Por Roberto Bueno, no site Carta Maior:
Há normas jurídicas marcadamente claras, classificáveis como “simples”, sobre as quais o modelo de interpretação a ser aplicado pode ser reputado “direto”, bastando com subsumir a conduta à previsão legal, a exemplo da norma “Pare quando o semáforo indicar a cor vermelha”. Contudo, grande parte das normas jurídicas não é classificável dentre as “diretas”, senão o contrário, e a sua indeterminação ocorre não raro por interesses político-ideológicos de corte autoritário. Exemplo disso é a linguagem jurídica utilizada pelo projeto anticrime proposto pelo Ministro da Justiça, Sergio Moro.
O projeto anticrime de Moro em sua essência é inconstitucional. A reforma do art. 23 do Código Penal, introduzindo expresso dispositivo prevendo (§1º) que malgrado os agentes policiais possam responder por excessos, (§2º) que “O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. O poder político é deslocado da esfera democrática em que opera o legislador para a discricionariedade do magistrado. O projeto de Moro despreza a proteção ao mais alto bem jurídico, a vida.
O projeto de Moro prevê que, malgrado a configuração de excessos, os agentes policiais poderão ter a sua pena reduzida à metade ou, até mesmo, deixar de ser aplicada, acaso o excesso tenha sido praticado como decorrência de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Sob tais estados emocionais alterados (falsificados ou não), essa legislação aberta pavimenta o caminho para o avanço totalitário. A esse respeito a afirmação de que Alessandro Baratta de que no regime nazista “La técnica legislativa contribuía a esta decisiva superación del formalismo y la metodología del positivismo jurídico, recurriendo a especies fácticas abiertas, a las cláusulas generales incluso en las partes más sensibles del ordenamiento jurídico, como el Derecho Penal [...]”. O projeto de Moro adota essa opção técnica cujas consequências são conhecidas.
Para o teórico do direito nazista Nicolai, o juiz não poderia permanecer em tranquila área de indiferença relativamente aos resultados da função jurisdicional de aplicação do direito, posto que sua condição era a de um servidor do direito, mas não da lei em sentido estrito, pois tem a responsabilidade de que as suas decisões expressem o direito, e não tão somente a lei. Essa teoria pressupõe magistrado pronto a intervir e conter as consequências da aplicação estrita da gramática legal e, assim, para evitar um “injusto”, habilita-se o magistrado para decidir conforme a vontade do Führer. Famosa é a carta de Roland Freisler ao Führer ao tomar posse na magistratura alemã e afirmar que o “Volksgerichtshof ” que assumia se esforçaria sempre em julgar de forma que o própio Führer o faria. Já não julgaria conforme a lei.
A crise econômica alemã da década de 1920 fez com que milhares de pessoas enfrentassem graves problemas para assegurar a sobrevivência sob o avassalador avanço das taxas de inflação e de desemprego e, nessa medida, as teorias penais em evidência sobre a criminalização de marginais, desocupados e “desajustados” em geral começam a tornar-se de extrema utilidade para enfrentar um problema que tinha raízes bem mais profundas do que aquelas que o direito penal pode enfrentar com eficácia. Típica resposta do regime foi a Lei do Delinquente Perigoso (1933). Para o teórico nazista Alfred Rosenberg o castigo não contemplaria as funções da pena concebidas por von Liszt como a reeducação, a reinserção social e as funções punitivas ou de retribuição à sociedade, senão que, in extremis, se tratava era de impor a pena entendida como estratégia para isolamento dos personagens esquisitos e reputados como indesejáveis. Esta é uma das vias capazes de pavimentar e eficazmente instaurar o puro terror em matéria penal.
Mas isso é o que demandava um sistema penal com orientação expiatória como foi o nazismo, visando a castigos duríssimos como se deles fosse possível extrair a purificação dos crimes cometidos e a purificação da alma do delinquente, incluindo a possibilidade de aniquilamento dos delinquentes, e uma fase disso era a imposição da perda dos direitos civis, característica do caráter desonroso da pena juntamente ao regime de isolamento (Einzelhaft) imposto.
