Por João Paulo Cunha, no jornal Brasil de Fato:
Só pode haver uma coisa pior que o governo Bolsonaro: a incapacidade em combatê-lo com as armas da razão e da força da mobilização popular. Em quatro meses o país ficou mais pobre, mais burro, mais autoritário, mais violento e mais isolado no concerto das nações democráticas. Não se trata de um descaminho, resultado de um plano mal executado, mas de um projeto. A derrota da civilização é uma conquista do atraso.
No entanto, em vez de encontrar uma situação de resistência ao desmonte de valores democráticos à altura da ameaça, a agenda parece tomada pelos termos ditados pelo ambiente fascista cevado por personalidades autoritárias e politicamente infantis. Os adultos saíram da sala e deixaram a arena pública ser tomada pelo descontrole e grosseria que compõem alguns dos pilares ideológicos do poder.
Não se trata apenas de familiares desequilibrados, de religiosos fundamentalistas, ideólogos ensandecidos e milicianos à espreita de novas oportunidades de negócio. Quando o núcleo de racionalidade capaz de um diálogo possível atende pelas figuras de um juiz notoriamente parcial, de um economista comprometido com o mercado financeiro e de militares com histórico de apoio a regimes de exceção, não há mais alarme possível.
O Brasil está menos justo socialmente. O desemprego nunca foi tão alto e próximo de todos os brasileiros. A renda média do trabalhador jamais foi tão baixa e o índice de confiança na retomada tão capenga. A promessa mágica de que o crescimento seria resultado imediato da mudança de governo já se desfez dramaticamente. A população acompanha a publicação de índices vergonhosos de aumento da pobreza extrema, a reintrodução do mapa da fome e o desalento dos trabalhadores.
O país está também menos crítico e inteligente. A educação se tornou um problema, com a sequência dos mais ineptos ministros imagináveis, que viraram às costas ao setor para defender pautas morais. As pesquisas foram brecadas em nome de uma noção de produtividade tacanha, a universidade se tornou local de perseguição ideológica. Não é apenas a ditadura militar que é negada pelos novos sábios, até mesmo a teoria da evolução, a forma da Terra e o aquecimento global sofrem ameaça de revisionismo.
Não bastasse o desestímulo ao saber e à ciência, a arte e a cultura recebem sua carga de ataque. Ameaças de censura, que espreitam nas sombras, ganharam agora o reforço da mudança da Lei Rouanet, que encontrou um ministério-apêndice, nas mãos de um confessado ignorante na área. A diminuição dos recursos vai garantir a operacionalização de uma visão que demoniza artistas e intelectuais. A perseguição de conteúdos críticos e emancipadores convive agora com uma legislação restritiva e que destrói de tabela a força econômica do setor.
Mais pobre e mais burro, o Brasil também está menos democrático. Entre as mais recentes ações contra a participação da sociedade está a extinção, por decreto, da rede de conselhos e entidades ligadas a temas como combate ao racismo, defesa dos direitos de minorias, proteção do meio ambiente, órgãos de fiscalização de políticas públicas, entre outras. O complexo e necessário equilíbrio entre a representação e a presença direta da população em temas fundamentais da vida social, perde um de seus instrumentos mais importantes. Uma rica história de formação da cidadania, que é jogada na vala comum da despolitização.
A empreitada antidemocrática mostra ainda suas garras na desvalorização dos canais institucionais, jogando para a galera sedenta de ódio. No entanto, relação espúria com esses mesmos políticos retorna com viés assumidamente clientelista, com a promessa de compra de votos de deputados que votarem pautas antipopulares, como a da reforma da previdência. O esvaziamento do poder civil, entregando aos militares os principais comandos de ações para as quais não têm preparo nem vocação, complementa o pacote de autoritarismo explícito.
Na soma de mazelas emanadas do governo está também o incremento da violência. Não bastasse o agravamento de todos os índices relacionados à segurança pública, o governo apostou na liberação da posse de armas (e, em breve, do porte) e num pacote de medidas que tem tudo para piorar a situação, de acordo com especialistas no setor.
