Por Paulo Kliass, no site Carta Maior:
O governo do capitão continua insistindo na tecla da chamada crise fiscal. Para além de todas as translouquices e das trapalhadas dos integrantes de seu primeiro escalão, existe um time sério e perigoso no comando do Ministério da Economia. Não devemos nos deixar enganar pelas inimagináveis propostas e ações que terminam por depor contra a própria imagem do nosso País no exterior. O governo Bolsonaro não se resume a Ernesto Araújo nas Relações Exteriores, a Damares na Família, a Velez na Educação, aos filhos irresponsáveis ou a Olavo Carvalho infernizando a vida de todos por aqui a partir de torpedos disparados lá dos Estados Unidos.
Um dos principais fatores para a vitória eleitoral do defensor declarado da tortura em outubro passado foi sua capacidade de convencer parcela expressiva de nossas classes dominantes a respeito da viabilidade de seu projeto. Setores do empresariado compraram esse verdadeiro estelionato por seu valor de face, impulsionados por seus colegas que atuam no mercado financeiro. A mítica gerada em torno da figura de Paulo Guedes recuperava um pouco a adesão incondicional de nossa burguesia ao golpeachment contra Dilma Roussef e o cheque em branco conferido a Michel Temer lá em 2016. Afinal, valia tudo para tirar o PT do poder e entregar o comando da economia para gente “técnica e competente”. E lá vinham Henrique Meireles e Ilan Goldfajn, a duplinha dinâmica respondendo pelos interesses do Bank of Boston e do Banco Itaú. Triste ilusão!
A desgraça que se abateu nossa economia e nossa sociedade nós estamos sentindo até agora. A maior recessão de nossa História entre 2015 e 2016, seguida por mais dois anos em que a economia ficou andando de lado, praticamente estagnada. Um desemprego oficial impressionante de 13 milhões de pessoas, às quais se somam outras dezenas de milhões em situação de desalento ou trabalhando menos do que gostariam e em condições de intermitência ou informalidade nas relações trabalhistas.
Bolsonaro & Guedes: austeridade na veia
O início de 2019 não altera em nada o quadro. Afinal, o diagnóstico oficial equivocado continua sendo exatamente o mesmo de antes. O governo de Guedes & Bolsonaro se recusa a mexer uma palha na direção de flexibilizar as regras draconianas da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) de 2001 e da Emenda Constitucional 95/2016. Afinal, o rigor da austeridade fiscal é o tempero que mais delicia os prazeres do povo do mundo do financismo. Enchem a boca para exigir sacrifícios dos outros e dos mais pobres. Os gastos orçamentários da União nas áreas sociais e dos investimentos seguem congelados por longos 20 anos. Os entes da federação, como Estados e Municípios, estão absolutamente estrangulados em tomar iniciativas para solucionar suas dificuldades por conta das ameaças constantes na LRF. A eterna ameaça de cassação de mandatos de prefeitos e governadores por desobediência às normas previstas nessa lei.
E agora o mantra da vez é a necessidade da Reforma da Previdência. Uma loucura! Onze em cada dez colunistas e “especialistas” ouvidos pelos grandes meios de comunicação responsabilizam a crise geral dos nossos tempos pela não votação das mudanças nas regras previdenciárias. E tudo isso por conta de uma suposta compressão da capacidade de recuperação da economia provocada pelo tal do descontrole das contas públicas. Os representantes do sistema financeiro martelam que a desgraça de nossos sucessivos PIBinhos se deve à ausência de votação dessa famosa reforma. Uma enganação!
Pois bem, mas de qual crise fiscal estariam eles falando? Em primeiro lugar, seria bom esclarecer que, em tese, o equilíbrio entre receitas e despesas nas contas públicas de um país é sempre recomendável. Ocorre que tudo começa de forma viesada no debate proposto pelo povo que se deixa dirigir pelos interesses da banca. Afinal, todos nós estamos cansados de ouvir “ad nauseam” a lenga-lenga relativa ao superávit primário. E aqui começa todo o malfeito. A tal da responsabilidade fiscal tão falada e sempre invocada se refere apenas e tão somente aos gastos sociais - educação, saneamento, previdência, pessoal, saúde, investimentos, etc. As despesas financeiras estão fora da conta e do esforço. O País pode gastar livre e solto os valores do Orçamento da União com juros da dívida, pois isso não seria um problema de acordo com essa abordagem que se diz séria e competente.
