Por Rodrigo de Oliveira Andrade, no site da Fundação Maurício Grabois:
Todos os anos, centenas de pesquisadores, professores, estudantes e funcionários de instituições de ensino superior são ameaçados ou intimidados no mundo. Entre setembro de 2017 e agosto de 2018, pelo menos 79 foram vítimas de algum tipo de violência física ou assassinados. Outros 88 foram interrogados ou presos em decorrência de suas atividades de pesquisa, pontos de vista ou engajamento político em assuntos relacionadas a gênero, direitos humanos, democracia e meio ambiente. Os números são do relatório Free to think 2018, divulgado pela Scholars at Risk, rede internacional de instituições e pesquisadores criada em 1999 na Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, para apoiar e defender a liberdade de pesquisa e os direitos de acadêmicos.
O documento é resultado de um amplo e contínuo trabalho de monitoramento de ameaças a esses profissionais. Entre setembro de 2017 e agosto de 2018, a organização registrou 294 ataques e intimidações em 47 países, todos com o propósito de silenciar instituições de ensino superior ou pesquisadores no exercício de suas atividades. Os números representam um crescimento em relação ao relatório anterior, que registrou 257 ataques em 35 países. Os incidentes mais violentos foram observados em países com histórico de conflitos armados e violações aos direitos humanos, como Afeganistão, Quênia, Paquistão, Índia, Turquia e Iêmen. São vários os casos de autoridades que se valeram de detenções, ações judiciais e outras medidas coercitivas para retaliar ou impedir a atividade de professores, pesquisadores e estudantes.
Na Turquia, em maio de 2018, promotores públicos abriram investigação criminal contra Bülent Sik, pesquisador da Universidade Akdeniz e especialista em alimentação e saúde pública, em resposta a uma série de artigos publicados por ele no diário Cumhuriyet sobre altos níveis de pesticidas, metais pesados e outros poluentes encontrados em produtos agrícolas e na água consumida em algumas cidades do país. Em seus textos, Sik afirmava que o Ministério da Saúde da Turquia havia optado por não divulgar resultados de estudo sobre possíveis agentes cancerígenos detectados em cidades com taxas da doença acima da média nacional. O pesquisador foi acusado pela promotoria de violar o código penal ao divulgar informações supostamente confidenciais. Mais recentemente as autoridades passaram a considerar a possibilidade de acusá-lo de práticas terroristas.
Ode ao terror
Os ataques em muitos países também partem de milícias ou grupos terroristas. No Quênia, em outubro de 2017, um grupo de atiradores emboscou um carro que transportava estudantes e professores da Universidade Técnica de Mombasa. Dois professores morreram. As autoridades locais suspeitam que o atentado tenha sido planejado pelo grupo terrorista islâmico Harakat al-Shabab al-Mujahideen. Dois meses depois, no Paquistão, atiradores usando burcas invadiram o Instituto de Treinamento Agrícola, em Peshawar. Nove pessoas morreram e 35 ficaram feridas. O grupo conhecido como Taliban paquistanês reivindicou a autoria do atentado. Em comunicado, afirmou que o instituto foi atacado por sediar um escritório da agência de espionagem do país, afirmação negada pelas autoridades.
Além de monitorar a situação de pesquisadores sob ameaça, a Scholars at Risk também busca auxiliá-los, realocando-os em posições temporárias em uma das 400 instituições parceiras. “A ideia é oferecer o ambiente e a infraestrutura necessários para que continuem a desenvolver seu trabalho”, explica Shreya Balhara, diretora do serviço de proteção da Scholars at Risk. No ano passado, a organização realocou 124 acadêmicos em instituições de pesquisa e universidades estrangeiras. “Também fazemos aconselhamento de carreira para auxiliá-los a lidar com situações de risco com as quais possam se deparar ao voltar a seus países.”
