Por Reginaldo Moraes, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:
Durante o governo Temer, havia quem perguntasse por que não havia uma explosão das massas populares diante dos abusos e achincalhes que sofriam e os absurdos que se revelavam. O resultado das eleições de 2018 foi, quem sabe, uma dessas explosões – não do jeito como alguns esperavam ou desejavam. A seu modo, inesperado e estranho, foi, sim, uma explosão de rebeldia, um “basta!”. É preciso diagnosticar essa atitude, mais do que lamentá-la ou rejeitá-la. E, agora sabemos, ela está longe de “espontânea”. Tudo indica que ela é, em primeiro lugar, o resultado da lenta maturação de mudanças socioeconômicas e da lenta evolução de uma crise desagregadora. De outro lado, é também uma obra de arte do que se costuma chamar de mistificação de massas, com o uso de sofisticadas armas de indução de opinião e comportamento.
Quando terminou o primeiro turno, ficamos sabendo da ferramenta que, aparentemente, provocou aquela forte onda – que quase terminou a disputa ali mesmo, como parecia ser a aposta. A tática dos bolsonaristas tinha elementos convencionais e alguns high-tech. O aspecto convencional era a criação de um gigantesco financiamento ilegal, o velho e conhecido caixa dois, organizado por empresários simpatizantes do capitão. O lado high-tech era o modo de emprego desses recursos, que muitos associaram a Steven Bannon, à Cambridge Analytica e a seu uso em casos precedentes (o plebiscito do Brexit, na Grã-Bretanha, e a eleição de Trump, nos Estados Unidos).
De fato, parece ter havido essa importação parcial das técnicas de Bannon, o mágico informático e comunicacional da nova direita. Essa metodologia de controle social, com recursos menos ricos, já era utilizada para fins comerciais – o traçado dos perfis de consumidores com base em suas compras. A utilização no “negócio da política” era questão de tempo, muito pouco tempo. Quem assistiu à série House of Cards deve se lembrar de um episódio em que ela aparece, já com muita tecnologia envolvida. Trata-se da coleta de informações de cidadãos com base em plataformas da internet (Facebook, principalmente) e em bases de dados de consumo (cartão de crédito, grandes redes, consultas no Google etc.). Com essas informações – cruzadas com sua distribuição nos espaços regionais e indicadores de renda, educação etc. – é possível constituir grupos determinados de pessoas e imaginar as mensagens que mais as seduziriam.
Um teste relevante dessa maquinação ocorreu no plebiscito sobre a permanência da Grã-Bretanha na União Europeia (o Brexit). Com surpreendente sucesso. Depois, o segundo grande experimento, com Trump e a “desconstrução” de Hillary Clinton. Mas o do Brasil, ainda que talvez tecnicamente menos sofisticado, parece mais grave. Efeitos mais amplos e mais sérios. Não apenas conseguiu influir decisivamente sobre o resultado da eleição, como nos outros casos, mas também está promovendo ou aprofundando um fenômeno social de desintegração e provocando a emergência de verdadeiros tiroteios – infelizmente, em sentido literal. Guardadas as proporções, podemos ter diante de nós uma balcanização da sociedade, com algo que se aproxima de um cenário hobbesiano, de guerra interna.
Há um elemento diferente no caso brasileiro – ou, talvez, um elemento mais forte do que nos outros. O país foi submetido a quatro anos de dissolução de esperanças, desemprego e instabilidade, um campo de semeadura fértil.
O caso do Brexit e mesmo o de Trump mostram que o procedimento de Bannon e seu grupo tem efeitos espantosos, mesmo em pessoas “normais” ou “equilibradas”. Em certos casos – em que há longos períodos de incerteza econômicas, desagregação social, desesperança coletiva –, ele tem efeito multiplicador. É mais ou menos como gritar “Fogo!” em um cinema lotado. Mesmo pessoas “equilibradas” e informadas reagem instintivamente (e de modo suicida).
