sexta-feira, 29 de março de 2019

O neofascismo já é realidade no Brasil

Por Armando Boito Jr., no site Correio da Cidadania:

Em ar­tigo que pu­bli­quei no mês de ja­neiro no portal Brasil de Fato, po­le­mi­zando com um texto de Atilio Boron pu­bli­cado também neste jornal, sus­tentei que não se pode, ao con­trário do que afirma Boron, des­cartar a hi­pó­tese de que essa nova di­reita e seu go­verno sejam fas­cistas ou, mais precisamente, ne­o­fas­cistas. Boron havia afir­mado que o fenô­meno fas­cista seria ir­re­pe­tível porque o seu prin­cipal pro­ta­go­nista, a bur­guesia na­ci­onal, teria de­sa­pa­re­cido. Ar­gu­mentei, então, que ao falar em Es­tado fas­cista fa­zemos re­fe­rência, em pri­meiro lugar, à forma de Es­tado e não às classes e frações de classe es­pe­cí­ficas que par­ti­cipam do bloco no poder. Dentro de uma mesma forma de Estado – seja a de­mo­cracia, a di­ta­dura mi­litar ou a di­ta­dura fas­cista – são pos­sí­veis di­fe­rentes blocos no poder.

A di­ta­dura fas­cista num país im­pe­ri­a­lista não terá o mesmo bloco no poder que uma si­milar sua im­plan­tada num país cuja eco­nomia e cujo Es­tado são de­pen­dentes. Isso sig­ni­fica que, te­o­ri­ca­mente, é pos­sível con­tem­plar a hi­pó­tese de que um even­tual Es­tado fas­cista no Brasil po­deria vir a servir ao ca­pital in­ter­na­ci­onal, não à bur­guesia na­ci­onal como su­cedeu no fas­cismo clás­sico, e, para tanto, aplicar uma po­lí­tica ne­o­li­beral e “ne­o­co­lo­nial”. Fas­cismo, ne­o­li­be­ra­lismo e ne­o­co­lo­ni­a­lismo não são ex­clu­dentes.

A dis­tinção entre forma de Es­tado e bloco no poder é fun­da­mental. Porém, para ca­rac­te­rizar o ne­o­fas­cismo já em vigor no Brasil, é ne­ces­sário mo­bi­li­zarmos ou­tras dis­tin­ções con­cei­tuais. O fas­cismo é uma das formas di­ta­to­riais do Es­tado ca­pi­ta­lista, mas essa forma supõe a exis­tência de uma ide­o­logia, a ide­o­logia fas­cista, e tal forma de Es­tado so­mente se torna re­a­li­dade se houver um mo­vi­mento so­cial, o mo­vi­mento fas­cista mo­vido pela ide­o­logia fas­cista, que as­suma a luta para a sua im­plan­tação.

Os fas­cistas também fazem cál­culos tá­ticos. Eles podem, numa de­ter­mi­nada con­jun­tura, abrir mão ou pos­tergar a luta pela im­plan­tação de uma di­ta­dura fas­cista. Se­gundo Pal­miro To­gli­atti no seu livro Lições sobre o fas­cismo, foi exa­ta­mente isso que fez Mus­so­lini quando as­sumiu a chefia do go­verno em 1922 e foi o que ele con­ti­nuou fa­zendo pelo menos até 1923. Ou seja, te­o­ri­ca­mente é pos­sível admitir que um mo­vi­mento fas­cista, mo­vido pela ide­o­logia fas­cista, chegue ao go­verno e não implante uma di­ta­dura fas­cista.

Pois bem, no Brasil de hoje temos a ide­o­logia ne­o­fas­cista, o mo­vi­mento ne­o­fas­cista, um go­verno no qual os ne­o­fas­cistas dis­putam a he­ge­monia com o grupo mi­litar – esse úl­timo ape­gado a um autoritarismo mais pro­penso a outro tipo de di­ta­dura – mas não temos um re­gime po­lí­tico fas­cista – o que temos é uma de­mo­cracia bur­guesa de­te­ri­o­rada e em crise.