O magistrado dispunha de competência e dever funcional para proteger a ordem concreta do Reich, e isso implicava combater os seus inimigos, cuja lista nunca deixa de ser ampliada conforme as conveniências do regime, dentre os quais foram apontados os marxistas, aos quais Hitler reservava a morte, eliminando esses “traidores da pátria”, perseguindo também intensamente os indivíduos classificáveis como “daninhos” à ordem social. Equivocam-se aqueles que suspeitam que o regime totalitário fixa e cristaliza um determinado grupo específico de inimigos. Na Alemanha não se tratava de eliminar apenas os não ários mas, também, os ários que de algum modo não encaixassem no modelo ideológico e os interesses do regime: “Deutschland über alles” (Alemanha acima de tudo) justificaria tudo. E no Brasil?
O tipo legal absolutamente aberto constante no projeto de Moro propõe a substituição do art. 23, §2º do Código Penal por um tipo absolutamente aberto que a ordem jurídica nazista não se atreveu criar. Moro propõe destituir os indivíduos do direito constitucional à vida. É direto o ataque à presunção de inocência, pétrea norma constitucional, atacado por lei infraconstitucional. É notável como até a política criminal nazista apontou para que os delinquentes considerados inimigos da comunidade fossem condenados à pena de morte. Contudo, mesmo o nazismo admitia a necessidade de que a pena de morte seria aplicada apenas depois de decisão judicial, e não aplicada legalmente pela autoridade policial. A proposta de Moro dá um passo além do que previu o nazismo nesse particular.
A reforma do art. 23, §2º proposta por Moro é a legalização do extermínio de vidas humanas por meio de mera declaração de sentimentos ou percepções abstratas por parte das autoridades do Estado. Essa abertura do tipo legal é técnica jurídica legislativa que interessa a qualquer modelo de Estado autoritário ou totalitário. A proposta de Moro tem potencial de ir além do direito penal nazista, assumindo eliminar pessoas e grupos inteiros ao criminalizá-los, reduzindo-os a figuras situadas aquém da esfera dos direitos que vigoram para os cidadãos comuns.
Moro propõe a legalização de que as autoridades policiais disparem mortalmente, mas sabemos que não serão em nenhum caso os “homens de bem” as suas vítimas, pois não reagirão sob “violenta emoção” nem sentirão “escusável medo” nos finos condomínios habitados pelos homens de bem, mas sim ali onde reside a massa de homens e mulheres, nas periferias das cidades, nos subúrbios, nas favelas ou, ainda, nas manifestações públicas contrárias ao establishment, quando a massa esteja a demandar os seus direitos suprimidos pelo neofascismo. Será sobre o corpo dos pobres, a “ralé”, que serão disparados os projéteis que colocarão as suas vidas em risco. É a mesma “ralé” prevista na exposição de motivos da famigerada legislação nazista intitulada Projeto de Lei de Tratamento de Estranhos à Comunidade (1944), cujo texto prevê que era fruto da experiência de décadas da qual se extraía que a criminalidade realmente se alimenta das “ralés” (Sippen) “menos valiosas”. A esses corpos que a legislação nazista pretendia matar, como a legislação de Moro. Esses “estranhos à comunidade” representam o amplo coletivo ao qual aplicar o “direito penal do inimigo”, o “não direito”, a negação de sua humanidade cuja consequência é a negação de direitos a ele aplicáveis.
A magnífica ampliação dos poderes judiciais permite que firme decisões com base em argumentos finalísticos e normas abertas, profundamente abstratas traduzidas nos conceitos de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. O claro passo autoritário vai além do aumento do território da legítima defesa ou exercício do dever legal, pois mesmo quando estas excludentes de ilicitude não se verifiquem, ainda assim, o exame jurisdicional da alegação da defesa policial poderá encontrar fundamentação para a não aplicação da sanção pelo abuso resultante em eventual homicídio pela autoridade policial poderá encontrar a sua ancoragem firme em categorias escorregadiças como “escusável medo”, “surpresa” ou “violenta emoção”. Sob tipo tão aberto e amplo será possível condenar apenas a quem se queira, e absolver a todos os demais.
