quinta-feira, 25 de abril de 2019

A gestão da Petrobras no governo Bolsonaro

Por William Nozaki, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:

Nos 100 primeiros dias do governo Bolsonaro, além das reformas econômicas ultraliberais e das agendas ideológicas neoconservadoras, uma pauta silenciosa teve presença constante nos atos e verbos do Executivo: as transformações estruturais na indústria nacional de petróleo e gás.

As medidas de desmonte levadas à cabo pelo governo foram inúmeras, como se verá adiante, mas chegaram ao debate público por ocasião das declarações e decisões em torno da política de preços dos combustíveis, em especial do diesel.

A paridade internacional dos preços tem trazido problemas sistemáticos tanto para a economia quanto para a própria Petrobras. Apenas nos últimos 12 meses o reajuste do diesel chegou a 13,6% e o da gasolina a 15,5%, no mesmo período a inflação foi de 4,58%. Quando se compara o preço do diesel entre os países produtores de petróleo, o Brasil apresenta o segundo combustível mais caro do mundo, cerca de US$ 1,95/litro (o preço médio global é de em US$ 1,07/litro). Com tamanha imprevisibilidade se torna proibitivo o custo do frete e inviável o planejamento do transporte de cargas.

Em 2018, uma situação análoga levou à greve dos caminhoneiros e o país viveu os riscos do desabastecimento de diesel, querosene, gasolina e gás, e o risco de interrupção dos serviços de transporte e aviação, o aprofundamento de gargalos logísticos e de infraestrutura, a interrupção na produção de bens industriais e da distribuição de alimentos e medicamentos.

Na ocasião, a resposta do governo não passou por uma mudança significativa na política de preços da Petrobras, mas sim pela suspensão dos aumentos por 60 dias, pela sinalização de aumentos com periodicidade mensal, pela redução a zero das alíquotas do PIS-Cofins e da CIDE sobre o diesel, pela isenção da cobrança de pedágio para eixos suspensos de caminhões vazios, pela determinação de que 30% dos fretes da Conab fossem feitos por caminhoneiros autônomos e pelo estabelecimento de uma tabela mínima dos fretes.

Como já era esperado, a manutenção da internacionalização dos preços nas bombas de combustíveis voltou a se tornar um problema em 2019 e, uma vez mais, diante da ameaça de nova paralisação dos caminhoneiros o governo reagiu erraticamente bloqueando e logo em seguida liberando o aumento de R$ 0,10 no preço do diesel e sinalizando para a criação de um “cartão caminhoneiro” e de uma eventual indexação do valor do frete ao preço do diesel.

A interferência atabalhoada que bloqueou o reajuste de 5,7% no diesel, para na sequência autorizar um aumento de 5,1%, provocou queda de 7% nas ações da Petrobras, perda de R$ 14 milhões/dia na venda do combustível e diminuição de R$ 32,4 bilhões em valor de mercado. Ou seja, em apenas um dia a medida errática provocou uma perda em valor acionário cinco vezes maior do que os R$ 6,2 bilhões que a empresa reconhece ter perdido diretamente em desvios e ilícitos investigados pela Operação Lava Jato.

Vale destacar, a medida do governo incomodou parte de seus apoiadores no mercado financeiro, pelo intervencionismo, pela perda de valor acionário da empresa e pela associação com a política de preços do biênio 2012-2014. No entanto, mesmo que o represamento prolongado dos preços seja contestável, ao longo do governo Dilma ele foi feito com critérios mais amplos e claros, considerando a capacidade de produção, a carga de refino e as taxas de crescimento e consumo.

A questão que se impõe é: afinal, porque governos de discurso explicitamente liberal-conservadores aceitaram empreender tantas medidas ditas “intervencionistas” de subsídio fiscal, indexação de preços, ampliação de crédito público e reserva de mercado, ao invés de apenas alterar a política de preços da Petrobras?

Certamente, a resposta para tal pergunta não pode se encontrar apenas em defecções e incoerências ideológicas; ela se encontra em uma outra dimensão, a política de refino e derivados, orientada desde 2016 para a privatização, decisão reafirmada pelo atual governo.

O Brasil consome atualmente cerca de 1,9 milhões de barris de petróleo por dia (bpd), desde a descoberta do pré-sal a produção nacional atinge cerca de 2,6 milhões de bpd e a capacidade do parque de refino nacional alcança cerca de 2,4 milhões de bpd, isso significa que somos um país praticamente autossuficiente em petróleo, embora não em derivados.

