Por Ayrton Centeno, no jornal Brasil de Fato:
Canalha é uma palavra que não abrandou sua virulência ao se distanciar da sua raiz. Ao contrário, tornou-se mais aguda. No latim, de onde provém, designa bando de cães. Os canalhas de que tratamos hoje não merecem ser chamados de “cães”. Seria injusto com estes animais que carregam virtudes como fidelidade, afeto e, empatia, que é, como alguém já disse, “a capacidade de sentir a dor do outro no meu coração”. Os canalhas que festejam o 31 de março de 1964 são imunes a isso. Não há dor no seu coração.
Quem festeja esta data, festeja o sofrimento de Hecilda. Grávida de cinco meses, foi torturada na frente do marido. A ela, os torturadores diziam “Filho desta raça não deve nascer”.
Quem festeja, festeja o martírio de Carlos Alexandre Azevedo. Com um ano e oito meses, teve sua casa invadida pela polícia. Como o bebê desatasse a chorar, um dos policiais deu-lhe um soco no rosto. Levado para o Departamento Estadual de Ordem Pública e Social (DEOPS), em São Paulo, o bebê foi submetido a choques elétricos. Seu crime, enquanto criança, era ser filho de pais suspeitos de darem abrigo a adversários da tirania. Nunca mais se recuperaria. Suicidou-se aos 40 anos. Era 2013 e a ditadura estava, enfim, acabando de matá-lo.
Quem festeja, festeja a tortura de Criméia. Presa com seis meses de gravidez, foi dependurada no pau-de-arara e espancada. E prosseguiu sendo torturada até dar a luz. Somente viu seu filho, dopado e desnutrido, quase dois meses depois.
Quem festeja, festeja a dor indescritível de Sônia Maria de Moraes Angel Jones. Levada ao DOI-Codi do Rio, Sonia foi estuprada com um cassetete e teve os seios arrancados.
Quem festeja, festeja o suplício de Maria Amélia e César Augusto. Na prisão, seus filhos, Edson, de quatro anos, e Janaína, de cinco, foram levados à presença do casal. Ali, os carrascos mostraram para as duas crianças como estavam torturando seus pais.
Quem festeja, festeja aquele dia em que a professora da USP, Ana Rosa, saiu para almoçar com o marido, Wilson, e nunca mais voltou. Décadas depois, um delegado que servia à ditadura admitiu ter levado seus corpos nus – ela tinha marcas de dentadas, sinal provável de estupro, ele tivera as unhas extraídas – para serem incinerados. Porque a ditadura, depois de matar a vida, também matava a morte.
Quem festeja, festeja os tormentos de Gilse estuprada e torturada com pau-de-arara, choque elétrico, socos e queimaduras de cigarro nos seios. Mas nada disso a deixou em pânico tão grande quanto uma promessa de seus torturadores: iriam buscar sua filha de quatro meses para chaciná-la na sua frente. Iriam botar o bebê em uma banheira cheia de gelo e aplicar-lhe choques.
Quem festeja as dores de Gilse, Ana, Maria Amélia, Sônia, Criméia, Carlos , Hecilda e de milhares de outras mulheres, homens e crianças festeja, junto, os autores de seus tormentos. Quem festeja a dor do outro festeja, junto, aquele que inflige esta mesma dor.
Festeja a figura do coronel Freddie Pereira Perdigão, um dos 377 torturadores de 1964, cujo passatempo era introduzir baratas vivas na vagina das prisioneiras.
E o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o “senhor da vida e da morte” no DOI-Codi paulista, conforme o descreveu seu ex-subordinado, o agente Marival Chaves. Ustra que, revelou Chaves, organizava exposições de seus cadáveres como um museu de todos os horrores.
Ainda o delegado Sérgio Fleury, personagem do Esquadrão da Morte, assassino e corrupto. Uma de suas vítimas, Eduardo Coleen Leite, foi torturado durante 109 dias. O corpo foi entregue à família em caixão lacrado. Aberto, mostrou o prisioneiro com orelhas decepadas, dentes arrancados, olhos vazados, queimaduras e hematomas generalizados, dois buracos de bala no peito e dois na cabeça.
Canalha é pouco para quem festeja a tortura e a morte de homens e mulheres indefesos. Seria preciso inventar palavra mais cortante e feroz. Canalha é pouco também para quem se omitiu e se omite diante da barbárie. Canalha ainda é quem vira o rosto, muda de assunto e faz de conta que a omissão o absolve. Não há absolvição. Em um país de cristãos que, da boca para fora, seguem os ensinamentos de um preso político que morreu assassinado na tortura da cruz, pior ainda.
Para quem ainda exalta a dor do seu próximo, não há esperança de redenção. Resta apenas cumprimentá-lo pelo seu dia:
Parabéns, canalha!