As normas abertas não representam um erro legislativo, mas compromisso de fundo com a criação de norma jurídica que não proteja a sociedade do arbítrio. As normas penais abertas apresentam como alvos coletivos classificados politicamente como “perigo para a comunidade”, “perturbadores da paz” (Störenfriede). Assassiná-los pode interessar ao regime, missão a ser cumprida por agentes do Estado, em cuja educação sejam inculcados valores facilitadores da identificação de personalidades classificáveis como “perigosas”, das quais se possa “deduzir” ser propensas à comissão de crimes. Este era trecho da exposição de motivos do Projeto de Lei de Tratamento de Estranhos à Comunidade (1944) defendido pelo nazismo.
O art. 23, §2º do projeto de Moro defende a exclusão da ilicitude da ação policial baseada apenas em sua avaliação subjetiva do agente com base em “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Isso choca frontalmente com o princípio do nulla poena sine lege (nula a pena sem previsão legal), pois autoriza na prática a pena capital sem mediação judicial. Paralelamente, também no direito nazista o “sentimento” foi elevado a condição de categoria de fonte do direito penal, mas se lá era possível estabelecer a condenação à morte, isso demandava a mediação judicial, o que não ocorre no projeto de Moro. A rigor, em seu art. 23, §2º o projeto praticamente legaliza conjunto de autoridades policiais com poderes similares aos nazistas “grupos especiais” (Einsatzgruppen) de extermínio que agiram na Polônia e na então União Soviética.
Está em curso fenômeno similar quando conceitos basilares da ordem jurídica brasileira vão sendo triturados pelo regime militar inimigo da democracia. Assim foi, por exemplo, quando desprezou o direito ao sigilo telefônico da Presidência da República; adiante, desprezou o princípio do nullum crimen, nulla poena sine lege para condenar indivíduos a altas penas de prisão, como o ex-Presidente Lula. E com isso propõe a revogação de um princípio básico da lei penal proposta por von Liszt de que este nullum crimen sine lege representa o baluarte do cidadão frente à onipotência estatal.
A vida é a orientação e preocupação última e superior de uma sociedade que se estrutura sobre um Estado democrático de direito, enquanto a destruição, a eliminação e a morte é o viés que orienta os regimes totalitários. Os princípios, valores e as escolhas do nazismo foram infames, assim como são aqueles que hoje perseguem o mesmo caminho. Reconhecer os instrumentos que apoiam as forças constitutivas desse horizonte autoritário é a necessária primeira medida para a reação, e a formatação anti-iluminista do direito penal é um dos sinais que permite reconhecer a eclosão de tempos sombrios.
Nesses termos vai sendo proposta a passagem contemporaneamente da antidemocrática teoria do direito penal do inimigo para o inimigo exposto à execução sumária e sem direito. São duas as possibilidades: ou a deliberação de proteger a vida, ou a deliberação pela orientação da aceleração da morte por meio de instituições que concedem licença à barbárie. O projeto “anticrime” de Moro é desse segundo tipo. É preciso escolher entre os propósitos e princípios civilizados típicos de um direito penal próprio de um Estado democrático de direito e outro, de raízes bastante diversas, em que o homem é plenamente instrumentalizável. Por trás disso são duas as filosofias e visões de mundo hoje em choque, inconciliáveis, incomunicáveis, irredutíveis. É preciso escolher entre elas, a Lebensphilosophie e a “Mordphilosophie” talvez resumíveis em um último enfrentamento entre a filosofia da vida e a filosofia da morte.
* Roberto Bueno é Professor Doutor Adjunto IV da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Doutor em Filosofia do Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em Filosofia do Direito e Teoria do Estado (UNIVEM). Especialista em Ciência Política e Direito Constitucional pelo Centro de Estudos Constitucionais de Madrid (CEC). Pós-Doutor em Filosofia do Direito (UNIVEM). Estágio doutoral em Filosofia do Direito no Programa de Doutorado da Faculdade de Direito da Universidade Autônoma de Madrid (UAM) (1992-1994). Graduado em Direito pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL).
