quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Morte da empatia? Assembleias de som e fúria

Por Manuela D´Ávila, no site da Fundação Maurício Grabois:

Passadas as eleições – momento de paixões e de natural simplificação dos argumentos –, penso que as pessoas comprometidas com a democracia, com as liberdades e com o futuro do país precisam entrar em uma etapa de reflexão. Não se trata de abandonar a ação, cada vez mais necessária, mas de perceber que a eleição de Jair Bolsonaro tem um significado profundo, representa uma ruptura importante e pede uma análise equilibrada, madura e, especialmente, aberta. Minha impressão é de que, em nosso velho e respeitável arsenal de conceitos e interpretações, não vamos encontrar material suficiente para uma decifração rápida do fenômeno em curso.

Não rejeito as experiências históricas; elas são parte do patrimônio da esquerda e nos oferecem importantes pontos de partida. A década de 1930, por exemplo, pode nos proporcionar algumas analogias que já estão sendo utilizadas e talvez contribuam para a compreensão do que vivemos. Essas comparações, no entanto, precisam assumir um papel subsidiário, já que a realidade atual difere bastante da enfrentada nos anos 1930, tanto em termos de conjuntura internacional quanto do ponto de vista da crise que vive o capitalismo e do tipo de alternativa que os setores mais reacionários estão buscando.

Um ponto de partida que me parece interessante são as obras de uma série de autores que têm buscado estudar a política – ou a superestrutura, para usar um conceito mais clássico – com base em diagnósticos diversos sobre uma crise da democracia, da política, do constitucionalismo ou do estado de direito. Para alguns desses autores, esses quatro conceitos vivem hoje uma decadência simultânea. Para outros, cada uma dessas crises constitui um fenômeno isolado e por vezes contraditório. Essa discordância, nesta fase especulativa de nossa elaboração, é um trunfo, não um problema.

O jurista italiano Luigi Ferrajoli, por exemplo, tem alertado para o surgimento do que ele chama de “poderes selvagens”, que seriam mobilizações ocasionais de maiorias por meio de processos plebiscitários formais ou informais, em geral em momentos e temas de grande comoção, com vistas a atacar garantias individuais. Partindo de pressuposto parecido, ainda que buscando responder a questões que não estão diretamente ligadas ao estado do direito, o historiador francês Pierre Rosanvallon tem afirmado coisas parecidas, apenas para citar dois exemplos que talvez esclareçam o que estou tentando dizer.

Tenho pensado que a internet, especialmente as redes sociais, transformaram a política em uma espécie de assembleia permanente. Não se trata, no entanto, de uma esfera pública como a nascida na Revolução Francesa, lugar no qual uma série de vozes, algumas privilegiadas, outras bastante oprimidas, lutavam por seus pontos de vista. Trata-se de um lugar que lembra mais o verso de Hamlet que inspirou o romance mais bonito de William Faulkner: um espaço de som e fúria. Correndo o risco de fazer um uso um pouco instrumental e ligeiro de um conceito complexo, minha sensação é de que uma linguagem e uma gramática comuns se romperam, de modo que o que se estabeleceu nessa assembleia permanente não foi um diálogo, mas uma agitação infinita, uma babel de incompreensão.

Diante dessa percepção do que se tornou o ambiente virtual, não pretendo me tornar uma nova ludista. Nem poderia, quando percebo diariamente o poder dessas mesmas redes para fazer o oposto disso, para construir o bem comum; quando, mesmo em um processo eleitoral marcado pela baixeza, vivi momentos de indiscutível beleza nesses espaços virtuais. Esses pontos positivos, no entanto, não devem nos fazer desconsiderar o caráter destrutivo que a coisa tem assumido.

A questão é que essas assembleias de som e fúria são capazes de mobilizar de forma impressionante os tais poderes selvagens. E têm conseguido fazê-lo com uma velocidade, sentido único e violência que ameaçam claramente as instituições democráticas e o estado de direito. Declarações como aquela da ministra Rosa Weber – presidente da instituição guardiã da lisura e da legitimidade no processo eleitoral –, de que, diante da avalanche de mentiras das fake news, não podia fazer milagre, devem ser vistas menos na chave da agitação política e mais na da reflexão político-teórica.

Segurança, morte, violência

Uma das razões do mal-estar que todos os democratas estão sentindo está relacionada à perplexidade diante do fato de um homem como Bolsonaro ter sido alçado à Presidência da República mesmo dizendo todas as barbaridades que disse. Como que alguém cheio de bazófia e sem o mínimo recato, falando o linguajar do porão da ditadura, como lembrou o sociólogo Celso Rocha de Barros, pôde receber esse mandato das mãos do nosso povo? E não foi só ele. Fiquei especialmente chocada com as promessas de campanha dos candidatos ao governo de São Paulo e do Rio de Janeiro, assegurando que suas polícias militares atirariam para matar.

Na verdade, esse é o resultado de um processo bastante profundo, de escala internacional, de construção de uma verdadeira paranoia securitária. A esquerda, que sempre elaborou de maneira pobre e insuficiente o tema da segurança, subestimando os justos receios da população, permitiu que a direita ficasse sozinha nesse debate. Isso fez que o Estado passasse a ser visto por grande parte da população como um instrumento de gestão da morte. Fenômenos como a violência policial e o encarceramento em massa, voltados especialmente contra a população negra, foram apresentados como programa de governo por uma série de candidaturas vitoriosas, o que é uma tragédia humana de dimensões ainda incalculáveis.

Esse fenômeno não acontece só no Brasil nem foi produzido apenas pelos programas de TV que mostram sangue e morte todos os dias, mas é estruturante da atual fase da crise do capitalismo, como tem lembrado o filósofo camaronês Achille Mbembe e, em chave algo distinta, mas igualmente frutífera, autores como os franceses Pierre Dardot e Christian Laval e a mexicana Sayak Valencia, entre outros. Vivemos o capitalismo do caos, da pilhagem e do descarte, no qual é preciso organizar a morte em massa de nossos semelhantes.

Para que possamos aceitar promessas de morte como aquelas feitas pelo presidente eleito e pelos governadores que citei é preciso que algo tenha se quebrado dentro de nós. A historiadora norte-americana Lynn Hunt, em seu O nascimento dos direitos humanos, sustenta a ideia de que a empatia, ou seja, a capacidade de sentirmos a dor dos outros, tem uma história determinada. Ela teria nascido no século XVIII, o século do Iluminismo e da Revolução Francesa. Se de fato estivermos vivendo o fim do mundo criado pela grande Revolução de 1789, como têm defendido alguns dos autores lembrados neste texto, é possível que estejamos vendo a empatia morrer. Se tenho muito mais dúvidas do que certezas, como este texto transparece, há algo de que estou convicta: é preciso que joguemos uma boia para a empatia, e é necessário que façamos isso agora. Aqueles que querem organizar a morte precisam acabar com o que resta da empatia para que seu projeto possa continuar sendo aplicado. Algo me diz que o lugar de vanguarda das mulheres nas últimas lutas tem algo a ver com isso. Nós – que fomos socializadas para o cuidado e para a entrega, que tantas vezes sentimos a dor dos filhos de maneira mais aguda do que a nossa própria – talvez tenhamos percebido antes dos outros que a empatia, que tem nome de mulher, está doente. Quem sabe venha daí a frase que mais ouvimos e dissemos no dia seguinte à tragédia que nos atingiu: “Ninguém solta a mão de ninguém”.

* Manuela D’Ávila é jornalista, foi deputada estadual no Rio Grande do Sul (2014-2018) e deputada federal pelo PCdoB. Foi candidata à vice-presidenta da República.

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