segunda-feira, 18 de março de 2019

Fake news sobre o golpe da Previdência

Por Eduardo Marques, no blog Viomundo:

Como sempre acontece de tempos em tempos, a reforma da Previdência Social aparece como elemento fundamental para a retomada do crescimento econômico do Brasil. Estamos vivendo novamente este momento.

Esta discussão ocorre porque os governos apresentam a Previdência Social como um sistema deficitário, ou seja, as fontes de receitas existentes não conseguiriam pagar as aposentadorias, pensões e benefícios vigentes.

Sendo deficitária, a Previdência Social demandaria recursos adicionais do Orçamento Público Geral da União, recursos estes que poderiam ser destinados para outras ações importantes, sobretudo nos investimentos em infra-estrutura.

Segundo este discurso, este déficit da Previdência também seria fortemente responsável pelo déficit público total, obrigando o governo federal a buscar mais recursos no mercado financeiro para “fechar suas contas”, aumentando a dívida pública, reduzindo a credibilidade governamental e pressionando as taxas de juros para cima.

O ponto de partida desta narrativa, portanto, seria o enorme déficit nas contas da Previdência Social.

Quando falamos em Previdência Social, devemos esclarecer que estamos nos referindo às aposentadorias, pensões e outros benefícios pagos pelo INSS, o chamado Regime Geral da Previdência Social (RGPS).

Não entram neste cálculo outras aposentadorias e benefícios pagos por sistemas próprios previdenciários, tais como aqueles relacionados aos funcionários públicos, civis e militares, federais, estaduais e municipais, dos chamados Regimes Próprios da Previdência Social (RPPS).

Ocorre que este “déficit” da Previdência Social vem sendo “construído” de forma artificial nas últimas décadas por alguns motivos que merecem ser analisados.

Primeiro, o governo federal insiste em apresentar a situação da Previdência Social de forma isolada, falsificando o resultado uma vez que não leva em consideração a estrutura “montada” pela Constituição Federal de 1988, que estabeleceu não apenas um sistema de Previdência Social, mas sim a chamada Seguridade Social, englobando a Previdência, a Saúde e a Assistência Social.

Com a Constituição Federal, o sistema da Seguridade Social contaria com receitas bem diversificadas e mais do que suficientes para custear todas as despesas previstas.

Isso porque, além das contribuições previdenciárias sobre a folha de pagamentos, que recairiam sobre empregadores e empregados formalmente contratados, o sistema também contaria com os recursos de outras Contribuições Sociais, tais como o COFINS, a CSLL, o PIS-PASEP, a CPMF e os recursos das loterias. Acrescentem-se aí os recursos dos orçamentos da União, dos Estados e dos Municípios.

Em segundo lugar, o governo federal omite que estes recursos começaram a ser desviados ou subtraídos da Seguridade Social ao longo das últimas décadas de várias formas:

i) Através da criação da DRU (Desvinculação de Receitas da União), retirou-se de 1994 até 2015 cerca de 20% das Contribuições Sociais previstas no financiamento da Seguridade Social para a aplicação em outras despesas do Orçamento Federal, visando a produção de superávits primários para o pagamento de juros da dívida pública para o sistema financeiro.

Este percentual da DRU aumentou para 30% a partir de 2016 com vigência até 2023. Para que possamos ter uma ideia deste impacto, o desvio de recursos da Seguridade Social de 2005 a 2016 através da DRU foram, em média, de R$ 52,4 bilhões ao ano.

Considerando o aumento do percentual da desvinculação de 20% para 30%, os recursos desviados chegaram a R$ 99,4 bilhões em 2016 e R$ 113 bilhões em 2017.

ii) Com a extinção da CPMF em 2007, eliminaram-se mais de R$ 30 bilhões por ano do orçamento da Seguridade Social.

iii) A forte ampliação das renúncias, desonerações tributárias e isenções fiscais a partir de 2013, sobretudo em relação às Contribuições Sociais, provocaram perdas de recursos para a Seguridade Social em mais de R$ 120 bilhões por ano.

Em terceiro lugar, o governo federal insiste em “inflar” despesas que não deveriam constar do balanço da Seguridade Social.

A principal despesa acrescentada indevidamente refere-se às aposentadorias dos funcionários públicos civis e militares, já que estes contam com um sistema próprio previdenciário (RPPS), que não pode ser acessado por todos e para o qual a sociedade como um todo não contribui.

