quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Ataque à Previdência: farsa antecede tragédia

Por Henrique Júdice Magalhães, no site Correio da Cidadania:

Em de­zembro úl­timo, a So­ci­e­dade Ita­liana de Ge­ron­to­logia e Ge­ri­a­tria de­clarou que só a partir dos 75 anos (e não mais 65) al­guém deve ser con­si­de­rado idoso na­quele país. A prin­cipal razão é o au­mento da ex­pec­ta­tiva de vida, que, em 2016, chegou a 83,4 anos.

Um mês de­pois, a Itália re­duziu de 67 para 62 anos (ho­mens) ou 58 (mu­lheres) a idade mí­nima de apo­sen­ta­doria para quem não atingir o tempo de con­tri­buição que a dis­pensa, além de manter mais duas com­bi­na­ções com idade mais alta e menos tempo de tra­balho.

No Brasil, a ex­pec­ta­tiva de vida é bem menor (75 anos). Mas o go­verno quer acabar com a aposentadoria só por tempo de con­tri­buição e impor idades mí­nimas mai­ores: 65 (H) e 62 anos (M), que au­men­ta­riam cada vez que a ex­pec­ta­tiva de vida crescer, sem re­dução se ela cair.

A média sa­la­rial que em­basa o valor da apo­sen­ta­doria passa a abranger os sa­lá­rios mais baixos, hoje des­car­tados. O per­cen­tual dela pago a quem se apo­sentar com a quan­ti­dade mí­nima de con­tri­bui­ções cai de 85 para 60%, em­bora esta suba de 180 para 240.

É o que, entre ou­tras coisas, prevê a Pro­posta de Emenda Cons­ti­tu­ci­onal (PEC) 6, en­viada à Câ­mara em 20/02. Seu sig­na­tário, o mi­nistro da Eco­nomia, Paulo Guedes, in­voca como mo­tivo o au­mento da ex­pec­ta­tiva de vida.

Mas viver mais não sig­ni­fica – menos ainda no atual quadro bra­si­leiro de terra ar­ra­sada – ter reais con­di­ções de tra­ba­lhar, en­con­trar tra­balho ou de­pender dele para o sus­tento.

Há um in­di­cador que ex­pressa par­ci­al­mente isso: a ex­pec­ta­tiva de vida sau­dável (EVS). O IBGE não a cal­cula. A Or­ga­ni­zação Mun­dial de Saúde (OMS) o faz, com uma me­to­do­logia frouxa: o Es­cri­tório de Es­ta­tís­ticas da União Eu­ro­peia (Eu­rostat) in­dica uma cifra 6 anos menor que a da OMS para a Itália, 10 para a França e 14 para Por­tugal e a Suíça. Como o Eu­rostat só lida com dados de seu con­ti­nente, resta ima­ginar a quanto seus cri­té­rios, que apontam uma EVS in­fe­rior a 64 anos como média da a EU (1), re­du­zi­riam os 66 que a OMS diz ser a do Brasil (2).

Viver mais... E pior

Aqui, em­bora menos que na Eu­ropa, a ele­vação da ex­pec­ta­tiva de vida é um fato. Mas, muito mais que lá, a de­gra­dação das con­di­ções de tra­balho também o é.

Quando foi mais des­gas­tante (pelo trân­sito) e pe­ri­goso (pelo risco de roubos e ou­tros atos vi­o­lentos) di­rigir um ônibus? Em 1964, quando João Gou­lart re­co­nheceu esse tra­balho como pe­noso e re­duziu a 25 anos o tempo para os mo­to­ristas se apo­sen­tarem? Em 1995, quando FHC re­vogou isso, jo­gando-os na regra geral dos 35 anos de tra­balho? Ou em 2019, quando Bol­so­naro quer proibi-los de se apo­sentar antes dos 65?

Quando foi mais duro le­ci­onar? Nos anos 60, quando os pro­fes­sores eram au­to­ri­dades in­con­tras­tá­veis em sala de aula? Ou agora, que tra­ba­lham es­pre­midos entre im­po­si­ções de uma bu­ro­cracia per­versa, ca­pri­chos de fa­mí­lias obs­cu­ran­tistas e efeitos dessas dis­fun­ci­o­na­li­dades sobre o com­por­ta­mento das cri­anças – isso quando não têm as aulas in­ter­rom­pidas a tiros de fuzil, como se tornou comum no Rio, e alunos as­sas­si­nados?! A apo­sen­ta­doria, claro, não é so­lução ou se­quer res­posta a isso. Mas obstá-la em tal con­texto é uma per­ver­si­dade adi­ci­onal.

O au­mento da du­ração da vida é mo­tivo para equa­ci­onar a ar­re­ca­dação da Pre­vi­dência, não para blo­quear o acesso a seus pro­ventos. A res­posta à mu­dança de­mo­grá­fica – e à au­to­mação – seria re­duzir o peso da con­tri­buição sobre a folha de pa­ga­mento (vin­cu­lada ao nú­mero de tra­ba­lha­dores) e au­mentar o da­quelas sobre o fa­tu­ra­mento e o lucro.

