quarta-feira, 6 de março de 2019

Crianças e os banqueiros: em nome de Arthur

Por Tarso Genro, no site Sul-21:

Alguns nazistas até hoje negam os fornos de Auschwitz. Os experimentos “científicos” com seres humanos como cobaias e a criminalização e extinção em massa de toda uma comunidade cultural e étnica é suprimida da sua memória: negam a “solução” final e alegam que apenas combatiam em defesa da Alemanha, contra os banqueiros judeus, contra a “decadência europeia”, pelo fim da humilhação alemã ao fim da 1a. Guerra mundial. A negação do mundo real faz parte, tanto da construção do “mito” político moderno, como da sua negação quando a História volta o seu curso de civilidade mínima.

A “ética” nazista, no seu movimento ascendente e depois no poder de Estado, todavia, não tinha vergonha dos seus “princípios”. Eles – nazistas – pouco escondiam os seus propósitos e quaisquer pessoas medianamente politizadas sabiam, quando Hitler cresceu de prestígio entre as “classes baixas” famintas, o que iria acontecer se ele “ganhasse”. Os nazistas espalharam a crença na revanche da Guerra, na mortandade e no sofrimento generalizado (dos outros), no futuro brilhante da Alemanha, regenerada pelo sangue. Ao fim e ao cabo isto não ocorreu e os vencedores em Nuremberg, em nome da democracia, disseram que o nazismo e os campos de concentração não ressurgiriam das cinzas dos fornos e dos campos da morte. Enganaram-se ou mentiam?

O que grassou nas redes, por parte da direita fascista ou simplesmente truculenta e desumana na morte do pequeno Arthur – neto do Presidente ora subtraído pela exceção do convívio do seu povo – deixa atônitas as pessoas minimamente civilizadas que não estão cegas pelo ódio. O episódio dos campos de concentração, os “gulags” de todas as ideologias – a impiedade absoluta e o mal sem limites – ainda são possíveis agora e sempre. Porque as “pessoas comuns” e as pessoas de “bem” sempre podem manipular e serem manipuladas para torturar e matar os diferentes, escoltar judeus e ciganos -crianças ou não- às câmaras de gás e a seguir jogar seus corpos nos fornos crematórios. Depois esquecem.

Não se trata de dizer, portanto, como “o povo alemão foi capaz de fazer isso?”, ou como “o povo brasileiro foi capaz de eleger um Presidente como este?”, que ao longo da sua trajetória propôs – sem máscara – a supressão ou a morte de uma comunidade indeterminada (a esquerda e os “diferentes”) como caminho para construir uma utopia de direita, na qual a unificação do povo e da nação seria filha da pressão do diverso e da unidade pelo ódio.

Quando a barbárie se expressa em algum lugar do mundo suas características são universais – morte, dor e humilhação, para os inimigos reais e imaginários – mas suas motivações locais são construídas pela política e pela leitura de quem domina a informação e a propaganda. É quando se divulga as “melhores formas” de superar as crises ou recuperar a auto-estima de um povo humilhado ou faminto.

Aqui, o mote central são as reformas.

No caso brasileiro trata-se de buscar entender como a ação política de grupos criminosos organizados – hoje nas rede de fake news – ajudou a desenvolver nas pessoas comuns “uma grandiosidade combinada com a crueldade, sadismo ou ódio, que traduzem a síndrome do narcisismo maligno, que é uma combinação de personalidade narcisista, comportamento anti-social, agressão sintônica do ego e tendências paranoides” (Otto F. Kernberg). E mais além: como foi dissolvida de forma planejada – pela política – a casca civilizatória de um enorme contingente social, que se destruiu a si mesmo como ser social universal – que decidia os seus conflitos dentro das regras do jogo de Bobbio – para a assumir – de forma aberta e pública – a necessidade da eliminação física do contingente adversário.

