Neste domingo, 17, o presidente da República Federativa do Brasil estará em sua primeira visita oficial como chefe de governo, obviamente, aos Estados Unidos. As relações entre os dois maiores países do continente americano sempre foram e sempre serão complexas. Impossível reduzi-las a uma única dimensão. Nem a competição desenfreada e hostil, nem o alinhamento subserviente.
Getúlio Vargas compreendeu a natureza desse relacionamento e tirou dele o melhor partido possível no final da segunda Guerra Mundial. Jânio Quadros e João Goulart intuíram de forma correta, mas, por motivos diversos, não tiveram tempo para explorar a fundo a “ambiguidade criativa” que ele encerra. O ditador Ernesto Geisel percebeu que pouco teríamos a ganhar com o alinhamento automático a Washington. Mais recentemente, Lula conseguiu manter um amplo diálogo com George W. Bush e Barack Obama, que se estendeu para muito além dos assuntos “hemisféricos” (para usar uma palavra do gosto dos norte-americanos).
Segundo a agenda que chegou ao conhecimento público, o encontro de trabalho Trump-Bolsonaro durará escassos 20 minutos. Será seguido de almoço. Entre uma garfada e outra, e subtraído o tempo dos tradutores, os dois presidentes terão, quiçá, meia hora cada um para expor suas ideias e interesses e responder às questões colocadas pelo interlocutor.
Compare-se com as longas conversas de Lula com Bush em Camp David e na Granja do Torto, para se ter uma ideia da importância diminuída do Brasil. E tome-se em conta que aqueles eram tempos em que os dois governantes divergiam sobre vários temas, da Alca ao Iraque, passando pelos subsídios agrícolas no comércio internacional. É mister constatar que, independentemente dessas diferenças, Washington via no Brasil um parceiro indispensável para encaminhar questões regionais e globais.
A era da vassalagem. O presidente brasileiro parece ter compreendido a essência da Doutrina Monroe: a América para os americanos
Pelo que tem transcendido sobre as intenções brasileiras, a principal reivindicação brasileira a Trump será o apoio ao ingresso do Brasil na OCDE, o “clube dos países ricos”. Não é o caso de discutir em detalhe o significado de uma eventual adesão nossa à OCDE, em termos de limitações à liberdade de políticas industriais e tecnológicas, algumas de forte impacto social (como patentes farmacêuticas). Nenhum dos integrantes dos Brics, grupo formado pelos gigantes do mundo emergente, integra a organização.
Mas, se o nosso pedido principal é conhecido, só podemos especular sobre quais são as demandas dos Estados Unidos. Uma delas é óbvia, porém: a continuada subordinação à estratégia agressiva de Trump em relação à Venezuela. São favas contadas que o fracasso da tentativa de derrubar o regime de Nicolás Maduro em 23 de fevereiro, por meio da “ajuda humanitária”, não fará com que o atual governo norte-americano desista daquele intento.
Isso aparece com clareza em declaração atribuída ao próprio Trump e reproduzida por um ex-diretor do FBI, na qual o presidente norte-americano se refere ao possível interesse de guerra (sic) com um país com “aquele petróleo todo e na nossa porta dos fundos”. No dia da abortada ação, ao que se soube, foram os militares em posição de mando no governo brasileiro que impediram que nosso país aderisse à intervenção, seja com suas próprias forças, seja cedendo território a tropas de terceiros.
Daí a curiosidade nada fútil em saber quem estará no Salão Oval durante a “conversa privada” dos presidentes, além dos tradutores. Normalmente esses diálogos, quando não estritamente pessoais, são acompanhados pelos ministros de Relações Exteriores e/ou assessores de segurança nacional (ou equivalentes) dos chefes de Estado.
Depois do “oferecimento” do território brasileiro para uma base norte-americana, quando do encontro com Mike Pompeo, esta não é uma questão que interesse apenas aos chefes dos respectivos cerimoniais. O que está em jogo é a essência do relacionamento entre Brasília e Washington, em um momento em que a Doutrina Monroe tem sido abertamente proclamada (ela nunca desapareceu de fato) e o fantasma da intervenção militar volta a pairar sobre a nossa região.
Além do pré-sal, da Embraer, do programa do submarino nuclear, dos caças, o que mais poderá ser colocado pelo presidente Trump como condição para uma aproximação, desde logo marcada pelo paternalismo e a condescendência? Já que o Brasil de Temer atuou graciosamente para dissolver a Unasul – o primeiro esforço sério de organizar a América do Sul, sem o patrocínio norte-americano ou europeu –, por que não tentar o mesmo em relação aos Brics? Certamente, haverá estrategistas do lado de lá pensando nisso. E do lado de cá? Será essa a oportunidade de se desfazer desse legado incômodo, inerente à visão de um mundo multipolar, incompatível com o espírito cruzadista da diplomacia atual?
Ao fazer essas reflexões, me vem à mente uma charge do cartunista Chico, durante uma visita de Condoleezza Rice ao Brasil. Nela, em meio a acenos de adeus ao avião que transportava de volta a secretária de Estado, o presidente Lula pergunta ao chanceler da época: “O que ela queria?” Ao que o auxiliar responde: “Não sei, mas também não dei”.
Temos alguma garantia de que o mesmo se passará agora?