Pior que banco

A PEC 6 pre­co­niza o oposto: um re­gime de ca­pi­ta­li­zação in­di­vi­dual, a pre­texto de que a queda na re­lação ativos/apo­sen­tados torna as con­tri­bui­ções dos pri­meiros in­su­fi­ci­entes para pagar os se­gundos e a ‘so­lução’ é cada um poupar para sua pró­pria apo­sen­ta­doria.

A di­fe­rença entre esse mo­delo e o de re­par­tição pura (em que as apo­sen­ta­do­rias são pagas uni­ca­mente pelas con­tri­bui­ções dos ativos, o que não é o caso do INSS) é só es­cri­tural. Num e noutro, se a pro­porção con­tri­buintes/apo­sen­tados cai abaixo de um de­ter­mi­nado nível, sairá mais di­nheiro do que entra. De­pó­sitos ban­cá­rios são per­fei­ta­mente se­pa­rados, com iden­ti­fi­cação dos ti­tu­lares; mas basta uma certa quan­ti­dade destes res­gatar suas eco­no­mias ao mesmo tempo para que­brar o banco.

Com os fundos pre­vi­den­ciá­rios de ca­pi­ta­li­zação, ocor­rerá o mesmo, pois seus ges­tores não deixam o di­nheiro no cofre: como os ban­queiros (que é o que, em geral, são), vivem de usá-lo en­quanto o ti­tular não o res­gata.

Mas en­quanto o Fundo Ga­ran­tidor de Cré­dito pro­tege os de­pó­sitos ban­cá­rios até R$ 250 mil e a perda recai sobre os aci­o­nistas, os fundos pre­vi­den­ciá­rios têm como “donos” for­mais os pró­prios tra­ba­lha­dores e apo­sen­tados. Seus di­ri­gentes, na ficção ju­rí­dica que cri­aram, apenas prestam a estes o ser­viço de ad­mi­nis­trar o di­nheiro, co­brando uma taxa sobre o valor des­con­tado e outra sobre o ren­di­mento.

Daqui a 40 anos, quando os tra­ba­lha­dores que co­me­çarem agora a des­contar para esses fundos se apo­sen­tarem, a ten­dência de­mo­grá­fica, se man­tida, que­brará esses fundos, se forem ge­ridos sa­tis­fa­to­ri­a­mente. Uma gestão inepta ou frau­du­lenta os quebra antes. Num caso ou noutro, quem tiver des­con­tado para eles fica sem apo­sen­ta­doria e o Es­tado terá que re­as­sumir a Pre­vi­dência. Mas, até lá, os fi­lhos dos ges­tores es­tarão riquís­simos.

Moeda de troca

Dos anos 70 à me­tade dos 90, os bancos ga­nharam oce­anos de di­nheiro com a in­flação. Quando isso levou o país a uma si­tu­ação-li­mite, tro­caram-na pelo ganho com os al­tís­simos juros que re­cebem do Es­tado como cre­dores da dí­vida pú­blica e servem de piso a ou­tros ainda mais altos que co­bram de seus cli­entes. O ins­tru­mento dessa re­pac­tu­ação entre o sis­tema fi­nan­ceiro, o Es­tado e o resto do bloco do­mi­nante foi o Plano Real.

Agora, quando o que leva a eco­nomia bra­si­leira a um beco sem saída são os juros, o Es­tado, para baixá-los, ofe­rece aos bancos a ar­re­ca­dação da Pre­vi­dência. Isso foi dito ao Valor Econô­mico de 28/12 pelo ge­neral vice-pre­si­dente Antônio Ha­milton Mourão:

Valor: O Brasil está que­brado...

Mourão: Eu sei disso, pa­gamos R$ 400 bi­lhões por ano de juros, temos um dé­ficit de R$ 139 bi­lhões (...). Por isso pre­ci­samos aprovar essas re­formas, porque com a me­lhoria do nosso ra­ting nós po­demos até emitir tí­tulos pa­gando juros me­nores (...), fazer uma re­pac­tu­ação dessa dí­vida, po­demos alongar o prazo (3).

Cada uma dessas tran­si­ções re­forçou os ga­nhos e a po­sição dos bancos, ga­rantiu com­pen­sa­ções a ou­tros se­tores do­mi­nantes (hoje quase re­du­zidos ao la­ti­fúndio, também ele fi­nan­cei­ri­zado em grande me­dida) e de­gradou a vida do povo.

Cada uma delas veio edul­co­rada como be­né­fica e ao mesmo tempo ine­vi­tável pela im­prensa mer­cantil mo­no­po­lista, fac­ções par­la­men­tares e eco­no­mistas do sis­tema – “li­be­rais”, que comem na mão da bur­guesia com­pra­dora, ou “de­sen­vol­vi­men­tistas”, que têm por ha­bitat o colo da bur­guesia bu­ro­crá­tica.

Notas:

1) https://​ec.​europa.​eu/​eur​osta​t/​sta​tist​ics-​exp​lain​ed/​images/​9/​9e/​Healthy_​life_​years_​at_​birth-​01.​jpg

2) http://​apps.​who.​int/​gho/​data/​node.​main.​HALE?​lang=en

3) https://​www.​valor.​com.​br/​pol​itic​a/​6041053/​governo-​fara-​des​manc​he-​do-​estado-​diz-​mourao

* O ori­ginal en­contra-se em A Nova De­mo­cracia.

* Hen­rique Jú­dice Ma­ga­lhães é jor­na­lista e ad­vo­gado.

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