As de­fi­ni­ções são sempre pro­ble­má­ticas, mas po­demos ar­riscar a afir­mação de que, nas suas ca­rac­te­rís­ticas mais ge­rais, o fas­cismo é um mo­vi­mento re­a­ci­o­nário de massa, en­rai­zado em classes in­ter­me­diá­rias das for­ma­ções so­ciais ca­pi­ta­listas e mo­vido por um dis­curso su­per­fi­ci­al­mente crí­tico da eco­nomia e do Es­tado bur­guês. É um mo­vi­mento que chega ao poder, não como re­pre­sen­tante de tais classes in­ter­me­diá­rias, mas, sim, após ter sido po­li­ti­ca­mente con­fis­cado pela bur­guesia ou uma de suas fra­ções com o ob­je­tivo de, apoiada nele, su­perar uma crise po­lí­tica e im­plantar um go­verno an­ti­de­mo­crá­tico, an­ti­o­pe­rário e an­ti­po­pular. Essa di­nâ­mica, com de­ta­lhes que não po­de­remos abordar aqui, pre­va­leceu tanto no fas­cismo clás­sico quanto no ne­o­fas­cismo bra­si­leiro – um es­tudo im­por­tante para se com­pre­ender o tipo de crise po­lí­tica na qual pode nascer a di­ta­dura fas­cista é o livro de Nicos Pou­lantzas in­ti­tu­lado Fas­cismo e di­ta­dura.

O fas­cismo tem por ob­je­tivo eli­minar – e não sim­ples­mente der­rotar – a “es­querda” do pro­cesso po­lí­tico. “Es­querda” é um termo ge­né­rico e me­ra­mente in­di­ca­tivo. No fas­cismo clás­sico essa “es­querda” era com­posta por dois par­tidos ope­rá­rios de massa, o Par­tido So­ci­a­lista e o Par­tido Co­mu­nista, par­tidos que re­ti­veram para si a vo­tação do ope­ra­riado en­quanto houve elei­ções li­vres na Ale­manha e na Itália – o que con­traria, diga-se de pas­sagem, o mito se­gundo o qual o fas­cismo teria im­pac­tado in­dis­tin­ta­mente os “tra­ba­lha­dores” ou as “massas”, como pre­tendem al­guns es­tudos de psi­co­logia so­cial do fas­cismo. Já no ne­o­fas­cismo bra­si­leiro, a “es­querda” a ser eli­mi­nada é o mo­vi­mento de­mo­crá­tico e po­pular que es­teve, até aqui, sob a di­reção do Par­tido dos Tra­ba­lha­dores, que, de há muito tempo, deixou de ser um par­tido de massa e se tornou um par­tido de qua­dros.

O ini­migo do fas­cismo clás­sico ameaça aber­ta­mente o ca­pi­ta­lismo, or­ga­niza par­ti­da­ri­a­mente as grandes massas ope­rá­rias e, por isso, exige do fas­cismo um par­tido também de massa para a ele se opor. Esse par­tido de massa foi um par­tido pe­queno-bur­guês, que com­por­tava também mi­li­tantes e di­ri­gentes re­cru­tados em se­tores des­qua­li­fi­cados da so­ci­e­dade. Já o ini­migo do ne­o­fas­cismo bra­si­leiro não é uma ameaça aberta ao ca­pi­ta­lismo, visa re­formar o mo­delo ca­pi­ta­lista ne­o­li­beral e se apoia, sem or­ga­nizar po­li­ti­ca­mente, por sobre he­te­ro­gênea par­cela da po­pu­lação, tí­pica dos países de ca­pi­ta­lismo de­pen­dente, que po­demos de­no­minar “tra­ba­lha­dores da massa mar­ginal”.

Por isso, o ne­o­fas­cismo pode dis­pensar um par­tido de massa, pode mo­bi­lizar suas bases para lutas es­pe­cí­ficas pelas redes so­ciais, e é um mo­vi­mento ti­pi­ca­mente de fra­ções da classe média, além de mi­li­tantes e apoi­a­dores, como ocorreu com o fas­cismo clás­sico, em se­tores do lum­pem­pro­le­ta­riado – a res­peito desse ponto, seria im­por­tante uma aná­lise es­tri­ta­mente po­lí­tica da atu­ação das Mi­lí­cias dos morros do Rio de Ja­neiro.

Acres­cen­temos que o mo­vi­mento ne­o­fas­cista da alta classe média, mo­bi­li­zado quando da pré-cam­panha elei­toral de Jair Bol­so­naro já em 2016 e 2017, contou, desde o seu início, com a adesão de grandes e mé­dios pro­pri­e­tá­rios de terra prin­ci­pal­mente das re­giões Sul, Su­deste e Centro-Oeste (1).

Se no fas­cismo clás­sico, o grande ca­pital na­ci­onal, di­ante da crise dos par­tidos po­lí­ticos que tra­di­ci­o­nal­mente o re­pre­sen­tavam, con­fiscou o mo­vi­mento pe­queno-bur­guês, apoiou-se nele, para im­plantar a sua he­ge­monia; no ne­o­fas­cismo bra­si­leiro, foi o ca­pital in­ter­na­ci­onal que, tendo em vista a crise do seu tra­di­ci­onal re­pre­sen­tante no Brasil, o PSDB, te­tra­cam­peão em der­rotas nas elei­ções pre­si­den­ciais e po­ten­cial hexa, foi esse ca­pital, prin­ci­pal­mente o es­ta­du­ni­dense, que con­fiscou, em ali­ança com seg­mentos da grande bur­guesia bra­si­leira, o mo­vi­mento da alta classe média.