Para que isso seja possível é preciso retirar as características humanas do outro e naturalizar a sua extinção: os campos de concentração e os “progroms”, o assassinato de 500 mil pessoas – na década de 60- na implantação da ditadura do General Suharto e a “revolução cultural chinesa”, são exemplos de “desclandestinização” da repressão, como ela é realizada nas ditaduras “normais”. A fonte principal da política como proposta de naturalização da morte coletiva, aqui no Brasil – não podemos jamais esquecer! – foi a normalização que a maioria da grande mídia promoveu, das insanidades do atual Presidente. O que afirmou ,à semelhança dos piores ditadores da era moderna, que era necessário metralhar e matar.

A mídia tradicional viu no personagem um caminho para intercambiar a naturalização da barbárie que ele propunha -chamando-a simplesmente de “excessos”- pelo compromisso assumido para promover as reformas ultraliberais para os bancos. É um tipo de barbárie que inaugura, então, uma moral concorrente à moral democrática, até então dominante -pública, aberta e justificada pela ideologia- na qual a morte e a tortura, que são seletivas, passam a ser cultuadas como políticas de Estado e realizadas de forma massiva. A barbárie moderna, tanto pode ser de “direita”, como de “esquerda”, tanto pode nascer dentro de uma democracia formal como emergir de uma ditadura implantada, mas ela é sempre o mal absoluto composto em nome de um mito.

No filme “O fotógrafo de Mathausen” (Netflix), no decorrer de uma festa um oficial nazista quer ensinar seu filho, ainda menino, a “caçar” inimigos e pretende que ele atire, ali mesmo e à sangue-frio em outro menino judeu, que está servindo os comensais. E lhe diz: “lembre-se, por mais parecido que ele seja com um ser humano, ele não é um ser humano”. Num outro filme, “O Banqueiro da Resistência” (Netflix), um banqueiro holandês monta um banco clandestino para financiar a resistência contra os ocupantes nazistas, arriscando a sua vida e da sua família para manter sua atividade como banqueiro (clandestino), combinando-a com a defesa dos valores democráticos que norteavam a sua vida.

Ambos os filmes, baseados em fatos reais, ajudam a lembrar que nem todos os oficiais -mesmo os do Exército de Hitler- eram iguais a este dejeto da humanidade, que pretendeu que uma pequena criança assassinasse outra, sem qualquer motivo que não fosse a falsidade de que aquela a ser assassinada não era “um ser humano”. Os filmes também ajudam a lembrar que nem todos os banqueiros são iguais a este holandês -aliás boa parte deles se adaptaram ao nazismo- que colocou sua humanidade acima dos interesses de natureza financeira e se identificou com a resistência nacional contra o ocupante.

Um “paper” universitário promoveu – depois da democratização da Argentina – uma enquete entre jovens estudantes da classe média, para saber das suas memórias da época da ditadura militar. Eles lembraram apenas, com poucas exceções, dos esforços do Governo Militar para manter a paridade do moeda do país com o dólar (Maren Ulriksen de Vinar et alii,”in” Uma revolução no olhar) e recordaram a “luta contra a inflação”. Quando questionados mais diretamente sobre a ditadura, todavia, lembraram com emoção o filme”La noche de los lápices”, cujo tema é a história de um grupo de jovens estudantes, quase crianças, “desaparecidos” e assassinados por participarem do que era uma simples greve estudantil. Neste dia os jovens estudantes da classe média alienada, ao lembrar de “La noche de los lápices” viveram mais do que morreram.

A luta contra o fascismo se faz no cotidiano e na história. Arthur, o netinho de Lula que faleceu ao sete anos e sofria “bulling” na escola porque seu avó foi massacrado sem piedade pela “exceção”, fundiu história e cotidiano. O menino morto absorveu no seu corpo inocente toda a tortura moral que a mídia oligopólica – combinada com os processos judiciais que chancelaram os seus vereditos – destinou à memória dos homens comuns. Pela cultura do fascismo os culpados sempre estão prontos e eles devem morrer! Todos os dias nascemos e morremos um pouco, mas neste dia do enterro de Arthur, perante a celebração ostensiva da canalha todos morremos muito mais do que vivemos.

* Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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