Por Rosana Pinheiro-Machado, no site The Intercept-Brasil:
A lua de mel não durou 100 dias. Uma recente pesquisa do Datafolha mostrou que, após três meses, Bolsonaro tem a pior avaliação entre presidentes no primeiro mandato, confirmando algo que estava na cara: o fenômeno do bolsonarismo arrependido chegaria muito rápido.
Vale retomar o que escrevi em minha coluna de 29 de outubro, logo após a vitória de Bolsonaro:
Os eleitores de Bolsonaro foram seduzidos pela mobilização política populista, movidos por onda de contágio que foi espalhando medo e uma esperança de mudança radical. É muita expectativa popular para pouco projeto, pouca equipe e pouca experiência. Isso não pode funcionar. Isso não dará certo.
De novembro de 2016 a novembro de 2018, eu e a antropóloga Lucia Scalco fizemos uma pesquisa etnográfica, baseada em observação participante e grupos focais, sobre eleitores de Bolsonaro entre eleitores de baixa renda na zona leste de Porto Alegre. Nós percebemos que, conforme a eleição se aproximava, a adesão a Bolsonaro se transformava em um movimento emocional. Havia uma esperança crescente dos eleitores, inclusive entre aqueles que outrora desprezavam o candidato.
Até poucos meses antes da eleição, era possível identificar um padrão de eleitores de baixa renda: eram jovens desempregados que se sentiam ameaçados pelo feminismo emergente na escola; ou homens brancos, dos 30 aos 50 anos, com trabalho precário (como motoristas de aplicativos ou vigilantes terceirizados). Nas motivações de voto, o desalento econômico se misturava a uma narrativa que apontava também uma crise na masculinidade. Homens estavam desempregados e/ou com emprego precário, endividados, com pressão alta, sofrendo assaltos e tendo seu papel de provedor ameaçado. Em comum, todos eles tinham um desejo íntimo de portar uma arma para se proteger das muitas ameaças - reais e imaginárias - que desestabilizam a ordem do mundo.
No final do período eleitoral, após a retirada de Lula da corrida e a facada de Bolsonaro, as coisas mudaram na pesquisa. Não havia mais um perfil de eleitores identificável, tampouco uma razão específica para justificar o voto. As pessoas falavam que votariam em Bolsonaro por causa da corrupção, para varrer comunismo, tirar o PT, conseguir emprego, melhorar a economia, ter segurança na escola do filho, matar bandido, mamadeira de piroca, ditadura gayzista, evitar invasão alienígena, resolver a unha encravada. Tudo. Tudo o que chegava pelo WhatsApp.
As pessoas apoiavam Bolsonaro pelos mais variados motivos. Por tudo ou, talvez, por nada: embarcavam em uma onda na qual o então candidato surfou sozinho. Foram muitas as pessoas que nos perguntavam: “ué, mas tem outro candidato?”
Para além dos convictos, talvez a grande maioria de eleitores que encontramos no final do processo era não-convicta. Eles achavam que Bolsonaro não era uma opção ideal, mas que alguma mudança era necessária. O capitão, ao menos, colocaria ordem na casa: “Acho ele muito radical, machista como diz minha filha, mas é um militar, ao menos para colocar ordem nesse país esse homem deve servir, né?”, disse dona Silvinha, 58 anos, vendedora de bolos.
Tendo em vista esses perfis de eleitores, é evidente que a desilusão bateria logo na porta, pois foi uma esperança projetada sobre o nada.
Os estratos esmagados
Como observado pelos professores André Singer e Laura Carvalho, há uma significativa desilusão bolsonarista – representada no declínio de 18% de aprovação entre as últimas duas pesquisas Ibope justamente entre os estratos sociais que ganham de 2 a 5 salários mínimos. Em um artigo irretocável, Carvalho mostra que, de 2014 a 2018, o PT perdeu mais adesão, em contextos urbanos, entre as camadas “atachadas” que se situam entre a base e o topo da distribuição. Estamos, portanto, falando dos setores precarizados que sentiram a crise econômica de forma brutal.
Ainda que eu tenha defendido que o papel da crise econômica precisa ser mais seriamente levado em consideração nas análises das eleições, o único ponto que ainda não estou plenamente convicta em relação ao argumento da professora é sobre o peso da insegurança econômica em relação às pautas morais nas eleições. Ela acredita que o primeiro aspecto foi preponderante no Brasil, diferentemente da eleição de Trump nos Estados Unidos, em que algumas pesquisas já apontaram que o fator “preconceito” foi decisivo – como esta publicada na revista Critical Sociology. Sem dúvidas, o peso econômico foi imenso, um ponto de partida que mostrou luz no fim do túnel para homens desesperados. Mas também entendo que ainda não temos pesquisa suficiente para ter clareza acerca do impacto de diferentes forças.