Há normas jurídicas marcadamente claras, classificáveis como “simples”, sobre as quais o modelo de interpretação a ser aplicado pode ser reputado “direto”, bastando com subsumir a conduta à previsão legal, a exemplo da norma “Pare quando o semáforo indicar a cor vermelha”. Contudo, grande parte das normas jurídicas não é classificável dentre as “diretas”, senão o contrário, e a sua indeterminação ocorre não raro por interesses político-ideológicos de corte autoritário. Exemplo disso é a linguagem jurídica utilizada pelo projeto anticrime proposto pelo Ministro da Justiça, Sergio Moro.
O projeto anticrime de Moro em sua essência é inconstitucional. A reforma do art. 23 do Código Penal, introduzindo expresso dispositivo prevendo (§1º) que malgrado os agentes policiais possam responder por excessos, (§2º) que “O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. O poder político é deslocado da esfera democrática em que opera o legislador para a discricionariedade do magistrado. O projeto de Moro despreza a proteção ao mais alto bem jurídico, a vida.
O projeto de Moro prevê que, malgrado a configuração de excessos, os agentes policiais poderão ter a sua pena reduzida à metade ou, até mesmo, deixar de ser aplicada, acaso o excesso tenha sido praticado como decorrência de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Sob tais estados emocionais alterados (falsificados ou não), essa legislação aberta pavimenta o caminho para o avanço totalitário. A esse respeito a afirmação de que Alessandro Baratta de que no regime nazista “La técnica legislativa contribuía a esta decisiva superación del formalismo y la metodología del positivismo jurídico, recurriendo a especies fácticas abiertas, a las cláusulas generales incluso en las partes más sensibles del ordenamiento jurídico, como el Derecho Penal [...]”. O projeto de Moro adota essa opção técnica cujas consequências são conhecidas.
Para o teórico do direito nazista Nicolai, o juiz não poderia permanecer em tranquila área de indiferença relativamente aos resultados da função jurisdicional de aplicação do direito, posto que sua condição era a de um servidor do direito, mas não da lei em sentido estrito, pois tem a responsabilidade de que as suas decisões expressem o direito, e não tão somente a lei. Essa teoria pressupõe magistrado pronto a intervir e conter as consequências da aplicação estrita da gramática legal e, assim, para evitar um “injusto”, habilita-se o magistrado para decidir conforme a vontade do Führer. Famosa é a carta de Roland Freisler ao Führer ao tomar posse na magistratura alemã e afirmar que o “Volksgerichtshof ” que assumia se esforçaria sempre em julgar de forma que o própio Führer o faria. Já não julgaria conforme a lei.
A crise econômica alemã da década de 1920 fez com que milhares de pessoas enfrentassem graves problemas para assegurar a sobrevivência sob o avassalador avanço das taxas de inflação e de desemprego e, nessa medida, as teorias penais em evidência sobre a criminalização de marginais, desocupados e “desajustados” em geral começam a tornar-se de extrema utilidade para enfrentar um problema que tinha raízes bem mais profundas do que aquelas que o direito penal pode enfrentar com eficácia. Típica resposta do regime foi a Lei do Delinquente Perigoso (1933). Para o teórico nazista Alfred Rosenberg o castigo não contemplaria as funções da pena concebidas por von Liszt como a reeducação, a reinserção social e as funções punitivas ou de retribuição à sociedade, senão que, in extremis, se tratava era de impor a pena entendida como estratégia para isolamento dos personagens esquisitos e reputados como indesejáveis. Esta é uma das vias capazes de pavimentar e eficazmente instaurar o puro terror em matéria penal.
Mas isso é o que demandava um sistema penal com orientação expiatória como foi o nazismo, visando a castigos duríssimos como se deles fosse possível extrair a purificação dos crimes cometidos e a purificação da alma do delinquente, incluindo a possibilidade de aniquilamento dos delinquentes, e uma fase disso era a imposição da perda dos direitos civis, característica do caráter desonroso da pena juntamente ao regime de isolamento (Einzelhaft) imposto.