Entre as medidas do documento produzido pelo ministro Moro, e questionado até mesmo na originalidade da autoria, está a liberação para ações violentas e mesmo letais por parte da polícia, sob o álibi subjetivo da emoção e do medo. Esta é uma medida que intensifica a guerra civil que faz do país um triste líder em assassinatos de jovens pobres e negros e também de policiais em serviço.
O mesmo empenho justiceiro não chega à apuração dos crimes como os quais cidadão convive em seu dia a dia. O assassinato de dois cidadãos por uma patrulha do Exército, que desferiu 83 tiros de fuzil, entrou para as estatísticas como apenas mais um número e para o discurso oficial como um incidente lamentável. Nem mesmo casos de grande impacto internacional ganharam apuração eficaz com punição dos culpados.
Enquanto isso, as milícias não apenas se aproximam dos gabinetes de familiares do presidente e recebem honrarias públicas, como veem crescer e diversificar seus negócios. Depois ação mafiosa no campo da segurança e de prestação de serviços à margem da legalidade - do transporte alternativo ao fornecimento de energia e sinal de TV - chegaram ao ramo da construção civil. Sem, contudo, se afastar da capacidade de produzir mortes por onde deixam seus rastros.
Não perca a conta dos nossos prejuízos como nação sob o domínio bolsonarista: pobre, burro, antidemocrático, violento e, para completar, isolado internacionalmente. Se não existem projetos consistentes para as áreas de emprego e renda, educação e segurança pública, no caso da política exterior o problema é exatamente o projeto especialmente destrutivo. No comando do Itamaraty, Ernesto Araújo tem se esforçado em sua cruzada anti-iluminista e subserviente.
Considerado incapaz de ocupar o cargo de chanceler pelos próprios pares, que se manifestam sempre de forma velada por temor justificado de perseguição, o ministro destruiu o conceito que o país edificou ao longo da história das relações internacionais. O Brasil, independentemente do governo ao longo de décadas, manteve sempre uma linha equilibrada no cenário diplomático. Uma tradição que reúne alguns valores como não intervenção, abertura a ações humanitárias, participação destacada em fóruns multilaterais e apoio em ações comerciais.
O alinhamento com os EUA e a inversão da pauta pragmática e elegante pela afirmação ideológica e conspiracionista, está isolando o país em termos políticos e prejudicando relações econômicas estabelecidas. Sem falar na criação de atmosfera da beligerância com nações amigas, confundindo governos com o povo.
Depois de propor a tese estapafúrdia de que o nazismo era uma manifestação da esquerda, ironizada em todo o mundo, Araújo se esmerou em elogios abertos a governantes de extrema direita na Hungria, Itália e Polônia. A subserviência aos interesses dos Estados Unidos, além dos rapapés a Trump, considerado por ele o salvador da civilização ocidental, se materializou em acordos nitidamente prejudiciais ao país e em desacordo com o princípio secular da reciprocidade que rege as relações internacionais.
Socialismo com democracia
Mais grave que esse diagnóstico é o remédio que vem sendo apontado. Mesmo para os críticos mais duros ao governo, a saída existe apenas na recomposição dos instrumentos próprios da democracia liberal clássica. Trata-se de recompor salvaguardas, investir na retomada de um grau mínimo de racionalidade, apelar para o fortalecimento do campo da política e do combate ao autoritarismo.
Mesmo a esquerda tem se deixado seduzir por esse tratamento, como se o melhor do mundo estivesse em algum ponto ente os governos FHC e Lula. Para os defensores da democracia liberal, a saída é evitar os radicalismos dos dois lados. Aos democratas de fato caberia recusar o populismo, venha ele de onde vier. O fiel da balança estaria no centro democrático e liberal por definição.
O projeto da esquerda não pode ser este. Estratégia de recomposição de forças conservadoras, a nova onda liberalizante mira apenas a retomada do poder em bases menos tacanhas e violentas, mas não uma real transformação social. Cabe às forças progressistas retomar sua pauta própria, que implica em radicalizar a democracia socialista, apontando para a ampliação de direitos, justiça social, distribuição de renda, humanismo libertário e novos modelos de exercício do poder popular, autônomos e plurais.