Por ora, com base nos insights da experiência em campo, tendo a pensar que, no caso das eleições brasileiras, a dicotomia economia/moral tem se demonstrado falsa - na linha argumentativa da cientista política e historiadora Tatiana Vargas Maia em seu artigo no El País. O Brasil tem passado por uma crise multidimensional. Ainda que a penúria econômica tenha dado o primeiro pontapé entre os eleitores que se sentiam desamparados socialmente, o conservadorismo, o fundamentalismo religioso, a crise política, as fake news e o fator de “efervescência social” do final das eleições arrastaram milhões de eleitores na onda de contágio.
Agora, os eleitores começam a pular fora do barco.
Desilusão de baixo para cima
Desde o término da pesquisa, tenho conversado, de forma não sistemática, com alguns antigos interlocutores e com outros trabalhadores precarizados com os quais eu convivo. Essas conversas não sugerem nenhum entusiasmo no ar. Pelo contrário: o clima de esperança parece ter cedido lugar ao desânimo.
O grupo da “masculinidade machucada” pela crise econômica não viu ainda a situação de emprego melhorar e tampouco sentiu os efeitos práticos nem do decreto presidencial de facilitação da posse armas, nem no preço de uma Taurus. Acima de tudo, o trabalhador precarizado quer segurança e renda. E estamos muito longe de ver isso acontecer.
Aqueles que votaram por falta de opção voltaram ao lugar comum “de que político é tudo uma bosta”.
O bolsonarista arrependido não é confesso.
Ainda há aqueles eleitores que, como Dona Silvinha, estão esperando sentados a tal da ordem na casa. Eles encontram mesmo é “um bando de trapalhões” como disse-me Pedro, motorista de aplicativo de Santa Maria, Rio Grande do Sul, que votou em Bolsonaro querendo mudança, mas entende que “estão muito atrapalhados. Palhaçada isso do Carnaval… [referia-se ao tuíte sobre Golden Shower]”. E continuou desabafando: “Minha cunhada trabalha no posto de saúde e disse que o dinheiro acabou, que cortaram tudo. Como vai ser?”
O bolsonarista arrependido não é confesso. Ele tem vergonha e mantém seu orgulho: “Não me arrependo, não é possível um governo estar por 20 anos no poder, não é democrático”, disse-me Luis. Mas ele reconhece o caos do país e já colocou Bolsonaro na vala comum do político ruim.
Um dos erros de avaliação do bolsonarismo é acreditar em tudo que vê na internet, na malha de ódio da extrema direita. Os trolls possuem presença robusta na rede e fazem grande barulho. Quando eles são sujeitos de carne e osso - e não robôs -, representam uma pequena parte do eleitorado, a mais fanática e a mais fiel. Nós encontramos vários desses bolsolovers durante o trabalho de campo, mas posso afirmar que eram um número insignificante perto de todo o resto que aderiu ao projeto por frustração na onda de contágio.
O que esse eleitorado tem visto é despreparo, mandos e desmandos via rede social e guerra de vaidades.
Poucos dias antes da eleição, vi um vendedor ambulante em São Paulo gritando “Bolsonaro!” para os carros que passavam com bandeira do candidato. Era uma cena triste. Ele parecia comemorar a final da Copa do Mundo, soltando o grito engasgado dos 7×1 de toda a tragédia nacional dos últimos cinco anos. Um país quebrado como o Brasil, em meio a um sistema político e econômico que colapsou, fez com que o baixo clero ganhasse a eleição por fatores excepcionais.
O bolsonarismo arrependido já impacta o governo. Rumores em correntes do WhatsApp diziam que os caminhoneiros iriam parar. Quando a pesquisa do Datafolha foi lançada, Bolsonaro reagiu nervoso com dois tuítes seguidos: um mostrava crianças que o abraçavam, como se fosse a prova cabal de que ele era amado pelo povo; o outro tuíte só dizia “kkkkkkk”. Não demorou muito para que o presidente reagisse e interferisse no preço do diesel.
O eleitor não fanático até pode ter achado graça do personagem que “fala o que pensa” e que “é gente como a gente”. Mas num país violento em crise como o Brasil, as trapalhadas do presidente terão cada vez menos apelo se não vierem com mudanças concretas no cotidiano das pessoas. Bolsonaro foi eleito por uma grande parte do eleitorado popular que cultiva no imaginário a ideia do pulso firme. Mas o que esse eleitorado tem visto é despreparo, mandos e desmandos via rede social e guerra de vaidades entre os membros do PSL. Sem um projeto de governo e passando o tempo preocupado com temas distantes do povo - de Cuba a Israel -, a desilusão só tende a piorar.
Isso não é necessariamente uma boa notícia. Há uma tendência muito maior agora à descrença com a democracia representativa e a política institucional. Nossa sorte é que não parece haver um grupo de militares articulados que demonstrem querer mais do que tudo que já têm. Cabe agora a nós, dos setores progressistas, tratar de arrumar a casa e ter a capacidade para dar respostas para Dona Silvinha.
* Os nomes foram trocados para preservar a identidade das fontes.
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