quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Lições de Brumadinho para o setor elétrico

Por Roberto Pereira D’Araujo, no site Correio da Cidadania:

Além da tris­teza ao ver tantas vidas sendo eli­mi­nadas por ab­so­luta falta de res­pon­sa­bi­li­dade e planeja­mento, o crime de Bru­ma­dinho des­vendou uma la­men­tável re­a­li­dade bra­si­leira. O que se notou na tra­gédia hu­mana, am­bi­ental e econô­mica foi a per­cepção de que as em­presas pri­vadas explo­ra­doras de ri­quezas na­tu­rais no país se apro­veitam da in­ca­pa­ci­dade dos ór­gãos re­gu­la­dores e fisca­li­za­dores de re­a­lizar a con­tento sua função. 

É como se a in­com­pe­tência das agên­cias fosse “parte do ne­gócio”. No caso da mi­ne­ração, essa inépcia foi ex­posta com toda a sua crueza. A Agência Na­ci­onal de Mi­ne­ração (ANM), res­pon­sável pela fis­ca­li­zação, tem apenas 35 fis­cais ca­pa­ci­tados para mo­ni­torar mais de 800 bar­ra­gens com problemas po­ten­ciais.

É pos­sível ima­ginar o im­pacto de re­dução de custo da Vale ao sim­ples­mente adiar pre­vi­sí­veis e conhe­cidos re­paros que se­riam exi­gidos, caso essas mi­ne­ra­ções fossem fis­ca­li­zadas com rigor. Pode-se até dizer que os quase R$ 6 bi­lhões de lucro ob­tidos em apenas 1 tri­mestre de 2018 também se deveu a esse “laissez faire” de­cor­rente do raquí­tico Es­tado re­gu­lador.

Que li­ções se ex­põem para o setor elé­trico?

Em 2016, havia em exer­cício na ANEEL 163 ana­listas ad­mi­nis­tra­tivos, 340 es­pe­ci­a­listas em regulação, 127 téc­nicos ad­mi­nis­tra­tivos, 20 pro­cu­ra­dores, 20 ser­vi­dores do quadro es­pe­cí­fico e 39 ser­vi­dores ocu­pantes de cargos co­mis­si­o­nados, sem vín­culo efe­tivo com a Ad­mi­nis­tração, além de 10 ser­vi­dores ce­didos à Agência por ou­tros ór­gãos.

O Brasil tem mais de 900 usinas hi­dro­e­lé­tricas, sendo que 130 são usinas con­si­de­radas de grande porte. As li­nhas de trans­missão su­peram 120 mil quilô­me­tros. Há mais de 200 su­bes­ta­ções importantes no sis­tema in­ter­li­gado. Quase 40 em­presas dis­tri­bui­doras são a ponta da re­lação com o con­su­midor.

Ao con­trário da crença ge­ne­ra­li­zada, o setor elé­trico já é ma­jo­ri­ta­ri­a­mente pri­vado. Em nú­meros apro­xi­mados, 90% na dis­tri­buição, 60% na ge­ração e 55% na trans­missão.

Quem acre­dita que esse quadro da ANEEL é capaz de re­gular e fis­ca­lizar um sis­tema tão amplo e com­plexo como o elé­trico bra­si­leiro?

É fácil mos­trar que a de­bi­li­dade do Es­tado re­gu­lador bra­si­leiro pode ser fa­cil­mente per­ce­bida ao olhar atento de qual­quer um. Vejam:

1. O es­tado de total con­fusão dos postes nas redes de dis­tri­buição não são apenas “feios”. Pro­vocam riscos às equipes de ma­nu­tenção, são também ele­tri­ca­mente ine­fi­ci­entes, su­jeitos a curtos e es­condem perdas elé­tricas. Qual a ação da ANEEL sobre essa re­a­li­dade? Ne­nhuma.

2. Esse au­mento de risco de­veria poder ser me­dido através de fis­ca­li­za­ções in­de­pen­dentes sobre apa­gões e pe­quenos curtos. Esse úl­timo, co­nhe­cido como “pico de luz” é de­cor­rente da ins­ta­lação de chaves co­mu­ta­doras au­to­má­ticas que des­ligam o cir­cuito por se­gundos ao per­ceber curtos que podem ser cau­sados por ga­lhos de ár­vore. Essa es­tra­tégia evita custos de mo­ni­to­ra­mento da rede com as ár­vores, mas causa tran­si­entes de cor­rente que queimam ele­tro­do­més­ticos. Qual a atu­ação da ANEEL sobre esse efeito? Ne­nhuma!