É essencial levar em conta não apenas a ferramenta, a tecnologia, mas o campo em que é empregada. Vejamos o caso brasileiro. Há um percentual dos seguidores do capitão que podemos supor como fascistas fanáticos, quase doentes. Mas há uma enorme massa, aquela que o fez superar a faixa dos 20%, que é outra coisa. Não nos esqueçamos e nunca é demais repetir: políticas de austeridade, de terceirização e privatização produzem a insegurança coletiva que é insuportável quando dura. O cerco de sabotagem ao governo Dilma – desde o segundo semestre de 2013 – foi criando uma permanente sensação de impasse que congela, impede qualquer previsão de vida sadia, de esperança. Alguns podem conviver com isso. Mas apenas alguns. A maior parte das pessoas vai se exasperando com essa possibilidade, com essa ideia de “sem luz no fim do túnel”. Daí, agarram o que se lhes apresenta como “a mudança que vai regenerar tudo e fazer tudo voltar aos bons tempos”. É essa a sementeira do capitão, não é o “antipetismo”, é o fruto da austeridade e da desagregação social e psicossocial dela resultante. As pessoas se tornam disponíveis para qualquer ideia maluca não por causa da ideia maluca – a ideia pode ser até mesmo uma grande asneira. A situação dramática e prolongada engendra multidões disponíveis para bodes expiatórios, teorias exóticas, mentiras óbvias.
“A condição para abandonar as ilusões sobre sua condição é abandonar uma condição que necessita dessas ilusões.” O jovem Marx até que acertou…
A fábula educativa da nova direita
Comecemos por reconhecer que as explosões dos pisoteados nem sempre acontecem do modo como os analistas frios esperam. Ou como a esquerda deseja. As explosões dependem da capacidade de liderança e organização de quem canaliza, pauta, dirige a explosão. A explosão que agora ocorreu, com essa enxurrada de votos e a emergência de atitudes agressivas, de fato vinha sendo orquestrada homeopaticamente, há anos, pelos instrumentos de difusão majoritários no país, todos eles alinhados à direita. Temas da sinfonia se destacavam – a corrupção, o aparelhamento do Estado (por parte dos petistas, por suposto), a imposição de uma régua moral “pervertida”. Mas a orquestração das ideias e sentimentos – modelando corações e mentes – apenas pontualmente resultava em manifestações públicas. No geral, ela seguia contida, silente, ou apenas murmurada. Era apenas um mau-humor latente, à espera de explodir. O homem providencial – o mito – encarna essa aspiração de estouro. Não por acaso, os homens do poder – aqueles da mídia e aqueles da toga – tiraram de cena o único personagem que podia disputar esse papel, o papel de sinalizar um futuro. Ele foi confinado a uma cela, sua voz e sua imagem foram simplesmente proibidas de aparecer em público. Esse sequestro da esperança era indispensável para que um impostor aparecesse como o “antissistema”. Antissistema? Sim, é essa a imagem que o candidato fardado procura cultivar. Uma das mensagens do grupo fascista, pelas redes, é esta: o sistema está agonizante, vamos derrotá-lo. Muito claro. E está claro também que se trata de um impostor – é tão evidente essa caracterização que o candidato-mito precisa evitar uma identidade. Precisa não falar. Precisa “mitar”.
Essa não é uma performance nova. Já vimos algo assim em um clássico da ficção política. No filme Metrópolis (1926), de Fritz Lang, os chefões da sociedade percebem que os trabalhadores, esfolados, admiram e veneram uma professorinha. Uma ideia luminosa ocorre ao capitalista-mor: que tal sequestrar a professorinha e substituí-la por um robô que pregue a obediência, a subordinação? Tentam. Um cientista do mal constrói o engenho. Contudo, o robô se descontrola e começa a pregar o ódio, a falar o que não deve, a estimular a destruição de tudo e todos. Quando tudo parece ruir, quando os trabalhadores, sem sonhos e sem perspectivas, ameaçam detonar a cidade, aparece um salvador, um jovem dos segmentos superiores, bem-intencionado, caridoso, que quer ser o “Intermediador”, aquele que concilia os dois lados e evita que a sociedade seja mergulhada no caos. Consegue – o filme celebra o aperto de mãos do capitalista e do líder da revolta. Nosso problema, hoje, é que o robô está enlouquecido, mas é ele que encarna o desejo dos de cima e, por ironia trágica, também o desespero dos de baixo. Na situação em que vivemos, o robô deu certo. Mas é louco.
