segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Um muro chamado soberania nacional

Por Mariângela Nascimento, na revista Teoria e Debate:

A nova configuração do poder capitalista tem redesenhado o território global e estabelecido uma nova ordenação produtiva, na qual a mobilidade do trabalho torna-se, cada vez mais, uma condição necessária, ao mesmo tempo a maioria dos países capitalistas vem impondo fortes restrições que limitam e controlam a circulação de pessoas.

Para a execução dessa política, uma nova noção de direito passa a fundamentar e justificar essa ordenação na sua capacidade de fazer uso da força, e passa a manter sob o seu total controle os resultados políticos de qualquer acontecimento no âmbito global.

É o caso das intervenções dos países capitalistas dominantes em territórios alheios, que encontram sua base no direito de polícia e na capacidade de usar a força policial. Nesse caso, a violência se revelou um dispositivo de controle que mantém a vida individual e da espécie sob a vigilância total do poder. A novidade dessa nova ordem está em anular radicalmente todo o estatuto jurídico do indivíduo, afirma Giorgio Agamben, produzindo um ser juridicamente inominável e inclassificável. A estrutura constitutiva da autoridade se vale de duas fontes de sustentação tornadas legítimas: o poder jurídico de reinar sobre a exceção e a capacidade de usar a força policial [1].

Diante desse quadro, a exploração e a dominação têm se revelado mais intensas e brutais do que no passado, e a concentração da riqueza mundial nas mãos de poucos acontece de modo muito mais nítido e violento. O que faz crescer a população pobre e a mobilidade humana em todo canto do planeta, confirmando o fato de que as linhas geográficas e raciais de opressão, exploração e patriarcado estabelecidas durante a era do colonialismo e do imperialismo, em muitos sentidos não declinaram, ao contrário, aumentaram substancialmente, expressando um domínio sem fronteiras. Essa situação desencadeia uma reação para além das divisões nacionais, das massas revoltadas, excluídas e da população migrante [2].

Essa reação colocou uma multidão em movimento planetário, que passa a ser o locus da resistência da nova ordenação do poder global, pondo em evidência a crise das instituições liberais que sustentaram por tantos anos os valores democráticos e os direitos.

Entretanto, a atual explosão demográfica associada ao fluxo migratório crescente, a pauperização da maior parte da população mundial, a precarização do trabalho têm se tornado ineficazes para controlar e conter os movimentos dessa multidão fluida, que tem se apresentado cada vez mais irredutível aos mecanismos de aprisionamento do poder global.

Para conter o fluxo migratório, o poder se instrumentaliza com novas estratégias. O Estado, além do uso do aparato jurídico e policial, lança mão da “circulação do medo”, promovendo uma guerra global, em nome do combate ao terrorista, potencial ou real, e desencadeia um poder de polícia em escala mundial, fazendo circular por todos os cantos do mundo o medo como sentimento de contenção das pessoas.

O que torna diferente essa nova modalidade de controle em relação ao passado é a utilização dos vários recursos tecnológicos de informação e comunicação, que possibilita, em tempo veloz, disseminar o medo em todas as partes do mundo. Daí a rede de comunicação ter se tornado o alvo de fortes competições e fusões das corporações transnacionais e de governos.

Essa tem sido a forma encontrada pelo poder do Estado de promover a instabilidade e insegurança no meio da população para tornar ainda mais vulnerável o crescente deslocamento de trabalhadores e trabalhadoras pelo planeta. Essa vulnerabilidade permite ao poder capitalista manter a população numa rede de circulação, reativando e garantindo a sua capacidade de controle, respondendo os desafios postos pela crescente expansão e mobilização da população pobre no mundo.

A relação conflituosa entre o desejo de libertação e a prática opressora é estruturante do modo de produção capitalista. Vistas nessa perspectiva, as migrações são referências paradigmáticas na construção de políticas que reestruturam e movimentam as relações no trabalho e o modo de vida. O resultado imediato dessas tensões e conflitos é o fortalecimento das fronteiras e a expansão da política de restrição e, apesar da manifestação de muitos governos em querer expulsar os imigrantes, tais medidas não têm sido capazes de conter a crescente onda de mobilidade humana no âmbito global, colocando homens e mulheres em confronto com as novas transformações no mundo [3].

Uma questão que deve ser discutida, nesse contexto, é a relação entre cidadania, Estado e migração, principalmente quando se pensa a cidadania para além do status jurídico-legal circunscrita na nacionalidade. A dimensão teórica e prática da cidadania é uma ferramenta analítica que nos ajuda a mensurar a crise institucional e avaliar as condições da vida da população flutuante, e isso nos permite analisar, com mais critérios teóricos e empíricos, a relação entre o universalismo dos direitos, como os chamados direitos humanos, e o particularismo de pertença, que é identificado pela inserção nacional da cidadania [4]. 