A taxa de utilização das refinarias que alcançou 96,1% no final do governo Dilma caiu para 74,2% no final do governo Temer. Tal capacidade ociosa foi criada deliberadamente com a intenção de abrir o mercado brasileiro para a entrada de novos traders importadores. Até 2015, a Agência Nacional de Petróleo (ANP) tinha em seu cadastro cerca de 263 empresas autorizadas a realizar importação de derivados para o Brasil, entre 2016 e 2018 esse número sobe para 379 empresas licenciadas, um aumento de 30,6%, não por acaso entre 2015 e 2018 a importação de combustíveis cresceu em torno de 15%.

Como as importações são adquiridas do exterior seguindo, nesse caso, necessariamente os preços internacionais, e como elas têm um peso crescente no abastecimento do mercado interno, os preços nacionais respondem cada vez mais aos preços dos importados.

Desse modo, a política de internacionalização dos preços é a antessala da política de subutilização do parque de refino estatal e deve ser entendida como pressuposto para o anúncio recente de que a partir do segundo semestre de 2019 a Petrobras deve se desfazer de metade de suas refinarias, nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste. Atualmente a Petrobras tem 13 refinarias, a venda de 6 delas significa abrir mão de cerca de uma capacidade de refino de 1,2 milhões de bpd.

No mesmo compasso, no âmbito da política de gás e logística nas últimas semanas a Petrobras anunciou a consolidação de sua maior operação dentro do atual programa de desinvestimentos, a venda de 90% de suas participações na Transportadora Associada de Gás (TAG) por US$ 8,6 bilhões. A rede de 4,5 mil kms de gasodutos nas regiões Norte e Nordeste será operada pelo grupo Engie e pelo fundo canadense Caísse de Dépôt, caso a operação seja avalizada pelo CADE.

O desmonte do segmento downstream (refino) descrito acima veio acompanhado do anúncio da retomada nos investimentos em upstream (exploração e produção), sinalizando para a concentração de core business da empresa como forma de maximização do valor acionário.

De acordo com o último plano de negócios da Petrobras (PNG), os investimentos projetados para o próximo quinquênio devem crescer quase 15%, saindo de US$ 60,3 bilhões para US$ 68,8 bilhões. Antes de se encontrar contradições intervencionistas em tais medidas é importante notar que ela se orienta para a conversão da Petrobras de uma empresa integrada do setor de energia em uma empresa enxuta apenas de exploração e produção de óleo e gás em águas profundas e ultraprofundas.

Tal concepção deveria substituir a perspectiva de empresa orientada para a soberania energética e a garantia de abastecimento da população por uma perspectiva de empresa estritamente orientada para a governança corporativa e a maximização de valor para os acionistas. No entanto, mesmo atuando como acionista majoritário o governo Bolsonaro explicita a falta de coordenação entre a presidência, a equipe econômica e a direção da Petrobras. Enquanto o Ministro da Economia defendia a “independência da Petrobras para definir o preço dos combustíveis”, um áudio vazado com o Ministro da Casa Civil explicitava que o governo havia dado “uma trava na estatal”. 

Esse não é um caso único, em pelo menos três outras ocasiões nesses 100 primeiros dias, o governo atuou na contramão de planos e diretrizes definidos pela própria empresa.

Nesse primeiro trimestre as tentativas de ingerência do governo incidiram sobre o plano de cargos e salários da estatal, com a tentativa de se nomear um capitão do círculo de relações pessoais de Bolsonaro como gerente-executivo de inteligência e segurança corporativa da Petrobras, à revelia das recomendações do comitê de indicações da empresa; mais ainda, a interferência inadvertida incidiu sobre o plano de investimentos da empresa, com a promessa de participação em leilões de exploração e produção offshore na costa de Israel, na contramão do próprio plano de negócios e gestão da companhia; por fim, ainda que indiretamente, o governo interferiu também no plano de desendividamento da companhia, dado que a arbitragem da contenda entre União e Petrobras na cessão onerosa frustrou em cerca de US$ 5 bilhões a criação de créditos para a petrolífera brasileira, contrariando expectativas da direção da petrolífera brasileira.

Para tentar acalmar os ânimos do mercado financeiro, diante de tantas medidas erráticas, o ministro Paulo Guedes sinalizou nos últimos dias que o presidente Jair Bolsonaro começa a considerar a hipótese e nutrir alguma simpatia pela privatização integral da Petrobras. O que as decisões concretas revelam, entretanto, é que o governo deve seguir o jogo de morde e assopra a fim de dar prosseguimento à abertura e internacionalização desse setor.

Para além do debate sobre as incoerências liberais ou sobre as inconsistências intervencionistas na Petrobras, o que se observa em curso nesses 100 primeiros dias de governo Bolsonaro é uma tentativa célere, e por vezes atabalhoada, de levar à cabo o desmonte do arranjo econômico-institucional que viabilizou a modernização energética e petrolífera brasileira, ora por meio de instrumentos estatais ora por meio de mecanismos de mercado.

* William Nozaki é professor de ciência política e economia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), diretor do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP-FUP).

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