Dissemos que o candidato-mito precisa esconder o que é e apenas insinuar alguns de seus traços, aqueles que julga mais estimulantes para manter eletrizadas suas milícias. Alguns de seus seguidores, porém, acabam por dar forma ao plano. Falam, expõem o apocalipse iminente e o evangelho da nova ordem.
É o que vemos em um clipe de campanha. A peça de propaganda foi contestada pela equipe do capitão. Ao que parece, suscitou incômodos nessa equipe. Talvez por isso sua campanha tenha entrado com pedido de suspensão – alega ser fake, ainda que tenha sido cuidadosamente produzida por apoiadores “bem-intencionados”. É o hábito. Faz parte da estratégia de campanha do capitão: “tudo é fake, não fomos nós, não somos responsáveis por aquilo que fazem, a violência vem mesmo do outro lado”. O certo é que o clipe, feito por “simpatizantes” que o candidato “não controla”, já se multiplicou no YouTube e em muitos outros canais de reprodução. O pedido do capitão ao TSE talvez o livre preventivamente de processos… De resto, o importante é o que essa “narrativa” revela. E o que ela revela é terrível.
A gestação da serpente e sua mensagem encantatória
Se ainda não viu a peça de propaganda, veja. É um notável discurso programático, produção cuidadosa, alta definição, trilha musical esmerada. Notável.
O clipe começa louvando as grandezas do país, sua natureza fértil, seu povo trabalhador e criativo, seu potencial. Em seguida, enuncia as razões pelas quais esse potencial é seguidamente frustrado, esterilizado: aparecem os vilões. Importante destacar: o clipe não poupa quase ninguém, inclusive os antigos aliados do capitão (ou atuais, a rigor). Entra em cena o PT, claro, o vilão maior, mas entram também os políticos dos partidos do golpe… toda a coalizão que fez o impeachment e compõe o governo Temer. Inclui também – importante – o Supremo (com algumas figuras selecionadas, destaque para Gilmar Mendes). Em suma, um clipe de oposição, de terra arrasada, de “que se vayan todos”. E não menciono esse “que se vayan todos” sem motivo – mostra como um lema impreciso e apressado “de esquerda” é facilmente apropriado pela direita. E não foi o único. O clipe termina com a evidente entronização do anjo salvador – dois anjos, na verdade, Moro e o capitão.
O clipe sintetiza um conjunto de lemas e temas que tem circulado em grupos de WhatsApp, em páginas de Facebook, em correntes de e-mail. O tom da coisa é este: o Brasil está desgovernado, destruído por gente mal-intencionada, corrupta, acomodada. O sistema. Daí, a conclusão parece impositiva: precisamos de alguém para botar o país nos trilhos. O recurso retórico é incisivo: retrata o desespero e oferta a salvação. Amém.
Em forma sensível, sem gráficos ou argumentos rebuscados, com imagens fortes – a narrativa inserida no clipe captura a imaginação e a vontade de muitos brasileiros inconformados, desesperados, perdidos. Como em outras situações históricas similares – a ascensão do nazismo é a mais óbvia –, a mensagem enraivecida tem a forma de uma pinça. Explora a ojeriza dos de cima pelos de baixo, o nojo de pobre. E explora o ressentimento dos de baixo com os de cima, identificados como os “perfumados”, os educados, os engravatados que roubam e esnobam aqueles que trabalham.
O discurso do capitão anima suas SAs, suas tropas de choque mais fiéis, com muito ânimo para “derrubar as paredes”, quebrar “o sistema”. Algumas dessas tropas são recrutadas nos segmentos mais vulneráveis e mais angustiados pela incerteza reinante. E, ironia das ironias, essa incerteza insuportável é em grande parte aprofundada, precisamente, pelos autores da mensagem, por meio das políticas de austeridade. Uma parte dessa incerteza, aliás, é mais do que realidade, é o que se chama de “pós-verdade”, uma percepção da realidade cuidadosamente manufaturada. Um conhecido propagandista das reformas neoliberais costumava dizer que o melhor modo de fazê-las palatáveis era criar ou aprofundar uma crise. Acrescentemos outra possiblidade: ampliar a percepção de crise. Essa operação ideológica é uma arma fundamental para implantar soluções impensáveis em “tempos normais”. Ou seja, há um movimento pensado e bem articulado de mídias e outras organizações de modelagem de ideias e sentimentos (como igrejas) no sentido de desenhar um mundo em decomposição, sob ataque de forças do mal, e requerer uma intervenção quase divina, a intervenção do mito, aquele que vem.