Essas questões trazem desafios à tradicional configuração da cidadania quando confrontada com a realidade global, que dá sinais evidentes do enfraquecimento do vínculo “naturalizado” dessa relação codificada na cultura nacional, que sempre manteve e reproduziu a linha divisória entre a inclusão e a exclusão, o legal e o ilegal. A definição dos códigos de inclusão\legalidade nos espaços da cidadania e os mecanismos de regulação da inclusão e exclusão são desafios que o Estado tem sido chamado a repensar diante da realidade da migração. Pensar a migração, como diz Sayad, significa pensar o Estado, e é o Estado que pensa a si próprio quando pensa a migração (Sayad, 2000). E pensando a si mesmo, o Estado tem promovido a inclusão do migrante enquanto excluído, enquanto força de trabalho vulnerável às condições de precariedade e degradante. Mesmo aqueles e aquelas migrantes que conseguem benefícios sociais do Estado estão privados do direito a ter direitos, e isso coloca em questão a base do Estado de direito e a cultura democrática. 

Essa realidade problematiza e exige um modelo não nacional de direitos, que garanta e redefina a universalidade dos direitos humanos. O acesso de migrantes a alguns direitos específicos definidos pela condição cidadã de um determinado país não se traduz, na verdade, em obtenção de status de cidadania. O que a realidade tem nos mostrado é que a inclusão do\a migrante trata-se de um “dispositivo de sujeição que conduz à reprodução de uma multiplicidade de regimes de trabalho caracterizados por vários graus de coerção” (Mezzadra, 2012, p.14). O enfraquecimento da relação entre cidadania e o seu estatuto jurídico-legal é também enunciado pelo enfraquecimento do Estado social e pelas transformações do modo de produção capitalista nesse século 21. O que na prática tem ocorrido é a inserção da força de trabalho migrante no mercado de trabalho formal como a única garantia de acesso a alguns direitos, dentro das condições previstas de migração requeridas pelo país de destino. Estamos diante da seguinte situação: de um lado há as políticas de restrições à população migrante, constituída de força de trabalho; do outro, temos a inscrição dessa força de trabalho no processo produtivo regular como condição ao acesso a alguns direitos estabelecidos pelo país de destino. Nesse caso, a codificação da pertença com base nacional passa a operar circunstancialmente e oportunamente, atendendo as exigências laborais locais.

País retoma a visão do migrante como ameaça

No Brasil, a realidade da população migratória não tem sido diferente do quadro global. Desde o início da redemocratização do país, o fluxo migratório vem crescendo, principalmente de imigrantes dos países vizinhos. Apesar de o processo de redemocratização não ter significado, nos primeiros anos, estabilidade econômica e manter a alta taxa de desemprego, o país se tornou uma opção para a população latina. No governo do PT o país viveu dois momentos de boom migratórios, um em 2010 e outro no biênio 2013-2014. Essa crescente onda migratória, principalmente com a chegada dos/as imigrantes haitianos\as em 2010, foi fundamental para desencadear a discussão sobre a política de migração vigente no país e expor as fragilidades estatais de acolhimento aos imigrantes, obrigando a tomada de medidas emergenciais por parte do governo. Isso provocou o debate, por parte do governo e da sociedade, sobre a urgência de uma nova legislação para substituir o Estatuto do Estrangeiro, legislação da época do regime militar que estava em vigor ainda no início do ano de 2017, fundamentada na ideia de que o\a imigrante é um estranho, por isso uma ameaça à soberania nacional. Legislação em descompasso tanto com os avanços relativos à proteção dos direitos humanos, presentes nos tratados internacionais que o Estado brasileiro vinha ratificando, quanto dos direitos fundamentais, previstos na Constituição de 1988.

Depois de muitas audiências públicas e debates entre governo e sociedade, a proposta de uma nova legislação de migração, de autoria do senador Aloysio Nunes (PSDB-SP), foi aprovada pelo Senado e sancionada por Michel Temer em 2017. A nova legislação foi considerada um grande avanço no que se refere à acolhida digna de imigrantes no país. O Brasil passa, com a nova lei, a tratar a questão migratória na perspectiva dos direitos humanos e não dentro da lógica de segurança nacional. A lei entende que o/a imigrante, ao cumprir as exigências legais, passa a ter igualdade de condições sociais, acesso aos serviços públicos de saúde, educação, previdência social e ao mercado de trabalho. Apesar dos avanços humanitários, a nova lei traz pouco reconhecimento dos direitos individuais daquela parcela da população imigrante que está “fora da lei”; a nova legislação, nesse caso, delega ao Estado o controle sobre a vida e a identidade desses indivíduos.

O processo de aprovação da nova lei, no entanto, não aconteceu sem despertar controvérsias. De um lado, especialistas dos direitos humanos, sociedade civil e os próprios imigrantes consideraram a nova legislação um avanço em termos de direitos. De outro, manifestações de grupos sociais e pressões por parte de parlamentares ligados ao agronegócio exigiram vetos à lei, considerada muito permissiva em termos de segurança, o que colocaria em risco a soberania nacional. A lei foi aprovada com vinte vetos e sua aprovação foi acompanhada do Decreto de Regulamentação que compromete as conquistas humanitárias, o que pode transformar a nova lei em um emaranhado normativo incapaz de dar conta da realidade migratória. Por conta desses vetos, a legislação manteve alguns aspectos discriminatórios, contrariando a proposta original.