Canalha é uma palavra que não abrandou sua virulência ao se distanciar da sua raiz. Ao contrário, tornou-se mais aguda. No latim, de onde provém, designa bando de cães. Os canalhas de que tratamos hoje não merecem ser chamados de “cães”. Seria injusto com estes animais que carregam virtudes como fidelidade, afeto e, empatia, que é, como alguém já disse, “a capacidade de sentir a dor do outro no meu coração”. Os canalhas que festejam o 31 de março de 1964 são imunes a isso. Não há dor no seu coração.
Quem festeja esta data, festeja o sofrimento de Hecilda. Grávida de cinco meses, foi torturada na frente do marido. A ela, os torturadores diziam “Filho desta raça não deve nascer”.
Quem festeja, festeja o martírio de Carlos Alexandre Azevedo. Com um ano e oito meses, teve sua casa invadida pela polícia. Como o bebê desatasse a chorar, um dos policiais deu-lhe um soco no rosto. Levado para o Departamento Estadual de Ordem Pública e Social (DEOPS), em São Paulo, o bebê foi submetido a choques elétricos. Seu crime, enquanto criança, era ser filho de pais suspeitos de darem abrigo a adversários da tirania. Nunca mais se recuperaria. Suicidou-se aos 40 anos. Era 2013 e a ditadura estava, enfim, acabando de matá-lo.
Quem festeja, festeja a tortura de Criméia. Presa com seis meses de gravidez, foi dependurada no pau-de-arara e espancada. E prosseguiu sendo torturada até dar a luz. Somente viu seu filho, dopado e desnutrido, quase dois meses depois.
Quem festeja, festeja a dor indescritível de Sônia Maria de Moraes Angel Jones. Levada ao DOI-Codi do Rio, Sonia foi estuprada com um cassetete e teve os seios arrancados.
Quem festeja, festeja o suplício de Maria Amélia e César Augusto. Na prisão, seus filhos, Edson, de quatro anos, e Janaína, de cinco, foram levados à presença do casal. Ali, os carrascos mostraram para as duas crianças como estavam torturando seus pais.
Quem festeja, festeja aquele dia em que a professora da USP, Ana Rosa, saiu para almoçar com o marido, Wilson, e nunca mais voltou. Décadas depois, um delegado que servia à ditadura admitiu ter levado seus corpos nus – ela tinha marcas de dentadas, sinal provável de estupro, ele tivera as unhas extraídas – para serem incinerados. Porque a ditadura, depois de matar a vida, também matava a morte.
Quem festeja, festeja os tormentos de Gilse estuprada e torturada com pau-de-arara, choque elétrico, socos e queimaduras de cigarro nos seios. Mas nada disso a deixou em pânico tão grande quanto uma promessa de seus torturadores: iriam buscar sua filha de quatro meses para chaciná-la na sua frente. Iriam botar o bebê em uma banheira cheia de gelo e aplicar-lhe choques.
Quem festeja as dores de Gilse, Ana, Maria Amélia, Sônia, Criméia, Carlos , Hecilda e de milhares de outras mulheres, homens e crianças festeja, junto, os autores de seus tormentos. Quem festeja a dor do outro festeja, junto, aquele que inflige esta mesma dor.
Festeja a figura do coronel Freddie Pereira Perdigão, um dos 377 torturadores de 1964, cujo passatempo era introduzir baratas vivas na vagina das prisioneiras.
E o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o “senhor da vida e da morte” no DOI-Codi paulista, conforme o descreveu seu ex-subordinado, o agente Marival Chaves. Ustra que, revelou Chaves, organizava exposições de seus cadáveres como um museu de todos os horrores.
Ainda o delegado Sérgio Fleury, personagem do Esquadrão da Morte, assassino e corrupto. Uma de suas vítimas, Eduardo Coleen Leite, foi torturado durante 109 dias. O corpo foi entregue à família em caixão lacrado. Aberto, mostrou o prisioneiro com orelhas decepadas, dentes arrancados, olhos vazados, queimaduras e hematomas generalizados, dois buracos de bala no peito e dois na cabeça.
Canalha é pouco para quem festeja a tortura e a morte de homens e mulheres indefesos. Seria preciso inventar palavra mais cortante e feroz. Canalha é pouco também para quem se omitiu e se omite diante da barbárie. Canalha ainda é quem vira o rosto, muda de assunto e faz de conta que a omissão o absolve. Não há absolvição. Em um país de cristãos que, da boca para fora, seguem os ensinamentos de um preso político que morreu assassinado na tortura da cruz, pior ainda.
Para quem ainda exalta a dor do seu próximo, não há esperança de redenção. Resta apenas cumprimentá-lo pelo seu dia:
Parabéns, canalha!
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