O fundo do poço parece ensinar que a saída só tem sentido se for utópica. Se a história mostrou que não é possível se pensar no socialismo sem democracia, já estamos vivendo um tempo em que não há democracia possível distante do socialismo. Os adultos precisam voltar para a sala.
No entanto, em vez de encontrar uma situação de resistência ao desmonte de valores democráticos à altura da ameaça, a agenda parece tomada pelos termos ditados pelo ambiente fascista cevado por personalidades autoritárias e politicamente infantis. Os adultos saíram da sala e deixaram a arena pública ser tomada pelo descontrole e grosseria que compõem alguns dos pilares ideológicos do poder.
Não se trata apenas de familiares desequilibrados, de religiosos fundamentalistas, ideólogos ensandecidos e milicianos à espreita de novas oportunidades de negócio. Quando o núcleo de racionalidade capaz de um diálogo possível atende pelas figuras de um juiz notoriamente parcial, de um economista comprometido com o mercado financeiro e de militares com histórico de apoio a regimes de exceção, não há mais alarme possível.
O Brasil está menos justo socialmente. O desemprego nunca foi tão alto e próximo de todos os brasileiros. A renda média do trabalhador jamais foi tão baixa e o índice de confiança na retomada tão capenga. A promessa mágica de que o crescimento seria resultado imediato da mudança de governo já se desfez dramaticamente. A população acompanha a publicação de índices vergonhosos de aumento da pobreza extrema, a reintrodução do mapa da fome e o desalento dos trabalhadores.
O país está também menos crítico e inteligente. A educação se tornou um problema, com a sequência dos mais ineptos ministros imagináveis, que viraram às costas ao setor para defender pautas morais. As pesquisas foram brecadas em nome de uma noção de produtividade tacanha, a universidade se tornou local de perseguição ideológica. Não é apenas a ditadura militar que é negada pelos novos sábios, até mesmo a teoria da evolução, a forma da Terra e o aquecimento global sofrem ameaça de revisionismo.
Não bastasse o desestímulo ao saber e à ciência, a arte e a cultura recebem sua carga de ataque. Ameaças de censura, que espreitam nas sombras, ganharam agora o reforço da mudança da Lei Rouanet, que encontrou um ministério-apêndice, nas mãos de um confessado ignorante na área. A diminuição dos recursos vai garantir a operacionalização de uma visão que demoniza artistas e intelectuais. A perseguição de conteúdos críticos e emancipadores convive agora com uma legislação restritiva e que destrói de tabela a força econômica do setor.
Mais pobre e mais burro, o Brasil também está menos democrático. Entre as mais recentes ações contra a participação da sociedade está a extinção, por decreto, da rede de conselhos e entidades ligadas a temas como combate ao racismo, defesa dos direitos de minorias, proteção do meio ambiente, órgãos de fiscalização de políticas públicas, entre outras. O complexo e necessário equilíbrio entre a representação e a presença direta da população em temas fundamentais da vida social, perde um de seus instrumentos mais importantes. Uma rica história de formação da cidadania, que é jogada na vala comum da despolitização.
A empreitada antidemocrática mostra ainda suas garras na desvalorização dos canais institucionais, jogando para a galera sedenta de ódio. No entanto, relação espúria com esses mesmos políticos retorna com viés assumidamente clientelista, com a promessa de compra de votos de deputados que votarem pautas antipopulares, como a da reforma da previdência. O esvaziamento do poder civil, entregando aos militares os principais comandos de ações para as quais não têm preparo nem vocação, complementa o pacote de autoritarismo explícito.
Na soma de mazelas emanadas do governo está também o incremento da violência. Não bastasse o agravamento de todos os índices relacionados à segurança pública, o governo apostou na liberação da posse de armas (e, em breve, do porte) e num pacote de medidas que tem tudo para piorar a situação, de acordo com especialistas no setor.
Entre as medidas do documento produzido pelo ministro Moro, e questionado até mesmo na originalidade da autoria, está a liberação para ações violentas e mesmo letais por parte da polícia, sob o álibi subjetivo da emoção e do medo. Esta é uma medida que intensifica a guerra civil que faz do país um triste líder em assassinatos de jovens pobres e negros e também de policiais em serviço.