Temos de tomar alguma distância e examinar como se formou esse caldo. Aquilo que está na rua e nas redes hoje é parte daquela mesma multidão que berrava contra os partidos na segunda fase das famosas jornadas de junho de 2013, manifestações que começaram de um modo e terminaram bem diferentes. Começaram pequenas e “de esquerda” nas demandas. Terminaram massivas e dirigidas pela mídia de direita, com direção e palavras de ordem reacionárias. Não era apenas pelos 20 centavos, de fato. O gigante acordou… Os grupos rebeldes à esquerda, nos meses seguintes, foram se resumindo a guetos pequenos, mobilizados por campanhas malsucedidas (o “Não vai ter Copa”, por exemplo). Enquanto isso, a direita preparava seu próprio exército – organizava os “’Vem pra Rua” de seu time.
Paralelos históricos são sempre perigosos, simplificam, abusam semelhanças sem levar em conta os contextos. Por outro lado, podem evidenciar possibilidades latentes. O paralelo que sugeri anteriormente, quando mencionei as SAs, tem esse objetivo. Provocar o pensamento, não paralisar. No movimento nazi, as SAs eram a agremiação mais fervorosa, popular e “socialista”. Ou “populista” – encarnavam o ressentimento dos de baixo com os de cima. Serviram bem a Hitler no início de sua ascensão. Propagavam a ideologia do ódio, atemorizavam os adversários, vandalizavam sedes de sindicatos e partidos, dissolviam reuniões. Mas viraram um risco no momento em que o poder hitlerista se estabilizava. Quando esse momento chegou, as SAs foram liquidadas sangrentamente, massacradas pelo exército e sua SS. Não estou descrevendo esse fato gratuitamente. O movimento “irresistível” do nazismo é construído em torno de um mito salvador, única fonte de certeza e segurança dentro de um mundo apodrecido, em torno de um conjunto de “certezas” imunes a argumentos, evidências, lucidez. Querer mostrar evidências a um nazi inflamado é quase inútil – cada argumento é tomado como um insulto. Desperta ainda mais violência.
Para onde vão o capitão, seu general e seus pastores?
Há uma hora, porém, para as SAs, no momento da subida, e há um momento para enquadrá-las, quando já cumpriram seu papel. O nazismo mobiliza gente de baixo – desempregados, subempregados, a classe média baixa insegura –, mas seu arsenal é pago por gente de cima, bem de cima. E, no caso de países-quintais, países de interesse de grandes potências, conta com suporte de gente de fora – a famosa aliança da casa-grande com a Casa Branca. Passado o momento da conquista – que precisa de mobilização do ódio –, vem o momento da ocupação para a esfola cotidiana. O nazismo se transforma de movimento ruidoso em bonapartismo organizado, burocratizado, preferencialmente fardado.
Outro elemento preocupante surge com essa analogia histórica. Depois de “pacificar” o interior do país, algo mais anima o líder, um celerado, mas racionalmente orientado por seus economistas. Ele precisa ativar a sociedade, criar empregos e dirigir as energias para outro inimigo, o externo. Ocupar regiões vizinhas, em outros países, onde residem minorias nacionais supostamente oprimidas. Por exemplo, digamos, o leste do Paraguai, onde há empresas e fazendas de brasileiros. Ou esterilizar países perigosos, que criam vermes – Bolívia, Venezuela. Um dos filhos do capitão já mencionou a necessidade de “dar uma lição a Maduro”. Uruguai, como sabemos, já foi território “brasileiro” – nada mau que se junte ao Rio Grande do Sul. Se uma aventura guerreira é inventada – e há loucos para isso –, sabemos quem é a bucha de canhão e quem sustentará o esforço de guerra patriótica.