3. O sis­tema elé­trico bra­si­leiro é muito di­fe­rente dos sis­temas elé­tricos de países de­sen­vol­vidos. Aqui, pelo fato de termos 70% da ca­pa­ci­dade total ba­seada em hi­dro­e­lé­tricas de hi­dro­logia tro­pical, pro­vocou um com­por­ta­mento atí­pico no cha­mado mer­cado livre. Os dados mos­tram que, de 2003 até 2012, o cha­mado mer­cado livre cap­turou as van­ta­gens de so­bras de oferta e altas hi­dro­lo­gias. Preços muito in­fe­ri­ores a qual­quer com­pa­ração in­ter­na­ci­onal podem ser con­sul­tados nos dados ofi­ciais. Uma vez que o sis­tema é único, quando uma parte da carga se be­ne­ficia de ca­rac­te­rís­ticas do sis­tema físico, a outra parte as­sume custos muito mai­ores. Uma vez que a ANEEL cuida das ta­rifas, como jus­ti­ficar que essa agência não tenha se­quer um pro­nun­ci­a­mento sobre essa questão?

4. Em 2011, uma com­porta da usina Salto Osório da Trac­tebel, em­presa pri­vada, se soltou e foi arrastada pelas águas. Uma peça de 162 to­ne­ladas, ao se des­prender, ficou “per­dida” no leito do rio. Como con­sequência, o re­ser­va­tório teve que ser es­va­ziado para se ins­talar uma com­porta pro­vi­sória. O vo­lume útil da usina é de 400 mi­lhões de me­tros cú­bicos! Uma apro­xi­mação da energia per­dida com esse aci­dente pode ser es­ti­mada pela po­tência da usina e pelos dias em que ela parou. Com capaci­dade ins­ta­lada de 1.078 MW, cerca de 50.000 MWh foram per­didos em apenas dois dias na usina. Como o sis­tema de hi­dro­e­lé­tricas fun­ciona como um con­do­mínio, tal evento teve consequências. Que pe­na­li­dade foi apli­cada pela ANEEL? Ne­nhuma.

5. O pro­gresso tec­no­ló­gico vi­a­bi­lizou a trans­for­mação de luz solar em energia elé­trica, a forma de pro­dução que não se ba­seia em energia ci­né­tica. Dada a evi­dente van­tagem bra­si­leira, a ge­ração distri­buída está cres­cendo a altas taxas, até por re­agir ao au­mento ta­ri­fário que a agência não consegue conter. Evi­den­te­mente, dada a omissão do poder re­gu­lador, con­flitos entre dis­tri­bui­doras e con­su­mi­dores estão sur­gindo com uma cres­cente onda de abusos por parte das em­presas. O que a ANEEL tem feito para evitar os con­flitos e re­co­nhecer os be­ne­fí­cios e ma­le­fí­cios dessa forma de geração? Ab­so­lu­ta­mente nada.

Ver­gonha! É o que de­ve­ríamos sentir sobre essa com­bi­nação de ir­res­pon­sa­bi­li­dade e com­pla­cência sobre as­suntos tão es­sen­ciais. É um grande ve­xame mun­dial o que o Brasil apre­senta nesse ce­nário de re­gu­lação de ati­vi­dades pri­vadas que lidam com a na­tu­reza e com pe­rigos para a vida.

Também é uma ver­gonha per­ceber que a im­prensa e seus co­men­ta­ristas passam ao largo do pro­cesso de pri­va­ti­zação bra­si­leiro, tra­tando o tema como se não ti­vesse re­lação al­guma com o com­por­ta­mento da ou­trora es­tatal Vale do Rio Doce.

Ver­gonha per­ceber que a so­ci­e­dade não tem a mí­nima ideia das ne­ces­si­dades do cha­mado Es­tado re­gu­lador, mesmo quando uma sim­ples pes­quisa na in­ternet re­vela a enorme di­fe­rença entre o que temos e o que existe nos Es­tados Unidos, por exemplo.

Ver­gonha também per­ceber que, mesmo com essas e ou­tras fa­lhas pri­vadas, a hi­pó­tese de re­to­mada da qua­li­dade his­tó­rica de em­presas pú­blicas des­po­li­ti­zadas e efi­ci­entes está pra­ti­ca­mente des­car­tada, dado o alto grau de des­truição de seus qua­dros téc­nicos.

Es­tamos a ponto de pri­va­tizar a Ele­tro­bras como se fosse um as­sunto que nada tem a ver com a tra­gédia das bar­ra­gens da Vale.

Re­al­mente, es­tamos no pior dos mundos, pois a de­sin­for­mação es­corre pelo vale de lá­grimas bra­si­leiro.

* Ro­berto D'Araujo é en­ge­nheiro, ex-con­sultor da Ele­tro­brás e co­la­bo­rador do Ins­ti­tuto Ilu­mina.

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