-se negro num país onde os não brancos são (...) chamados de morenos, até os indivíduos fenotipicamente negros”. Assim era Clóvis Moura.
O modo de produção escravista e suas etapas
O livro que o leitor tem em mãos traz importantes contribuições ao debate sobre os modos de produção predominantes nos primeiros séculos da nossa história. Clóvis Moura, compartilhando da tese defendida por Jacob Gorender, definia-o como um Modo de Produção Escravista, pois não havíamos tido naquele período a predominância de relações de tipo feudal e muito menos capitalista. Foi essa constatação original que nos permitiu compreender mais e melhor a dinâmica da luta de classes, especialmente o papel desempenhado pelos negros escravizados. Estes, finalmente, puderam aparecer com um novo estatuto na historiografia brasileira. Deixaram de ser vistos como elementos passivo se passaram a ser considerados agentes importantes no processo de transformação da sociedade e na própria superação da escravidão.
Clóvis foi um pouco além ao destacar a existência de duas grandes etapas no Modo de Produção Escravista: o Escravismo Pleno e o Escravismo Tardio. Ou seja, o nosso escravismo não poderia ser visto como um bloco homogêneo, sem diferenciações. Cada uma dessas etapas comportaria determinadas formas de relação (e de lutas) entre as duas classes sociais fundamentais: os senhores e os escravos.
O Escravismo Pleno teria prevalecido do início da colonização até a extinção do tráfico negreiro em 1850. Caracterizava-se “pelo fato de as relações de produção escravista dominar em quase que totalmente a dinâmica social, econômica e política”. O fluxo permanente dessa mercadoria humana para o Brasil, graças ao tráfico intercontinental, garantia a reprodução do sistema. Grande parte dos lucros adquiridos com a exportação de produtos primários gastava-sena importação de escravos africanos. Cerca de 10 milhões deles entraram no país, fazendo-os ultrapassar o número de homens livres nas principais regiões da colônia. Nesse momento, as formas mais avançadas de protesto dos cativos eram as rebeliões, guerrilhas e a montagem de quilombos rurais. Os escravos se viam obrigados a lutar praticamente sozinhos, pois não tinham apoio em nenhuma das frações das classes dominantes. A necessidade de manter-se a escravidão era quase um consenso entre os homens livres, inclusive os mais pobres.
O Escravismo Tardio começou com o fim do “comércio infame” e seguiu até a Abolição da Escravatura em 1888. Foi uma fase caracterizada pelo declínio do modo de produção escravista, considerado uma verdadeira excrescência econômica e social nas regiões onde o capitalismo estava mais desenvolvido. O fim do tráfico eliminou a possibilidade de aquisição, em grande escala, de mão de obra servil. A consequência foi o seu encarecimento e o agravamento da crise nas províncias do Norte e Nordeste do país. Setores da população livre, inclusive das classes dominantes, começaram a não ver mais perspectiva na manutenção da escravidão e passaram a apostar na sua gradual superação, substituída pelo trabalho livre dos imigrantes europeus. Estavam criadas as condições para o surgimento da campanha abolicionista e a aprovação das primeiras leis emancipacionistas, como as leis do Ventre Livre (1871) e do Sexagenário (1885).
Nesta etapa alterou-se a composição étnica da escravaria, deixando de ser africana e tornando-se predominantemente nacional. O número de cativos se reduziu e eles passaram a ser minoria da população. A complexificação do trabalho urbano possibilitou a multiplicação de ofícios exercidos pelos escravos no comércio e na incipiente indústria. O seu trabalho não se restringia às fazendas e aos engenhos. Essa mudança pulverizou e tornou menos radicais as ações de contestação à ordem escravocrata. As rebeliões violentas, as guerrilhas e a construção de grandes quilombos nas matas distantes, longe da “civilização branca”, deixaram de ser a marca principal da rebeldia escrava na segunda metade do século XIX. A revolta escrava continuou existindo – expressa nas fugas coletivas das fazendas –, mas ela passou a se subordinar política e ideologicamente aos abolicionistas, em geral membros das camadas médias urbanas.
O objetivo final do escravo não era mais a constituição de quilombos – organização social permanente, assentada em valores africanos – e sim constituir-se em trabalhador livre, integrado à sociedade de classe num capitalismo em formação. Os novos quilombos – como o do Jabaquara em Santos – não tinham o mesmo caráter dos antigos. Eles eram montados perto dos centros urbanos e protegidos pelo movimento abolicionista. Alguns deles, inclusive, serviam de celeiros para fornecimento de mão de obra barata. “A última etapa da escravidão no Brasil”, escreveu Clóvis Moura, “recriou um novo pensamento tanto na classe possuidora de escravos, como nas áreas de trabalho livre e dos próprios escravos”.