Foi a alta classe média que tomou a ini­ci­a­tiva de ini­ciar a luta pelo im­pe­a­ch­ment, en­quanto o PSDB di­vi­dido he­si­tava, e foi da­quele mo­vi­mento que surgiu o mo­vi­mento ne­o­fas­cista. Cabe lem­brar a mo­bi­li­zação, a partir de pro­vo­cação pre­si­den­cial, no do­mingo 17 de março do MBL, do Vem pra Rua, do Re­vol­tados on Line, bem como de ou­tros grupos que ani­maram as ma­ni­fes­ta­ções pelo im­pe­a­ch­ment, para pro­testar contra re­cente de­cisão do STF, al­guns pro­pondo até o fe­cha­mento da­quela corte de jus­tiça.

Do an­ti­pe­tismo de 2015 ao ne­o­fas­cismo de 2019 o ca­minho não é tão tor­tuoso. O ca­pital in­ter­na­ci­onal e seg­mentos da grande bur­guesia bra­si­leira con­fis­caram esse mo­vi­mento de classe média para, no caso do ca­pital es­ta­du­ni­dense e dos seg­mentos da grande bur­guesia bra­si­leira a ele as­so­ci­ados, per­filar o Es­tado e a eco­nomia bra­si­leira ao lado dos Es­tados Unidos na dis­puta de he­ge­monia com a China.

Nos dois casos, no fas­cismo clás­sico e no ne­o­fas­cismo bra­si­leiro, o prin­cipal do pro­cesso po­lí­tico re­sulta dos con­flitos entre fra­ções da bur­guesia – grande ca­pital versus médio ca­pital, no pri­meiro caso, bur­guesia as­so­ciada e ca­pital in­ter­na­ci­onal versus a bur­guesia in­terna, no se­gundo – e também da in­ter­venção po­lí­tica mas­siva de uma classe so­cial in­ter­me­diária – a pe­quena bur­guesia no fas­cismo clás­sico e a classe média no ne­o­fas­cismo. Essa di­nâ­mica par­ti­cular do pro­cesso po­lí­tico só pode ser de­vi­da­mente com­pre­en­dida se se tem em conta que nas fases mais avan­çadas do pro­cesso de fas­cis­ti­zação, tanto no fas­cismo clás­sico, quanto no ne­o­fas­cismo, as classes po­pu­lares vêm de se­guidas der­rotas e se en­con­tram po­li­ti­ca­mente na de­fen­siva – mo­men­ta­ne­a­mente in­ca­pa­ci­tadas, por­tanto, para apre­sen­tarem al­ter­na­tivas po­lí­ticas pró­prias e viá­veis.

Con­si­dero que o ne­o­fas­cismo po­derá ga­nhar a he­ge­monia no go­verno e vir a im­plantar uma di­ta­dura ne­o­fas­cista no Brasil – em­bora eu não veja essa hi­pó­tese como a mais pro­vável no mo­mento. Há a pos­si­bi­li­dade de a de­mo­cracia bur­guesa de­te­ri­o­rada so­bre­viver ou, ainda, a pos­si­bi­li­dade de sermos le­vados para uma di­ta­dura mi­litar. Afinal de contas, qual é a im­por­tância prá­tica de dis­tin­guirmos con­cei­tu­al­mente de­mo­cracia de di­ta­dura e, es­pe­ci­fi­ca­mente, di­ta­dura mi­litar de di­ta­dura fas­cista? Faz al­guma di­fe­rença para o mo­vi­mento ope­rário e po­pular? E se fizer, qual é essa di­fe­rença? Isso po­deria ser tema para outro ar­tigo.

Nota:
(1): Anoto sobre esse ponto uma se­me­lhança menor. Tra­tando do fas­cismo ita­liano, Gramsci, num texto de 1921, fala da exis­tência de dois fas­cismos desde o início do mo­vi­mento: um da pe­quena burguesia e outro dos pro­pri­e­tá­rios ru­rais da Emilia, Tos­cana, Ve­neto e Um­bria. Ver “I due fas­cismi”. In An­tonio Gramsci, Sul Fas­cismo. A cura di Enzo San­ta­relli. Roma: Edi­tori Riu­niti. 1973.

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