Por Amanda Audi, no site The Intercept-Brasil:
Davi Alcolumbre não dormia havia duas noites quando deixou o apartamento funcional localizado em área nobre de Brasília na manhã de 1º de fevereiro, uma sexta-feira. Passara as horas anteriores em conversas com 20 senadores, um périplo que só terminara às 5h da manhã. Mesmo assim, saiu cedo de casa, levando, no carro oficial, o colega Randolfe Rodrigues, da Rede, também eleito pelo Amapá.
Minutos depois, no Senado, os dois se dirigiram ao gabinete do tucano Tasso Jereissati, que havia se transformado em um bunker contra Renan Calheiros, do MDB alagoano. Apesar de ser visto com ressalvas até pelo próprio partido, que preferia centrar esforços na eleição de Rodrigo Maia na Câmara, Alcolumbre estava confiante. Fora treinado para enfrentar o que sabia que viria pela frente.
Ele carregava uma maleta preta recheada de documentos – que ficaria famosa ao ser roubada por Kátia Abreu, do PDT de Tocantins, horas depois – preparados dias antes para driblar as intempéries da sessão que iria terminar, só no dia seguinte, sábado, com sua eleição à presidência da casa.
Também havia estudado os cenários possíveis e antecipado atos da oposição. Sabia exatamente quais manobras regimentais teria de fazer para contorná-los. Sabia, também, que teria que sustar um ato que o impedia de presidir a sessão e que o Supremo Tribunal Federal seria chamado a intervir. Também levava consigo discursos que escrevera dias antes.
A vitória de Alcolumbre não foi um golpe de sorte de um político de pouca expressão beneficiado pelos efeitos de uma rebelião contra o longevo Calheiros, senador desde 1995 e presidente do Senado por três vezes a partir de 2005. Ela foi construída com o suporte de uma ala do DEM igualmente oriunda do baixo clero do parlamento e alçada ao topo após a eleição de Jair Bolsonaro: os ministros Onyx Lorenzoni (Casa Civil), Tereza Cristina (Agricultura) e Luiz Henrique Mandetta (Saúde) – que somam 23 anos de Congresso. E também de Abelardo Lupion, um tradicionalíssimo político ruralista paranaense, e seu filho Pedro.
Como depois diria Calheiros, Davi, o Alcolumbre, foi mais Golias do que aparentava ser.
Minutos depois, no Senado, os dois se dirigiram ao gabinete do tucano Tasso Jereissati, que havia se transformado em um bunker contra Renan Calheiros, do MDB alagoano. Apesar de ser visto com ressalvas até pelo próprio partido, que preferia centrar esforços na eleição de Rodrigo Maia na Câmara, Alcolumbre estava confiante. Fora treinado para enfrentar o que sabia que viria pela frente.
Ele carregava uma maleta preta recheada de documentos – que ficaria famosa ao ser roubada por Kátia Abreu, do PDT de Tocantins, horas depois – preparados dias antes para driblar as intempéries da sessão que iria terminar, só no dia seguinte, sábado, com sua eleição à presidência da casa.
Também havia estudado os cenários possíveis e antecipado atos da oposição. Sabia exatamente quais manobras regimentais teria de fazer para contorná-los. Sabia, também, que teria que sustar um ato que o impedia de presidir a sessão e que o Supremo Tribunal Federal seria chamado a intervir. Também levava consigo discursos que escrevera dias antes.
A vitória de Alcolumbre não foi um golpe de sorte de um político de pouca expressão beneficiado pelos efeitos de uma rebelião contra o longevo Calheiros, senador desde 1995 e presidente do Senado por três vezes a partir de 2005. Ela foi construída com o suporte de uma ala do DEM igualmente oriunda do baixo clero do parlamento e alçada ao topo após a eleição de Jair Bolsonaro: os ministros Onyx Lorenzoni (Casa Civil), Tereza Cristina (Agricultura) e Luiz Henrique Mandetta (Saúde) – que somam 23 anos de Congresso. E também de Abelardo Lupion, um tradicionalíssimo político ruralista paranaense, e seu filho Pedro.
Como depois diria Calheiros, Davi, o Alcolumbre, foi mais Golias do que aparentava ser.