O quadro é pavoroso. Talvez seja exagerado, não? Nunca vivemos tal pesadelo, ainda mais com o cenário de uma guerra estúpida contra os vizinhos. Sim, pode ser exagerado, mas a guerra “interna” não tem nada de imaginária. Já vivemos coisa assim, durante os chamados anos de chumbo. E já estamos no limiar de outra tentativa. Melhor contar com o pior, se queremos obter o inverso. O monstro ainda está em gestação. Avançada, mas ainda pode ser detida.
* Reginaldo Moraes é professor aposentado e colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.
Quando terminou o primeiro turno, ficamos sabendo da ferramenta que, aparentemente, provocou aquela forte onda – que quase terminou a disputa ali mesmo, como parecia ser a aposta. A tática dos bolsonaristas tinha elementos convencionais e alguns high-tech. O aspecto convencional era a criação de um gigantesco financiamento ilegal, o velho e conhecido caixa dois, organizado por empresários simpatizantes do capitão. O lado high-tech era o modo de emprego desses recursos, que muitos associaram a Steven Bannon, à Cambridge Analytica e a seu uso em casos precedentes (o plebiscito do Brexit, na Grã-Bretanha, e a eleição de Trump, nos Estados Unidos).
De fato, parece ter havido essa importação parcial das técnicas de Bannon, o mágico informático e comunicacional da nova direita. Essa metodologia de controle social, com recursos menos ricos, já era utilizada para fins comerciais – o traçado dos perfis de consumidores com base em suas compras. A utilização no “negócio da política” era questão de tempo, muito pouco tempo. Quem assistiu à série House of Cards deve se lembrar de um episódio em que ela aparece, já com muita tecnologia envolvida. Trata-se da coleta de informações de cidadãos com base em plataformas da internet (Facebook, principalmente) e em bases de dados de consumo (cartão de crédito, grandes redes, consultas no Google etc.). Com essas informações – cruzadas com sua distribuição nos espaços regionais e indicadores de renda, educação etc. – é possível constituir grupos determinados de pessoas e imaginar as mensagens que mais as seduziriam.
Um teste relevante dessa maquinação ocorreu no plebiscito sobre a permanência da Grã-Bretanha na União Europeia (o Brexit). Com surpreendente sucesso. Depois, o segundo grande experimento, com Trump e a “desconstrução” de Hillary Clinton. Mas o do Brasil, ainda que talvez tecnicamente menos sofisticado, parece mais grave. Efeitos mais amplos e mais sérios. Não apenas conseguiu influir decisivamente sobre o resultado da eleição, como nos outros casos, mas também está promovendo ou aprofundando um fenômeno social de desintegração e provocando a emergência de verdadeiros tiroteios – infelizmente, em sentido literal. Guardadas as proporções, podemos ter diante de nós uma balcanização da sociedade, com algo que se aproxima de um cenário hobbesiano, de guerra interna.
Há um elemento diferente no caso brasileiro – ou, talvez, um elemento mais forte do que nos outros. O país foi submetido a quatro anos de dissolução de esperanças, desemprego e instabilidade, um campo de semeadura fértil.
O caso do Brexit e mesmo o de Trump mostram que o procedimento de Bannon e seu grupo tem efeitos espantosos, mesmo em pessoas “normais” ou “equilibradas”. Em certos casos – em que há longos períodos de incerteza econômicas, desagregação social, desesperança coletiva –, ele tem efeito multiplicador. É mais ou menos como gritar “Fogo!” em um cinema lotado. Mesmo pessoas “equilibradas” e informadas reagem instintivamente (e de modo suicida).
É essencial levar em conta não apenas a ferramenta, a tecnologia, mas o campo em que é empregada. Vejamos o caso brasileiro. Há um percentual dos seguidores do capitão que podemos supor como fascistas fanáticos, quase doentes. Mas há uma enorme massa, aquela que o fez superar a faixa dos 20%, que é outra coisa. Não nos esqueçamos e nunca é demais repetir: políticas de austeridade, de terceirização e privatização produzem a insegurança coletiva que é insuportável quando dura. O cerco de sabotagem ao governo Dilma – desde o segundo semestre de 2013 – foi criando uma permanente sensação de impasse que congela, impede qualquer previsão de vida sadia, de esperança. Alguns podem conviver com isso. Mas apenas alguns. A maior parte das pessoas vai se exasperando com essa possibilidade, com essa ideia de “sem luz no fim do túnel”. Daí, agarram o que se lhes apresenta como “a mudança que vai regenerar tudo e fazer tudo voltar aos bons tempos”. É essa a sementeira do capitão, não é o “antipetismo”, é o fruto da austeridade e da desagregação social e psicossocial dela resultante. As pessoas se tornam disponíveis para qualquer ideia maluca não por causa da ideia maluca – a ideia pode ser até mesmo uma grande asneira. A situação dramática e prolongada engendra multidões disponíveis para bodes expiatórios, teorias exóticas, mentiras óbvias.