O governo Temer, quando enfrentou a imigração da população venezuelana, deixou claro que a prática não ia acompanhar o espírito da nova lei. O tratamento aos imigrantes e refugiados/as venezuelanos/as se distanciou da perspectiva dos direitos humanos e se traduziu em uma retomada do paradigma da soberania nacional. No seu discurso, o ex-presidente Temer, ao mesmo tempo que reconheceu a situação de vulnerabilidade e precariedade da população de imigrantes venezuelanos, transferiu para o Ministério da Defesa a responsabilidade em efetivar medidas assistenciais e acolhimento humanitário e ordenou o reforço do efetivo do Exército na fronteira. Ou seja, uma resposta militarizada e não humanitária, contrariando o espírito da nova lei.

Tudo indica que a situação não será melhor no governo de Bolsonaro. O ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, antes de tomar posse deixou bem claro que o Brasil não participaria do Pacto Global de Migração, firmado entre mais de cem países da ONU na busca de um instrumento multilateral de cooperação, visando soluções comuns para reduzir o fluxo de migração irregular; uma iniciativa formada por vários países que enfrentam a questão migratória com fortes medidas de restrições. Na verdade, como declarou o ex-chanceler Aloysio Nunes, trata-se de um mero acordo que não cria nenhuma obrigatoriedade dos países em acolher migrantes que não desejam, ou seja, é uma carta de boas intenções sem ser acompanhada de punições em caso de descumprimento.

Para o ministro Ernesto Araújo, o pacto é uma iniciativa inadequada para lidar com o problema migratório, que não deve ser tratada como uma questão global, mas sim de acordo com a soberania de cada país. Declara ele: “Tem de haver critérios para garantir a segurança tanto dos migrantes quanto dos cidadãos no país de destino. A migração deve estar a serviço dos interesses nacionais e da coesão de cada sociedade”. O que está bem definido no seu discurso é a centralidade da lógica da soberania nacional com intenções de fortalecer as fronteiras, da retomada da visão do imigrante como ameaça ao país e a militarização como estratégia para enfrentar o problema.

No discurso de posse do presidente Bolsonaro essa orientação foi oficializada: “Nossas Forças Armadas terão as condições necessárias para cumprir sua missão constitucional de defesa da soberania, do território nacional e das instituições democráticas, mantendo suas capacidades dissuasórias para resguardar nossa soberania e proteger nossas fronteiras”. E autoriza o discurso do ministro Ernesto Araújo: “Não é qualquer um que entra em nossa casa, nem será qualquer um que entrará no Brasil via pacto adotado por terceiros”.

O Brasil, no atual governo, tem feito apelo à soberania nacional como estratégia para justificar e promover as políticas de restrições para conter a entrada da população migrante. Nessa direção, vai manter as linhas geográficas assentadas na opressão racial e patriarcal, aprofundando a crise das instituições liberais e deixando para o passado as conquistas dos direitos. Para garantir a política de restrições à migração, o governo de Bolsonaro fará uso do aparato jurídico alinhado ao poder policial, indo na contramão da tendência mundial dos movimentos por direitos de exigir o reconhecimento, cada vez maior, do indivíduo no campo internacional como parâmetro para regular as relações entre os Estados receptores e a população migrante. O que na realidade estamos vendo no atual governo é o não reconhecimento dos direitos individuais. O reconhecimento desses direitos deve estar circunscrito à soberania do Estado, nesse caso a referência nacional vai se manter como um obstáculo à universalidade dos direitos humanos.

A soberania do Estado no campo das migrações é uma das principais ferramentas ideológicas do direito internacional tradicional e conservador. O Estado-nação tem a legitimidade do monopólio da mobilização humana, portanto, seguindo o critério da nacionalidade, o indivíduo é, a princípio, um não sujeito, isto é, não existe para o Estado enquanto ser de direito [5]. Nesse caso, o/a migrante é tratado como um estranho se não cumpre as exigências legais do país, torna-se um ser desqualificável, destituído de direitos, inclusive o direito à vida.

No atual governo brasileiro é o Estatuto do Estrangeiro que será colocado em prática, retornando ao paradigma da nacionalidade para consolidar as políticas de restrições aos imigrantes. A soberania nacional segue assim como um muro intransponível para a mobilidade humana. O que não vale para a fluidez do capital.

* Mariângela Nascimento é cientista política, professora na Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Notas

1. NASCIMENTO, M. “Mobilidade humana em contexto de mudanças”. Revista Cadernos de Gênero e Diversidade (prelo).
2. Id.
3. NASCIMENTO, M. Id.
4. Sobre esse tema: NASCIMENTO, Mariangela. “O que nos autoriza a falar da universalidade dos direitos”. Revista Lugar Comum, n. 51, p. 137, RJ, 2018.
5. REIS, Rocha R. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v19n55/a09v1955.pdf. Acesso em: 20/1/2019.

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