Os casos apresentados no relatório constituem uma pequena fração dos incidentes envolvendo investidas e ameaças a acadêmicos e instituições de ensino superior. “Muitos dos ataques à liberdade de pesquisa baseiam-se em preconceitos infundados de cunho ideológico que animam grupos de pessoas que acreditam que determinados temas de pesquisa representam algum tipo de decadência moral ou social”, afirma o filósofo e historiador Estevão Chaves de Rezende Martins, professor da Universidade de Brasília (UnB) e secretário-geral da Associação Nacional de História (Anpuh).
Vários ataques à liberdade de pesquisa baseiam-se em preconceitos infundados de cunho ideológico, segundo Estevão Martins, da Anpuh.
No Brasil, uma das situações identificadas pela Scholars at Risk foi o caso de uma carta anônima encontrada sob a porta do escritório de representação estudantil na Universidade Federal do Pará (UFPA), em outubro de 2018. O texto prometia “exterminar” estudantes LGBTQ , negros e ativistas estudantis. Em novembro de 2017, outros três professores da Universidade Federal da Bahia (UFBA) foram ameaçados por desenvolver pesquisas sobre a divisão sexual do trabalho. “Trata-se de uma interferência indesejada e perigosa na autonomia de pesquisa, que só pode ser combatida por meio do fortalecimento do estado democrático de direito”, esclarece Martins.
Muitos pesquisadores se envolvem em situações de risco ou imbróglios diplomáticos durante o trabalho de campo. À época do mestrado, o arqueólogo André Strauss, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), experimentou uma situação dessas às margens do lago Turkana, na fronteira do Quênia com a Etiópia. “A região é marcada por conflitos étnicos”, explica. “Era comum sermos parados em bloqueios na estrada ou surpreendidos no acampamento à noite por indivíduos com metralhadoras AK-47 querendo saber o que estávamos fazendo”, conta. “Uma vez, ao perceber que um desses grupos se aproximava, tivemos de esconder um dos pesquisadores da equipe, queniano de etnia rival.”
Interessado em analisar rochas sedimentares com fósseis dos primeiros animais com esqueletos que surgiram no planeta, em 2008, ao desenvolver sua pesquisa de doutorado em Puerto Vallemí, no norte do Paraguai, o geólogo Lucas Warren, do Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista (Unesp), seguiu todas as recomendações que lhe foram feitas. “A região é marcada por conflitos de terra e plantações de maconha, de tal modo que fomos aconselhados a não usar roupas semelhantes a vestimentas camufladas, para que não fôssemos confundidos com militares”, conta. “A equipe se deslocava com um intérprete, já que a população local praticamente só fala guarani.”
Nenhum incidente foi registrado e a equipe voltou ao Brasil com várias amostras de rochas. Anos mais tarde, no entanto, após publicar artigo descrevendo seus achados, o brasileiro foi acusado pelo governo paraguaio de tráfico internacional de fóssil. “Fui impedido de voltar para novas pesquisas”, diz. O Paraguai à época passava por crise institucional, com a destituição de Fernando Lugo da presidência do país.
“O Brasil não reconhecia o novo governo, o que dificultou a resolução do problema”, recorda. “Precisei entrar em contato com pesquisadores e universidades paraguaias para explicar a situação, que, aos poucos, acabou se resolvendo.”
Precauções adicionais
Diante disso, Vinicius de Carvalho, professor do Brazil Institute e do Departamento de Estudos de Guerra no King’s College London, no Reino Unido, considera apropriado buscar, no respectivo serviço consular, informações sobre os riscos associados ao local em que se pretende desenvolver o trabalho de campo. “Outro ponto importante é fazer uma análise preliminar da conjuntura política do país de destino”, explica Carvalho. “É fundamental evitar debates políticos em lugares em que não se conhece a extensão de eventuais consequências da emissão de opiniões.”