“A condição para abandonar as ilusões sobre sua condição é abandonar uma condição que necessita dessas ilusões.” O jovem Marx até que acertou…
A fábula educativa da nova direita
Comecemos por reconhecer que as explosões dos pisoteados nem sempre acontecem do modo como os analistas frios esperam. Ou como a esquerda deseja. As explosões dependem da capacidade de liderança e organização de quem canaliza, pauta, dirige a explosão. A explosão que agora ocorreu, com essa enxurrada de votos e a emergência de atitudes agressivas, de fato vinha sendo orquestrada homeopaticamente, há anos, pelos instrumentos de difusão majoritários no país, todos eles alinhados à direita. Temas da sinfonia se destacavam – a corrupção, o aparelhamento do Estado (por parte dos petistas, por suposto), a imposição de uma régua moral “pervertida”. Mas a orquestração das ideias e sentimentos – modelando corações e mentes – apenas pontualmente resultava em manifestações públicas. No geral, ela seguia contida, silente, ou apenas murmurada. Era apenas um mau-humor latente, à espera de explodir. O homem providencial – o mito – encarna essa aspiração de estouro. Não por acaso, os homens do poder – aqueles da mídia e aqueles da toga – tiraram de cena o único personagem que podia disputar esse papel, o papel de sinalizar um futuro. Ele foi confinado a uma cela, sua voz e sua imagem foram simplesmente proibidas de aparecer em público. Esse sequestro da esperança era indispensável para que um impostor aparecesse como o “antissistema”. Antissistema? Sim, é essa a imagem que o candidato fardado procura cultivar. Uma das mensagens do grupo fascista, pelas redes, é esta: o sistema está agonizante, vamos derrotá-lo. Muito claro. E está claro também que se trata de um impostor – é tão evidente essa caracterização que o candidato-mito precisa evitar uma identidade. Precisa não falar. Precisa “mitar”.
Essa não é uma performance nova. Já vimos algo assim em um clássico da ficção política. No filme Metrópolis (1926), de Fritz Lang, os chefões da sociedade percebem que os trabalhadores, esfolados, admiram e veneram uma professorinha. Uma ideia luminosa ocorre ao capitalista-mor: que tal sequestrar a professorinha e substituí-la por um robô que pregue a obediência, a subordinação? Tentam. Um cientista do mal constrói o engenho. Contudo, o robô se descontrola e começa a pregar o ódio, a falar o que não deve, a estimular a destruição de tudo e todos. Quando tudo parece ruir, quando os trabalhadores, sem sonhos e sem perspectivas, ameaçam detonar a cidade, aparece um salvador, um jovem dos segmentos superiores, bem-intencionado, caridoso, que quer ser o “Intermediador”, aquele que concilia os dois lados e evita que a sociedade seja mergulhada no caos. Consegue – o filme celebra o aperto de mãos do capitalista e do líder da revolta. Nosso problema, hoje, é que o robô está enlouquecido, mas é ele que encarna o desejo dos de cima e, por ironia trágica, também o desespero dos de baixo. Na situação em que vivemos, o robô deu certo. Mas é louco.
Dissemos que o candidato-mito precisa esconder o que é e apenas insinuar alguns de seus traços, aqueles que julga mais estimulantes para manter eletrizadas suas milícias. Alguns de seus seguidores, porém, acabam por dar forma ao plano. Falam, expõem o apocalipse iminente e o evangelho da nova ordem.