Um collorido articulando a ‘nova era’
Duas presenças chamaram a atenção de quem acompanhou a tumultuada votação: Abelardo e Pedro Lupion. Ex-deputado federal por seis mandados, fundador e primeiro presidente da União Democrática Ruralista do Paraná e da bancada do agronegócio na Câmara, Abelardo hoje é braço-direito de Lorenzoni. Pedro, o filho, acabou de ser eleito pela primeira vez para a Câmara.
Herdeiro de oligarquia do Paraná, Lupion fundou a bancada ruralista na Câmara.
Uma das oligarquias políticas do Paraná, a família Lupion nada tem de “nova era”. Abelardo é neto de Moisés Lupion, duas vezes governador do Paraná nos anos 1940 e 50 e acusado até por aliados de se beneficiar de ações que expulsaram posseiros de suas terras nas fronteiras agrícolas do estado – teve que se exilar na Argentina para não ser preso por isso nos anos 60. Elegeu-se suplente de deputado pela primeira vez em 1991 pelo PRN, partido do então presidente Fernando Collor de Mello. No ano seguinte, já no cargo, Abelardo votou contra o impeachment de Collor. Na Câmara, foi dos primeiros a classificar o MST como “terroristas” e a reforma agrária de “ameaça à propriedade privada”. Em 2017, foi citado em delação da Odebrecht. Em 2010, Abelardo declarou ter patrimônio de mais de R$ 4 milhões em empresas de pecuária e madeireiras.
Os Lupion são amigos de Alcolumbre há mais de 20 anos. Abelardo está hospedado na casa do senador, a quem chama de “irmão”, enquanto procura um lugar pra morar em Brasília. Com cerca de um metro e noventa de altura, Abelardo chegou a atuar como guarda-costas de Alcolumbre. Lorenzoni foi padrinho de casamento de Pedro Lupion e é amigo íntimo de Abelardo. Sua esposa, Denise, trabalha no gabinete de Alcolumbre, num caso ostensivo de nepotismo cruzado.
“Davi disse em novembro ‘eu posso ser o anti-Renan, me ajudem a me viabilizar'”, me disse Pedro, depois da eleição no Senado, durante uma conversa na Câmara. “Ele é esforçado e muito querido. Mas é óbvio que todos nós estávamos trabalhando, o Onyx principalmente, que é muito ligado a todos nós”, continuou Abelardo.
R$ 900 mil para fretar aviões
Vislumbrando a possibilidade de uma vitória – improvável para boa parte dos analistas políticos –, Davi Alcolumbre, um senador ainda no primeiro mandato, empenhou-se. Entre novembro e janeiro, viajou por 19 estados em voos fretados pelo partido que custaram quase R$ 900 mil, tomou centenas de cafezinhos e promoveu jantares que entraram madrugadas adentro. O DEM, cabe lembrar, é nada mais que um novo nome do velho PFL, que por sua vez surgiu em 1985 de uma dissidência do extinto PDS, o partido que deu suporte à ditadura militar de 1964.
Dizendo-se representante da “nova política”, lançou mão de uma estratégia agressiva. Fez incursões por estados como Goiás, Mato Grosso, Ceará, Bahia, São Paulo e Rio Grande do Sul para visitar senadores e pedir votos durante o recesso parlamentar.
Segundo aliados próximos como os Lupion e assessores que o acompanham há anos, Alcolumbre apertava a campainha da casa dos colegas e pedia para tomar um café. Dizia, então, ser “amicíssimo” de Lorenzoni e, portanto, ter trânsito livre no governo Bolsonaro. Não seduziu a todos os interlocutores. No próprio partido, teve que driblar a desconfiança do prefeito de Salvador, Antônio Carlos Magalhães Neto, o ACM Neto, herdeiro do velho cacique baiano e presidente da legenda, e de parte dos colegas que preferiam apoiar um nome de outro partido – tinham preferência por Simone Tebet, do MDB. Muitos demistas achavam que a prioridade deveria ser a eleição de Rodrigo Maia na Câmara e que brigar pelo comando das duas casas seria um passo ousado demais.
“Queríamos apoiar um candidato anti-Renan, mas nem o DEM abraçou a candidatura do Davi integralmente no começo”, comentou comigo Izalci Lucas, do PSDB, partido que apenas decidiu o apoio a Alcolumbre na véspera da eleição. Até aquele momento, outros competidores também se vendiam como “o anti-Calheiros”: Esperidião Amin, do PP catarinense, o paranaense Alvaro Dias, do Podemos, o baiano Angelo Coronel, do PSD, e Major Olímpio, do PSL paulista.