Como medida preventiva, Carvalho recomenda que os pesquisadores comuniquem sua chegada à representação diplomática do país de origem, informando o que pretendem fazer e quanto tempo devem permanecer no país estrangeiro. “Informar ao consulado o itinerário de viagem, o calendário de trabalho e onde se pretende ficar hospedado são providências simples, mas que podem fazer a diferença”, explica. “Para trabalhar com mais tranquilidade, também é interessante compartilhar os próprios contatos e os de amigos e familiares no país natal.”
* Extraído da Revista Fapesp, Edição 276, fev. 2019.
O documento é resultado de um amplo e contínuo trabalho de monitoramento de ameaças a esses profissionais. Entre setembro de 2017 e agosto de 2018, a organização registrou 294 ataques e intimidações em 47 países, todos com o propósito de silenciar instituições de ensino superior ou pesquisadores no exercício de suas atividades. Os números representam um crescimento em relação ao relatório anterior, que registrou 257 ataques em 35 países. Os incidentes mais violentos foram observados em países com histórico de conflitos armados e violações aos direitos humanos, como Afeganistão, Quênia, Paquistão, Índia, Turquia e Iêmen. São vários os casos de autoridades que se valeram de detenções, ações judiciais e outras medidas coercitivas para retaliar ou impedir a atividade de professores, pesquisadores e estudantes.
Na Turquia, em maio de 2018, promotores públicos abriram investigação criminal contra Bülent Sik, pesquisador da Universidade Akdeniz e especialista em alimentação e saúde pública, em resposta a uma série de artigos publicados por ele no diário Cumhuriyet sobre altos níveis de pesticidas, metais pesados e outros poluentes encontrados em produtos agrícolas e na água consumida em algumas cidades do país. Em seus textos, Sik afirmava que o Ministério da Saúde da Turquia havia optado por não divulgar resultados de estudo sobre possíveis agentes cancerígenos detectados em cidades com taxas da doença acima da média nacional. O pesquisador foi acusado pela promotoria de violar o código penal ao divulgar informações supostamente confidenciais. Mais recentemente as autoridades passaram a considerar a possibilidade de acusá-lo de práticas terroristas.
Ode ao terror
Os ataques em muitos países também partem de milícias ou grupos terroristas. No Quênia, em outubro de 2017, um grupo de atiradores emboscou um carro que transportava estudantes e professores da Universidade Técnica de Mombasa. Dois professores morreram. As autoridades locais suspeitam que o atentado tenha sido planejado pelo grupo terrorista islâmico Harakat al-Shabab al-Mujahideen. Dois meses depois, no Paquistão, atiradores usando burcas invadiram o Instituto de Treinamento Agrícola, em Peshawar. Nove pessoas morreram e 35 ficaram feridas. O grupo conhecido como Taliban paquistanês reivindicou a autoria do atentado. Em comunicado, afirmou que o instituto foi atacado por sediar um escritório da agência de espionagem do país, afirmação negada pelas autoridades.
Além de monitorar a situação de pesquisadores sob ameaça, a Scholars at Risk também busca auxiliá-los, realocando-os em posições temporárias em uma das 400 instituições parceiras. “A ideia é oferecer o ambiente e a infraestrutura necessários para que continuem a desenvolver seu trabalho”, explica Shreya Balhara, diretora do serviço de proteção da Scholars at Risk. No ano passado, a organização realocou 124 acadêmicos em instituições de pesquisa e universidades estrangeiras. “Também fazemos aconselhamento de carreira para auxiliá-los a lidar com situações de risco com as quais possam se deparar ao voltar a seus países.”
Os casos apresentados no relatório constituem uma pequena fração dos incidentes envolvendo investidas e ameaças a acadêmicos e instituições de ensino superior. “Muitos dos ataques à liberdade de pesquisa baseiam-se em preconceitos infundados de cunho ideológico que animam grupos de pessoas que acreditam que determinados temas de pesquisa representam algum tipo de decadência moral ou social”, afirma o filósofo e historiador Estevão Chaves de Rezende Martins, professor da Universidade de Brasília (UnB) e secretário-geral da Associação Nacional de História (Anpuh).