Deve-se lembrar ainda que no caso dos militares, estes não precisam contribuir para suas aposentadorias, ou seja, o pagamento de aposentadorias (reformas) a esta categoria representa apenas um ônus político, não possuindo natureza previdenciária e não estando sujeito às regras de equilíbrio financeiro e atuarial.

Finalmente, convém destacarmos que as medidas econômicas de austeridade e ajuste fiscal tomadas nos últimos três anos impactaram negativamente a economia do país, aumentando o ônus sobre a Seguridade Social ao mesmo tempo em que reduziram as receitas do sistema.

A Reforma Trabalhista (Lei 13.467 de 2017) aprovada ampliou as possibilidades de flexibilização e terceirização dos contratos de trabalho (trabalho intermitente, estímulos à contratação via pessoa jurídica), reduzindo a capacidade de arrecadação através das contribuições previdenciárias de empregados e empregadores, uma vez que vem “minando” os contratos de trabalho por tempo indeterminado, base de todo o sistema de contribuições previdenciárias.

A Emenda Constitucional 95 de 2016, que criou o “teto” para os gastos orçamentários, também vem provocando estragos na Seguridade Social, agora pelo lado das despesas.

Ao estabelecer que o orçamento só será corrigido pela inflação, mesmo quando a economia se recuperar e as receitas crescerem mais, a EC 95 coloca entraves ainda maiores sobre as despesas com Previdência, Saúde e Assistência Social, provocando a redução de direitos e políticas sociais.

Na prática, esta medida institucionaliza o mecanismo que transforma o Orçamento da Seguridade Social em garantidor de superávits primários, visando o pagamento de juros e encargos da dívida pública para o mercado financeiro.

Todas estas questões abordadas desmontam a “construção” artificial do déficit da Previdência Social, revelando que os reais interesses nos ataques à Seguridade Social do país estão no setor financeiro privado, na busca da privatização deste gigantesco fundo público.

Quando analisamos as contas da Seguridade Social do Brasil sem essas distorções, o quadro que se apresenta é outro.

Conforme tabela abaixo, de 2005 a 2017, a Seguridade Social foi deficitária em apenas 2 anos – 2016 e 2017 -, resultado este influenciado pela grave crise econômica, as políticas de austeridade implantadas e a perda de receitas com renúncias e desonerações tributárias. De 2005 a 2015 o superávit médio anual da Seguridade Social foi de R$ 54,4 bilhões.



Tal constatação exige que olhemos com mais atenção para as variações reais do PIB brasileiro ao longo dos anos, números que reforçam a ideia de que a principal causa para os desajustes na Seguridade Social em geral e na Previdência Social em específico estão na macroeconomia.

Períodos de elevado desemprego e baixa formalização do trabalho acabam afetando negativamente as receitas previdenciárias e contribuições sociais, ao mesmo tempo em que pressionam por mais despesas sociais.

Sem uma política econômica que busque o desenvolvimento e crescimento econômico, estaremos condenados a “cortes” sucessivos nos direitos sociais, e o principal deles está na Seguridade Social, conceito que permitiu avançarmos um pouco em nosso patamar civilizatório nos últimos 30 anos.

O ataque à Previdência Social observado nos últimos anos, com a disseminação de informações artificiais pela grande imprensa e pelo governo, revela que estamos caminhando perigosamente para uma forte regressão econômica e social, com impactos terríveis para as próximas gerações.

Nunca na história economistas e especialistas que possuem tais informações foram tão necessários para o debate. Nunca a organização da sociedade foi tão importante para o enfrentamento deste momento.

A dramaticidade do momento remete a outra situação histórica: em 10 de julho de 1940 começava a batalha na qual a força aérea nazista tentaria aniquilar a força aérea britânica (RAF – Royal Air Force).

Derrotando a RAF em quatro dias, começaria a operação Leão Marinho que invadiria a Inglaterra. A batalha durou três meses, milagrosamente terminando com a retirada dos aviões alemães do cenário. Mesmo com superioridade numérica de 2:1 no número de caças, os nazistas não conseguiram superar os britânicos.

Como resumiria o primeiro-ministro britânico W. Churchill sobre aquele momento da história, “nunca tantos, deveram tanto a tão poucos”.

Temos que ter a consciência que estamos num destes momentos da história.

* Eduardo Marques é economista, professor de Economia, especialista em Gestão e Políticas Públicas.

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