Assim, até a véspera de 1º de fevereiro, Renan Calheiros circulava pelos corredores do Senado dizendo a quem quisesse ouvir que Alcolumbre era um “coitado” que não merecia ser levado a sério, me contou Pedro Lupion.
Oito horas sem banheiro
Mas a sorte sorriu para Davi Alcolumbre no dia 1º, data da sessão inaugural do Senado em 2019. Único remanescente da mesa diretora de 2018, coube justamente a ele presidir a reunião. Minutos antes dela começar, o senador recebeu a visita de ACM Neto e do ex-ministro da Educação Mendonça Filho. Deles, ouviu que aliados de Renan Calheiros planejavam ocupar a mesa do Senado para impedi-lo de presidir a sessão. O amapaense correu ao plenário e sentou-se na cadeira principal, de onde só sairia mais de oito horas depois.
Ciente da missão que tinha pela frente, Alcolumbre não se abalou nem mesmo quando Calheiros e Kátia Abreu sentaram-se ao lado dele, numa clara tentativa de intimidação. Também fez a egípcia diante de perguntas sobre sua candidatura à presidência do Senado – se confirmasse a intenção, daria munição aos que queriam tirá-lo do comando daquela sessão, já que um candidato não pode presidir eleição.
Com a caneta na mão, Alcolumbre ficou livre para evitar atos que o prejudicariam e avançar nos que o beneficiariam, como o voto aberto. A intenção era constranger os senadores que pretendiam votar em Calheiros, que se tornou um símbolo da “velha política” nas redes sociais.
A partir de uma coleta de assinaturas promovida por aliados, o senador pôs em discussão a proposta votação aberta, que venceu por 50 votos a 2. O regimento do Senado exige aprovação unânime para que essa mudança seja adotada, mas o presidente interino patrolou a regra.
Provocado por MDB e Solidariedade, que questionaram a manobra de Alcolumbre, o presidente do STF, Dias Toffoli, iria decidir, já na madrugada de sexta, que a eleição ao Senado deveria ter voto secreto. A sentença já era prevista pelos aliados de de Alcolumbre.
Enquanto Alcolumbre se mantinha agarrado à cadeira de presidente, os Lupion, pai e filho, circulavam pelo plenário conversando com senadores e levando relatos ao presidente. Tal qual jogadores de futebol quando reclamam com o árbitro, cobriam a boca com a mão ao falar, para não serem entendidos por quem os observava. O conteúdo das conversas era a apuração – em tempo real – dos votos a favor do demista.
Calheiros: “Vou te dar porrada”
A sessão foi a mais quente do Senado em anos. Calheiros, exaltado, berrava contra Alcolumbre, atropelando contra o protocolo de pedir a palavra no microfone. Trocou ofensas com Tasso Jereissati, do PSDB cearense, e foi contido para não partir para cima do adversário. “Seu merda”, bradou. “Vou te dar porrada”. Jereissati, que seria candidato, desistiu, e os tucanos aderiram a Alcolumbre.
Enquanto isso, Kátia Abreu, a ruralista famosa pela amizade com Dilma Rousseff e naquele momento aliada de Calheiros, gritava a plenos pulmões que, se Alcolumbre era presidente, “qualquer um poderia ser”. Ela conseguiu furtar a pasta preta do demista – que continha uma espécie de manual sobre como agir às manobras dos adversários –, colocou-a debaixo do braço e desceu ao plenário. Depois, voltou à mesa, sentou-se ao lado de Alcolumbre e passou horas abraçada à pasta.
Em meio à refrega, o novato Jorge Kajuru, do PSB goiano, resumiu a situação: “O Brasil inteiro está nos vendo e dizendo: ‘isso não é um Senado Federal’. Talvez um hospício. Ou pior, aquela outra palavra que toda cidade de interior tem.”
Eram mais de 22h quando Alcolumbre aceitou a sugestão de suspender a sessão e continuar no dia seguinte, sábado, com o paraibano José Maranhão, do MDB, decano da casa, comandando a votação. Àquela altura, depois de mais de oito horas de sessão nas quais não levantou nem para ir ao banheiro, Alcolumbre acumulava duas vitórias: apoios declarados ao voto aberto e a chance de se lançar candidato no dia seguinte.