Vários ataques à liberdade de pesquisa baseiam-se em preconceitos infundados de cunho ideológico, segundo Estevão Martins, da Anpuh.
No Brasil, uma das situações identificadas pela Scholars at Risk foi o caso de uma carta anônima encontrada sob a porta do escritório de representação estudantil na Universidade Federal do Pará (UFPA), em outubro de 2018. O texto prometia “exterminar” estudantes LGBTQ , negros e ativistas estudantis. Em novembro de 2017, outros três professores da Universidade Federal da Bahia (UFBA) foram ameaçados por desenvolver pesquisas sobre a divisão sexual do trabalho. “Trata-se de uma interferência indesejada e perigosa na autonomia de pesquisa, que só pode ser combatida por meio do fortalecimento do estado democrático de direito”, esclarece Martins.
Muitos pesquisadores se envolvem em situações de risco ou imbróglios diplomáticos durante o trabalho de campo. À época do mestrado, o arqueólogo André Strauss, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), experimentou uma situação dessas às margens do lago Turkana, na fronteira do Quênia com a Etiópia. “A região é marcada por conflitos étnicos”, explica. “Era comum sermos parados em bloqueios na estrada ou surpreendidos no acampamento à noite por indivíduos com metralhadoras AK-47 querendo saber o que estávamos fazendo”, conta. “Uma vez, ao perceber que um desses grupos se aproximava, tivemos de esconder um dos pesquisadores da equipe, queniano de etnia rival.”
Interessado em analisar rochas sedimentares com fósseis dos primeiros animais com esqueletos que surgiram no planeta, em 2008, ao desenvolver sua pesquisa de doutorado em Puerto Vallemí, no norte do Paraguai, o geólogo Lucas Warren, do Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista (Unesp), seguiu todas as recomendações que lhe foram feitas. “A região é marcada por conflitos de terra e plantações de maconha, de tal modo que fomos aconselhados a não usar roupas semelhantes a vestimentas camufladas, para que não fôssemos confundidos com militares”, conta. “A equipe se deslocava com um intérprete, já que a população local praticamente só fala guarani.”
Nenhum incidente foi registrado e a equipe voltou ao Brasil com várias amostras de rochas. Anos mais tarde, no entanto, após publicar artigo descrevendo seus achados, o brasileiro foi acusado pelo governo paraguaio de tráfico internacional de fóssil. “Fui impedido de voltar para novas pesquisas”, diz. O Paraguai à época passava por crise institucional, com a destituição de Fernando Lugo da presidência do país.
“O Brasil não reconhecia o novo governo, o que dificultou a resolução do problema”, recorda. “Precisei entrar em contato com pesquisadores e universidades paraguaias para explicar a situação, que, aos poucos, acabou se resolvendo.”
Precauções adicionais
Diante disso, Vinicius de Carvalho, professor do Brazil Institute e do Departamento de Estudos de Guerra no King’s College London, no Reino Unido, considera apropriado buscar, no respectivo serviço consular, informações sobre os riscos associados ao local em que se pretende desenvolver o trabalho de campo. “Outro ponto importante é fazer uma análise preliminar da conjuntura política do país de destino”, explica Carvalho. “É fundamental evitar debates políticos em lugares em que não se conhece a extensão de eventuais consequências da emissão de opiniões.”
Como medida preventiva, Carvalho recomenda que os pesquisadores comuniquem sua chegada à representação diplomática do país de origem, informando o que pretendem fazer e quanto tempo devem permanecer no país estrangeiro. “Informar ao consulado o itinerário de viagem, o calendário de trabalho e onde se pretende ficar hospedado são providências simples, mas que podem fazer a diferença”, explica. “Para trabalhar com mais tranquilidade, também é interessante compartilhar os próprios contatos e os de amigos e familiares no país natal.”
* Extraído da Revista Fapesp, Edição 276, fev. 2019.
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