O magistrado dispunha de competência e dever funcional para proteger a ordem concreta do Reich, e isso implicava combater os seus inimigos, cuja lista nunca deixa de ser ampliada conforme as conveniências do regime, dentre os quais foram apontados os marxistas, aos quais Hitler reservava a morte, eliminando esses “traidores da pátria”, perseguindo também intensamente os indivíduos classificáveis como “daninhos” à ordem social. Equivocam-se aqueles que suspeitam que o regime totalitário fixa e cristaliza um determinado grupo específico de inimigos. Na Alemanha não se tratava de eliminar apenas os não ários mas, também, os ários que de algum modo não encaixassem no modelo ideológico e os interesses do regime: “Deutschland über alles” (Alemanha acima de tudo) justificaria tudo. E no Brasil?
O tipo legal absolutamente aberto constante no projeto de Moro propõe a substituição do art. 23, §2º do Código Penal por um tipo absolutamente aberto que a ordem jurídica nazista não se atreveu criar. Moro propõe destituir os indivíduos do direito constitucional à vida. É direto o ataque à presunção de inocência, pétrea norma constitucional, atacado por lei infraconstitucional. É notável como até a política criminal nazista apontou para que os delinquentes considerados inimigos da comunidade fossem condenados à pena de morte. Contudo, mesmo o nazismo admitia a necessidade de que a pena de morte seria aplicada apenas depois de decisão judicial, e não aplicada legalmente pela autoridade policial. A proposta de Moro dá um passo além do que previu o nazismo nesse particular.
A reforma do art. 23, §2º proposta por Moro é a legalização do extermínio de vidas humanas por meio de mera declaração de sentimentos ou percepções abstratas por parte das autoridades do Estado. Essa abertura do tipo legal é técnica jurídica legislativa que interessa a qualquer modelo de Estado autoritário ou totalitário. A proposta de Moro tem potencial de ir além do direito penal nazista, assumindo eliminar pessoas e grupos inteiros ao criminalizá-los, reduzindo-os a figuras situadas aquém da esfera dos direitos que vigoram para os cidadãos comuns.
Moro propõe a legalização de que as autoridades policiais disparem mortalmente, mas sabemos que não serão em nenhum caso os “homens de bem” as suas vítimas, pois não reagirão sob “violenta emoção” nem sentirão “escusável medo” nos finos condomínios habitados pelos homens de bem, mas sim ali onde reside a massa de homens e mulheres, nas periferias das cidades, nos subúrbios, nas favelas ou, ainda, nas manifestações públicas contrárias ao establishment, quando a massa esteja a demandar os seus direitos suprimidos pelo neofascismo. Será sobre o corpo dos pobres, a “ralé”, que serão disparados os projéteis que colocarão as suas vidas em risco. É a mesma “ralé” prevista na exposição de motivos da famigerada legislação nazista intitulada Projeto de Lei de Tratamento de Estranhos à Comunidade (1944), cujo texto prevê que era fruto da experiência de décadas da qual se extraía que a criminalidade realmente se alimenta das “ralés” (Sippen) “menos valiosas”. A esses corpos que a legislação nazista pretendia matar, como a legislação de Moro. Esses “estranhos à comunidade” representam o amplo coletivo ao qual aplicar o “direito penal do inimigo”, o “não direito”, a negação de sua humanidade cuja consequência é a negação de direitos a ele aplicáveis.
A magnífica ampliação dos poderes judiciais permite que firme decisões com base em argumentos finalísticos e normas abertas, profundamente abstratas traduzidas nos conceitos de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. O claro passo autoritário vai além do aumento do território da legítima defesa ou exercício do dever legal, pois mesmo quando estas excludentes de ilicitude não se verifiquem, ainda assim, o exame jurisdicional da alegação da defesa policial poderá encontrar fundamentação para a não aplicação da sanção pelo abuso resultante em eventual homicídio pela autoridade policial poderá encontrar a sua ancoragem firme em categorias escorregadiças como “escusável medo”, “surpresa” ou “violenta emoção”. Sob tipo tão aberto e amplo será possível condenar apenas a quem se queira, e absolver a todos os demais.