Ao finalmente se levantar da cadeira de presidente, Alcolumbre saiu do plenário cercado por aliados e com o jornalista político Fernando Rodrigues dependurado em seu pescoço, dizendo-lhe que aquela havia sido “a melhor sessão que ele já viu”. Já sozinho, foi direto ao banheiro da liderança do DEM, onde ficou por vinte minutos.
“Ele cresceu com a postura naquela sessão. Mostrou que tinha maturidade”, derreteu-se o tucano Izalci Lucas. “Achamos que a vitória de Rodrigo [Maia, na Câmara] poderia atrapalhar o Davi, mas ele se mostrou hábil em incluir todos os partidos na divisão da Mesa e isso o favoreceu”.
‘A única vitória do governo até agora’
Refeito, Davi Alcolumbre teve ainda mais uma madrugada de pouco sono – enredado em mais conversas e pedidos de apoio, dormiu menos de duas horas. Valeu a pena: no sábado, ouviu que Simone Tebet iria retirar sua candidatura para apoiá-lo. Foi o sinal de que a vitória estava próxima. Tebet era um nome forte na disputa, mas acabou engolida pelo partido, o MDB, que decidiu lançar Calheiros. Alvaro Dias e Major Olímpio fariam o mesmo pouco depois.
A confirmação, porém, só viria após mais uma longa e tortuosa sessão, assim como a do dia anterior. Como esperado pelos apoiadores de Alcolumbre, Toffoli restabeleceu o voto secreto. Para seguir constrangendo senadores dispostos a votar em Calheiros, os apoiadores de Alcolumbre sugeriu que o grupo revelasse cada voto em redes sociais e para a imprensa, o que tornou a sentença judicial inócua.
Na hora da contagem dos votos, surpresa: surgiram 82 cédulas para 81 senadores. Mais uma hora de discussão até Maranhão refazer a votação. Coube ao senador Acir Gurcacz, do PDT de Rondônia, que cumpre pena em regime semiaberto na penitenciária da Papuda, em Brasília, destruir as 82 cédulas – fora ele escolhido para fiscalizar o pleito.
Na segunda votação, o novato Flávio Bolsonaro, do PSL fluminense, filho do presidente Jair Bolsonaro, abriu o voto, o que não fizera antes. Especulava-se que o clã apoiava Calheiros – Flávio, acossado por movimentações financeiras suspeitas, recebeu um demorado abraço do emedebista ao chegar ao plenário; Jair, por sua vez, chegara a telefonar para cumprimentar o alagoano depois dele vencer a prévia do MDB.
Possesso, Calheiros foi à tribuna: “Flávio Bolsonaro, diferentemente da votação anterior, abriu o voto. Abriu o voto! Abriu o voto! Abriu o voto!”, repetiu. “Este processo não é democrático”, atalhou, sob vaias. “E para demonstrar que esse processo não é democrático, eu queria lhes dizer que o Davi (Alcolumbre) não é Davi. O Davi é o Golias. Ele é o novo presidente do Senado e eu retiro a minha candidatura, porque não vou me submeter a isso.”
A renúncia surpresa transformou o clima do plenário. As vaias cessaram, e ele foi aplaudido. Porém, como Calheiros só abandonou a corrida após o início da votação, o alagoano ainda contabilizou cinco votos. Alcolumbre teve 42.
Encerrada a sessão, Simone Tebet e Alcolumbre se abraçaram por quase um minuto, ambos aos prantos. Em seguida, ele passou a escrever o discurso da vitória no celular, ajudado por Randolfe Rodrigues, a esposa Liana Andrade, que o acompanhava de um canto do plenário, e assessores. Levou cerca de oito minutos para finalizar o texto.
Era hora de sair do plenário e celebrar na residência oficial da presidência Senado. Por coincidência, era aniversário de Samuel José Tobelem, pai de Alcolumbre e comerciante em Macapá, e havia um bolo de chocolate à espera. A adrenalina finalmente baixou. O amapaense se afastou do celular e aproveitou a festa, virando mais uma madrugada – a terceira. Horas depois, Pedro Lupion me diria que a inesperada eleição de Davi Alcolumbre foi “a única vitória do governo Bolsonaro” até agora.
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