É o que vemos em um clipe de campanha. A peça de propaganda foi contestada pela equipe do capitão. Ao que parece, suscitou incômodos nessa equipe. Talvez por isso sua campanha tenha entrado com pedido de suspensão – alega ser fake, ainda que tenha sido cuidadosamente produzida por apoiadores “bem-intencionados”. É o hábito. Faz parte da estratégia de campanha do capitão: “tudo é fake, não fomos nós, não somos responsáveis por aquilo que fazem, a violência vem mesmo do outro lado”. O certo é que o clipe, feito por “simpatizantes” que o candidato “não controla”, já se multiplicou no YouTube e em muitos outros canais de reprodução. O pedido do capitão ao TSE talvez o livre preventivamente de processos… De resto, o importante é o que essa “narrativa” revela. E o que ela revela é terrível.
A gestação da serpente e sua mensagem encantatória
Se ainda não viu a peça de propaganda, veja. É um notável discurso programático, produção cuidadosa, alta definição, trilha musical esmerada. Notável.
O clipe começa louvando as grandezas do país, sua natureza fértil, seu povo trabalhador e criativo, seu potencial. Em seguida, enuncia as razões pelas quais esse potencial é seguidamente frustrado, esterilizado: aparecem os vilões. Importante destacar: o clipe não poupa quase ninguém, inclusive os antigos aliados do capitão (ou atuais, a rigor). Entra em cena o PT, claro, o vilão maior, mas entram também os políticos dos partidos do golpe… toda a coalizão que fez o impeachment e compõe o governo Temer. Inclui também – importante – o Supremo (com algumas figuras selecionadas, destaque para Gilmar Mendes). Em suma, um clipe de oposição, de terra arrasada, de “que se vayan todos”. E não menciono esse “que se vayan todos” sem motivo – mostra como um lema impreciso e apressado “de esquerda” é facilmente apropriado pela direita. E não foi o único. O clipe termina com a evidente entronização do anjo salvador – dois anjos, na verdade, Moro e o capitão.
O clipe sintetiza um conjunto de lemas e temas que tem circulado em grupos de WhatsApp, em páginas de Facebook, em correntes de e-mail. O tom da coisa é este: o Brasil está desgovernado, destruído por gente mal-intencionada, corrupta, acomodada. O sistema. Daí, a conclusão parece impositiva: precisamos de alguém para botar o país nos trilhos. O recurso retórico é incisivo: retrata o desespero e oferta a salvação. Amém.
Em forma sensível, sem gráficos ou argumentos rebuscados, com imagens fortes – a narrativa inserida no clipe captura a imaginação e a vontade de muitos brasileiros inconformados, desesperados, perdidos. Como em outras situações históricas similares – a ascensão do nazismo é a mais óbvia –, a mensagem enraivecida tem a forma de uma pinça. Explora a ojeriza dos de cima pelos de baixo, o nojo de pobre. E explora o ressentimento dos de baixo com os de cima, identificados como os “perfumados”, os educados, os engravatados que roubam e esnobam aqueles que trabalham.
O discurso do capitão anima suas SAs, suas tropas de choque mais fiéis, com muito ânimo para “derrubar as paredes”, quebrar “o sistema”. Algumas dessas tropas são recrutadas nos segmentos mais vulneráveis e mais angustiados pela incerteza reinante. E, ironia das ironias, essa incerteza insuportável é em grande parte aprofundada, precisamente, pelos autores da mensagem, por meio das políticas de austeridade. Uma parte dessa incerteza, aliás, é mais do que realidade, é o que se chama de “pós-verdade”, uma percepção da realidade cuidadosamente manufaturada. Um conhecido propagandista das reformas neoliberais costumava dizer que o melhor modo de fazê-las palatáveis era criar ou aprofundar uma crise. Acrescentemos outra possiblidade: ampliar a percepção de crise. Essa operação ideológica é uma arma fundamental para implantar soluções impensáveis em “tempos normais”. Ou seja, há um movimento pensado e bem articulado de mídias e outras organizações de modelagem de ideias e sentimentos (como igrejas) no sentido de desenhar um mundo em decomposição, sob ataque de forças do mal, e requerer uma intervenção quase divina, a intervenção do mito, aquele que vem.