As normas abertas não representam um erro legislativo, mas compromisso de fundo com a criação de norma jurídica que não proteja a sociedade do arbítrio. As normas penais abertas apresentam como alvos coletivos classificados politicamente como “perigo para a comunidade”, “perturbadores da paz” (Störenfriede). Assassiná-los pode interessar ao regime, missão a ser cumprida por agentes do Estado, em cuja educação sejam inculcados valores facilitadores da identificação de personalidades classificáveis como “perigosas”, das quais se possa “deduzir” ser propensas à comissão de crimes. Este era trecho da exposição de motivos do Projeto de Lei de Tratamento de Estranhos à Comunidade (1944) defendido pelo nazismo.
O art. 23, §2º do projeto de Moro defende a exclusão da ilicitude da ação policial baseada apenas em sua avaliação subjetiva do agente com base em “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Isso choca frontalmente com o princípio do nulla poena sine lege (nula a pena sem previsão legal), pois autoriza na prática a pena capital sem mediação judicial. Paralelamente, também no direito nazista o “sentimento” foi elevado a condição de categoria de fonte do direito penal, mas se lá era possível estabelecer a condenação à morte, isso demandava a mediação judicial, o que não ocorre no projeto de Moro. A rigor, em seu art. 23, §2º o projeto praticamente legaliza conjunto de autoridades policiais com poderes similares aos nazistas “grupos especiais” (Einsatzgruppen) de extermínio que agiram na Polônia e na então União Soviética.
Está em curso fenômeno similar quando conceitos basilares da ordem jurídica brasileira vão sendo triturados pelo regime militar inimigo da democracia. Assim foi, por exemplo, quando desprezou o direito ao sigilo telefônico da Presidência da República; adiante, desprezou o princípio do nullum crimen, nulla poena sine lege para condenar indivíduos a altas penas de prisão, como o ex-Presidente Lula. E com isso propõe a revogação de um princípio básico da lei penal proposta por von Liszt de que este nullum crimen sine lege representa o baluarte do cidadão frente à onipotência estatal.
A vida é a orientação e preocupação última e superior de uma sociedade que se estrutura sobre um Estado democrático de direito, enquanto a destruição, a eliminação e a morte é o viés que orienta os regimes totalitários. Os princípios, valores e as escolhas do nazismo foram infames, assim como são aqueles que hoje perseguem o mesmo caminho. Reconhecer os instrumentos que apoiam as forças constitutivas desse horizonte autoritário é a necessária primeira medida para a reação, e a formatação anti-iluminista do direito penal é um dos sinais que permite reconhecer a eclosão de tempos sombrios.
Nesses termos vai sendo proposta a passagem contemporaneamente da antidemocrática teoria do direito penal do inimigo para o inimigo exposto à execução sumária e sem direito. São duas as possibilidades: ou a deliberação de proteger a vida, ou a deliberação pela orientação da aceleração da morte por meio de instituições que concedem licença à barbárie. O projeto “anticrime” de Moro é desse segundo tipo. É preciso escolher entre os propósitos e princípios civilizados típicos de um direito penal próprio de um Estado democrático de direito e outro, de raízes bastante diversas, em que o homem é plenamente instrumentalizável. Por trás disso são duas as filosofias e visões de mundo hoje em choque, inconciliáveis, incomunicáveis, irredutíveis. É preciso escolher entre elas, a Lebensphilosophie e a “Mordphilosophie” talvez resumíveis em um último enfrentamento entre a filosofia da vida e a filosofia da morte.
* Roberto Bueno é Professor Doutor Adjunto IV da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Doutor em Filosofia do Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em Filosofia do Direito e Teoria do Estado (UNIVEM). Especialista em Ciência Política e Direito Constitucional pelo Centro de Estudos Constitucionais de Madrid (CEC). Pós-Doutor em Filosofia do Direito (UNIVEM). Estágio doutoral em Filosofia do Direito no Programa de Doutorado da Faculdade de Direito da Universidade Autônoma de Madrid (UAM) (1992-1994). Graduado em Direito pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL).
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