O mesmo empenho justiceiro não chega à apuração dos crimes como os quais cidadão convive em seu dia a dia. O assassinato de dois cidadãos por uma patrulha do Exército, que desferiu 83 tiros de fuzil, entrou para as estatísticas como apenas mais um número e para o discurso oficial como um incidente lamentável. Nem mesmo casos de grande impacto internacional ganharam apuração eficaz com punição dos culpados.
Enquanto isso, as milícias não apenas se aproximam dos gabinetes de familiares do presidente e recebem honrarias públicas, como veem crescer e diversificar seus negócios. Depois ação mafiosa no campo da segurança e de prestação de serviços à margem da legalidade - do transporte alternativo ao fornecimento de energia e sinal de TV - chegaram ao ramo da construção civil. Sem, contudo, se afastar da capacidade de produzir mortes por onde deixam seus rastros.
Não perca a conta dos nossos prejuízos como nação sob o domínio bolsonarista: pobre, burro, antidemocrático, violento e, para completar, isolado internacionalmente. Se não existem projetos consistentes para as áreas de emprego e renda, educação e segurança pública, no caso da política exterior o problema é exatamente o projeto especialmente destrutivo. No comando do Itamaraty, Ernesto Araújo tem se esforçado em sua cruzada anti-iluminista e subserviente.
Considerado incapaz de ocupar o cargo de chanceler pelos próprios pares, que se manifestam sempre de forma velada por temor justificado de perseguição, o ministro destruiu o conceito que o país edificou ao longo da história das relações internacionais. O Brasil, independentemente do governo ao longo de décadas, manteve sempre uma linha equilibrada no cenário diplomático. Uma tradição que reúne alguns valores como não intervenção, abertura a ações humanitárias, participação destacada em fóruns multilaterais e apoio em ações comerciais.
O alinhamento com os EUA e a inversão da pauta pragmática e elegante pela afirmação ideológica e conspiracionista, está isolando o país em termos políticos e prejudicando relações econômicas estabelecidas. Sem falar na criação de atmosfera da beligerância com nações amigas, confundindo governos com o povo.
Depois de propor a tese estapafúrdia de que o nazismo era uma manifestação da esquerda, ironizada em todo o mundo, Araújo se esmerou em elogios abertos a governantes de extrema direita na Hungria, Itália e Polônia. A subserviência aos interesses dos Estados Unidos, além dos rapapés a Trump, considerado por ele o salvador da civilização ocidental, se materializou em acordos nitidamente prejudiciais ao país e em desacordo com o princípio secular da reciprocidade que rege as relações internacionais.
Socialismo com democracia
Mais grave que esse diagnóstico é o remédio que vem sendo apontado. Mesmo para os críticos mais duros ao governo, a saída existe apenas na recomposição dos instrumentos próprios da democracia liberal clássica. Trata-se de recompor salvaguardas, investir na retomada de um grau mínimo de racionalidade, apelar para o fortalecimento do campo da política e do combate ao autoritarismo.
Mesmo a esquerda tem se deixado seduzir por esse tratamento, como se o melhor do mundo estivesse em algum ponto ente os governos FHC e Lula. Para os defensores da democracia liberal, a saída é evitar os radicalismos dos dois lados. Aos democratas de fato caberia recusar o populismo, venha ele de onde vier. O fiel da balança estaria no centro democrático e liberal por definição.
O projeto da esquerda não pode ser este. Estratégia de recomposição de forças conservadoras, a nova onda liberalizante mira apenas a retomada do poder em bases menos tacanhas e violentas, mas não uma real transformação social. Cabe às forças progressistas retomar sua pauta própria, que implica em radicalizar a democracia socialista, apontando para a ampliação de direitos, justiça social, distribuição de renda, humanismo libertário e novos modelos de exercício do poder popular, autônomos e plurais.
O fundo do poço parece ensinar que a saída só tem sentido se for utópica. Se a história mostrou que não é possível se pensar no socialismo sem democracia, já estamos vivendo um tempo em que não há democracia possível distante do socialismo. Os adultos precisam voltar para a sala.
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