Temos de tomar alguma distância e examinar como se formou esse caldo. Aquilo que está na rua e nas redes hoje é parte daquela mesma multidão que berrava contra os partidos na segunda fase das famosas jornadas de junho de 2013, manifestações que começaram de um modo e terminaram bem diferentes. Começaram pequenas e “de esquerda” nas demandas. Terminaram massivas e dirigidas pela mídia de direita, com direção e palavras de ordem reacionárias. Não era apenas pelos 20 centavos, de fato. O gigante acordou… Os grupos rebeldes à esquerda, nos meses seguintes, foram se resumindo a guetos pequenos, mobilizados por campanhas malsucedidas (o “Não vai ter Copa”, por exemplo). Enquanto isso, a direita preparava seu próprio exército – organizava os “’Vem pra Rua” de seu time.
Paralelos históricos são sempre perigosos, simplificam, abusam semelhanças sem levar em conta os contextos. Por outro lado, podem evidenciar possibilidades latentes. O paralelo que sugeri anteriormente, quando mencionei as SAs, tem esse objetivo. Provocar o pensamento, não paralisar. No movimento nazi, as SAs eram a agremiação mais fervorosa, popular e “socialista”. Ou “populista” – encarnavam o ressentimento dos de baixo com os de cima. Serviram bem a Hitler no início de sua ascensão. Propagavam a ideologia do ódio, atemorizavam os adversários, vandalizavam sedes de sindicatos e partidos, dissolviam reuniões. Mas viraram um risco no momento em que o poder hitlerista se estabilizava. Quando esse momento chegou, as SAs foram liquidadas sangrentamente, massacradas pelo exército e sua SS. Não estou descrevendo esse fato gratuitamente. O movimento “irresistível” do nazismo é construído em torno de um mito salvador, única fonte de certeza e segurança dentro de um mundo apodrecido, em torno de um conjunto de “certezas” imunes a argumentos, evidências, lucidez. Querer mostrar evidências a um nazi inflamado é quase inútil – cada argumento é tomado como um insulto. Desperta ainda mais violência.
Para onde vão o capitão, seu general e seus pastores?
Há uma hora, porém, para as SAs, no momento da subida, e há um momento para enquadrá-las, quando já cumpriram seu papel. O nazismo mobiliza gente de baixo – desempregados, subempregados, a classe média baixa insegura –, mas seu arsenal é pago por gente de cima, bem de cima. E, no caso de países-quintais, países de interesse de grandes potências, conta com suporte de gente de fora – a famosa aliança da casa-grande com a Casa Branca. Passado o momento da conquista – que precisa de mobilização do ódio –, vem o momento da ocupação para a esfola cotidiana. O nazismo se transforma de movimento ruidoso em bonapartismo organizado, burocratizado, preferencialmente fardado.
Outro elemento preocupante surge com essa analogia histórica. Depois de “pacificar” o interior do país, algo mais anima o líder, um celerado, mas racionalmente orientado por seus economistas. Ele precisa ativar a sociedade, criar empregos e dirigir as energias para outro inimigo, o externo. Ocupar regiões vizinhas, em outros países, onde residem minorias nacionais supostamente oprimidas. Por exemplo, digamos, o leste do Paraguai, onde há empresas e fazendas de brasileiros. Ou esterilizar países perigosos, que criam vermes – Bolívia, Venezuela. Um dos filhos do capitão já mencionou a necessidade de “dar uma lição a Maduro”. Uruguai, como sabemos, já foi território “brasileiro” – nada mau que se junte ao Rio Grande do Sul. Se uma aventura guerreira é inventada – e há loucos para isso –, sabemos quem é a bucha de canhão e quem sustentará o esforço de guerra patriótica.
O quadro é pavoroso. Talvez seja exagerado, não? Nunca vivemos tal pesadelo, ainda mais com o cenário de uma guerra estúpida contra os vizinhos. Sim, pode ser exagerado, mas a guerra “interna” não tem nada de imaginária. Já vivemos coisa assim, durante os chamados anos de chumbo. E já estamos no limiar de outra tentativa. Melhor contar com o pior, se queremos obter o inverso. O monstro ainda está em gestação. Avançada, mas ainda pode ser detida.
* Reginaldo Moraes é professor aposentado e colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.
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