O autor ainda capta a transformação ideológica ocorrida no interior das classes dominantes durante a crise final do escravismo e nos primeiros anos da República Oligárquica. O racismo mudaria de qualidade, transformando-se no que conhecemos hoje como racismo moderno ou científico. Afirmou ele: “As elites intelectuais desenvolveram a ideologia do racismo como arma justificadora dessa estratégia (de dominação), qualificando o trabalhador nacional nãobranco de um modo geral, e o negro em particular, como incapaz de enfrentar os desafios da nova etapa de organização do trabalho que se apresentava com o fim da escravidão”. Entre o final do século XIX e o início do século XX, a ideologia racista tornou-se hegemônica, especialmente na academia e nas altas esferas da sociedade.
Segundo o “racismo científico”, os negros eram cultural e biologicamente inferiores aos brancos. Constituiu-se a partir daí toda uma hierarquia social, não formalizada através de leis, baseada nas diversas tonalidades da cor da pele. Nessa escala de valores o negro ocupava a base da pirâmide, os “mulatos” o meio e os brancos o topo. Tal mecanismo era extremamente funcional no processo de divisão dos próprios trabalhadores.
Por uma teoria engajada na luta do seu tempo
O livro Dialética Radical do Brasil Negro assume uma postura crítica diante de uma corrente que ganhou força na academia entre os anos 1980 e 1990. Uma corrente que subestimava os aspectos conflituosos existentes na relação senhor/escravo e focava suas atenções prioritariamente nos acordos (ou negociações) informais realizados entre eles, que permitiriam ao polo explorado (o escravo) conseguir melhores condições de vida e de trabalho. Seria esse comportamento negociado que explicaria as particularidades do escravismo brasileiro e não o conflito. E, ironicamente, concluíam: “aqui, entre Zumbi e Pai João, o escravo negocia”. Segundo essa lógica revisionista, “os sociólogos e historiadores que trabalham com a categoria da contradição e do conflito como elemento central da dinâmica social estariam se deixando influenciar por elementos emocionais, extracientíficos, ideológicos”. Essa crítica acadêmica era dirigida, fundamentalmente, contra a perspectiva marxista clássica.
O comunista Clóvis Moura negou, categoricamente, que “a conciliação, a barganha, o acordo tenham se sobreposto ao conflito e ao descontentamento; a pacificação à violência e a empatia à resistência”. Pelo contrário, para se entender “a dinâmica social de um modo de produção e os mecanismos que o fizeram ser substituído por outro, deve-se procurar nas contradições e nos conflitos as causas geradoras dessa dinâmica e não nas áreas neutras e estáticas de conciliação existente no sistema”. E concluiu: “se todos os escravos fossem disciplinados, fizessem acordos, aceitassem a cultura da escravidão (...), como diria Marx, a história pararia”. E a história não parou.
Uma das características salientes do pensamento de Clóvis Moura é a sadia desconfiança em relação à chamada sociologia (e historiografia) acadêmica. Em Sociologia da Práxis, publicada no México em 1976, Clóvis afirmou: “O seu título de ciência deu-lhe um status de respeitabilidade que se amplia à medida que ele se sofistica e refina. Os jargões cada vez mais indecifráveis; a criação de um código de linguagem cada vez mais inacessível aos leigos; a especialização cada dia mais extremada e que pesquisa detalhes cada vez menores de uma realidade social inquestionavelmente irrelevante; a sua pretensa imparcialidade; o empirismo e a sua falta de visão histórica colocam-na como um instrumento altamente valioso, sofisticado e inatacável no sentido de impedir a radicalização das soluções dos problemas sociais”. Segundo Fábio Nogueira: “para Clóvis Moura a única alternativa à sociologia acadêmica (...) seria a sociologia da práxis, construída fora desse espaço de legitimação intelectual, por cientistas ‘independentes’ no território livre em que o saber e a prática fundem-se na experiência”. Talvez isso explique as enormes dificuldades encontradas por esse autor para penetrar nas universidades brasileiras.
Nos anos 1980, Clóvis Moura recebeu o título de Notório Saber pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Um sinal, ainda que tardio, do reconhecimento oficial pelo seu profícuo trabalho intelectual. Mas isso não eliminou sua visão crítica quanto ao saber meramente institucional, desvinculado da prática transformadora, e nem diminuiu o preconceito da universidade em relação a ele. Quem segurou a bandeira do “pensamento moureano” durante todos esses anos – impedindo que ela caísse no esquecimento – foram os movimentos negros, especialmente os vinculados a uma perspectiva socialista e marxista. Fato que deixava Clóvis Moura orgulhoso, pois ele sabia que “uma ideia só se transforma em força material quando ganha as massas”.
* Augusto César Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e revolução brasileira: encontros e desencontros e Meu verbo é lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.
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