PS: Este artigo foi escrito antes da divulgação de que o acordo sobre a base de Alcântara poderia ser assinado durante a visita. O tema, de grande relevância para a soberania nacional, deve ser objeto de análise aprofundada, quando seus termos exatos sejam conhecidos.
Getúlio Vargas compreendeu a natureza desse relacionamento e tirou dele o melhor partido possível no final da segunda Guerra Mundial. Jânio Quadros e João Goulart intuíram de forma correta, mas, por motivos diversos, não tiveram tempo para explorar a fundo a “ambiguidade criativa” que ele encerra. O ditador Ernesto Geisel percebeu que pouco teríamos a ganhar com o alinhamento automático a Washington. Mais recentemente, Lula conseguiu manter um amplo diálogo com George W. Bush e Barack Obama, que se estendeu para muito além dos assuntos “hemisféricos” (para usar uma palavra do gosto dos norte-americanos).
Segundo a agenda que chegou ao conhecimento público, o encontro de trabalho Trump-Bolsonaro durará escassos 20 minutos. Será seguido de almoço. Entre uma garfada e outra, e subtraído o tempo dos tradutores, os dois presidentes terão, quiçá, meia hora cada um para expor suas ideias e interesses e responder às questões colocadas pelo interlocutor.
Compare-se com as longas conversas de Lula com Bush em Camp David e na Granja do Torto, para se ter uma ideia da importância diminuída do Brasil. E tome-se em conta que aqueles eram tempos em que os dois governantes divergiam sobre vários temas, da Alca ao Iraque, passando pelos subsídios agrícolas no comércio internacional. É mister constatar que, independentemente dessas diferenças, Washington via no Brasil um parceiro indispensável para encaminhar questões regionais e globais.
A era da vassalagem. O presidente brasileiro parece ter compreendido a essência da Doutrina Monroe: a América para os americanos
Pelo que tem transcendido sobre as intenções brasileiras, a principal reivindicação brasileira a Trump será o apoio ao ingresso do Brasil na OCDE, o “clube dos países ricos”. Não é o caso de discutir em detalhe o significado de uma eventual adesão nossa à OCDE, em termos de limitações à liberdade de políticas industriais e tecnológicas, algumas de forte impacto social (como patentes farmacêuticas). Nenhum dos integrantes dos Brics, grupo formado pelos gigantes do mundo emergente, integra a organização.
Mas, se o nosso pedido principal é conhecido, só podemos especular sobre quais são as demandas dos Estados Unidos. Uma delas é óbvia, porém: a continuada subordinação à estratégia agressiva de Trump em relação à Venezuela. São favas contadas que o fracasso da tentativa de derrubar o regime de Nicolás Maduro em 23 de fevereiro, por meio da “ajuda humanitária”, não fará com que o atual governo norte-americano desista daquele intento.
Isso aparece com clareza em declaração atribuída ao próprio Trump e reproduzida por um ex-diretor do FBI, na qual o presidente norte-americano se refere ao possível interesse de guerra (sic) com um país com “aquele petróleo todo e na nossa porta dos fundos”. No dia da abortada ação, ao que se soube, foram os militares em posição de mando no governo brasileiro que impediram que nosso país aderisse à intervenção, seja com suas próprias forças, seja cedendo território a tropas de terceiros.
Daí a curiosidade nada fútil em saber quem estará no Salão Oval durante a “conversa privada” dos presidentes, além dos tradutores. Normalmente esses diálogos, quando não estritamente pessoais, são acompanhados pelos ministros de Relações Exteriores e/ou assessores de segurança nacional (ou equivalentes) dos chefes de Estado.
Depois do “oferecimento” do território brasileiro para uma base norte-americana, quando do encontro com Mike Pompeo, esta não é uma questão que interesse apenas aos chefes dos respectivos cerimoniais. O que está em jogo é a essência do relacionamento entre Brasília e Washington, em um momento em que a Doutrina Monroe tem sido abertamente proclamada (ela nunca desapareceu de fato) e o fantasma da intervenção militar volta a pairar sobre a nossa região.
Além do pré-sal, da Embraer, do programa do submarino nuclear, dos caças, o que mais poderá ser colocado pelo presidente Trump como condição para uma aproximação, desde logo marcada pelo paternalismo e a condescendência? Já que o Brasil de Temer atuou graciosamente para dissolver a Unasul – o primeiro esforço sério de organizar a América do Sul, sem o patrocínio norte-americano ou europeu –, por que não tentar o mesmo em relação aos Brics? Certamente, haverá estrategistas do lado de lá pensando nisso. E do lado de cá? Será essa a oportunidade de se desfazer desse legado incômodo, inerente à visão de um mundo multipolar, incompatível com o espírito cruzadista da diplomacia atual?
Ao fazer essas reflexões, me vem à mente uma charge do cartunista Chico, durante uma visita de Condoleezza Rice ao Brasil. Nela, em meio a acenos de adeus ao avião que transportava de volta a secretária de Estado, o presidente Lula pergunta ao chanceler da época: “O que ela queria?” Ao que o auxiliar responde: “Não sei, mas também não dei”.
Temos alguma garantia de que o mesmo se passará agora?
PS: Este artigo foi escrito antes da divulgação de que o acordo sobre a base de Alcântara poderia ser assinado durante a visita. O tema, de grande relevância para a soberania nacional, deve ser objeto de análise aprofundada, quando seus termos exatos sejam conhecidos.
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