Cadê o trilhão que estava aqui?
Assim, por exemplo, os R$ 380 bilhões gastos em 2018 com esse tipo de rubrica dos juros realizados pelo governo federal não incomodam. Mas o torniquete se volta para as despesas “estruturalmente deficitárias” de um modelo de previdência que paga a fortuna de um salário mensal para 99% dos aposentados do campo e para quase 65% dos que se aposentaram depois de décadas de trabalho no ambiente urbano. Ou que dirige esse mesmo valor a idosos ou pessoas deficientes cujas famílias tenham uma renda per capita de ¼ do salário mínimo. Esses são os critérios que norteiam a prática desse tipo de responsabilidade fiscal.
Por outro lado, a menção recorrente ao fato de que o governo não tem recursos não se sustenta em pé. Basta olhar as contas da União junto ao Banco Central (BC). Ali estão registrados os valores líquidos que o Tesouro Nacional mantém junto àquele órgão. Sabe qual o valor disponível ali? O saldo positivo é superior a R$1 trilhão. Aliás, não por acaso, esse é o valor sobre o qual Guedes enche o peito orgulhoso de satisfação junto aos seus amiguinhos da confraria financeira. Diz ele que com a Reforma da Previdência, o governo faria uma economia de R$ 1 trilhão ao longo de 10 manos. E mantém um sorriso matreiro no rosto, pois esse esforço todo recairia apenas sobre os mais pobres. Ou seja, nem uma única palavra a respeito de imposto sobre grandes fortunas, taxação de lucros e dividendos nem outras generosidades a favor do grande capital. Qual a crise fiscal?
As contas da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) evidenciam que existe uma dívida tributária superior a R$ 1,5 trilhão a ser cobrada, em especial junto a grandes conglomerados industriais e empresariais. Qual a crise fiscal? As nossas reservas internacionais estão próximas a 380 bilhões de dólares, podendo o governo lançar mão de uma pequena parcela desse total para transformá-lo em instrumentos de financiar os investimentos tão necessários. Qual a crise fiscal?
A maior parte dos países capitalistas conseguiram superar a recessão imposta pela crise econômico-financeira, que se iniciou a partir da crise de 2008/9, a partir de mudanças nesses dogmas fiscalistas que só interessam ao sistema financeiro. Isso porque ficou claro para os articuladores das políticas econômicas nos Estados Unidos e no interior da União Europeia que a manutenção dos fundamentos do neoliberalismo em sua forma mais extremada não tiraria os seus países da crise. Assim, houve uma espécie de relaxamento dos entendimentos contra a presença do Estado na economia e uma certa flexibilização a respeito do conceito de rigor fiscal.
Flexibilizar a política fiscal
Essa transformação não foi fácil nem indolor. Afinal, haviam sido décadas de defesa arraigada dos preceitos do conservadorismo da ortodoxia que tiveram de ser deixados um pouco de lado. Economistas renomados, faculdades de referência e centros de pesquisa econômica de ponta, jornalistas e analistas de economia. Tudo isso passou a ser colocado em xeque a partir do momento em que a política fiscal dos EUA passou a ser expansionista - ó santa heresia! Tudo isso passou a ser reavaliado quando o governo norte-americano passou a injetar recursos que até então “não tinha” para estimular a atividade econômica e salvar grandes grupos empresariais em situação falimentar. Uma virada importante na pátria mãe do receituário da austeridade.
Mas como nós temos dificuldades em acompanhar algumas dessas inovações que ocorrem no âmbito das instituições que defendem a política econômica no mundo contemporâneo, ficamos para trás nesse debate. E nossas elites do financismo tupiniquim insistem no discurso que já ficou ultrapassado até mesmo no próprio centro do capitalismo atual. Essa coisa de imobilismo na economia por conta da suposta impossibilidade fiscal é um tremendo de um engodo. Essa ideia de comprimir gastos sociais e de investimento público com a enganação de que tal “gesto nobre” vai promover a retomada da economia não se sustenta em pé.
A questão fiscal, como os economistas heterodoxos não nos cansamos de escrever há muito tempo, tem que ser abordada como uma equação. Existem as despesas e as receitas. Não há razão para focar e insistir apenas no corte dos gastos. Ninguém da bancada da banca abre a boca para falar a respeito das alternativas de recuperação das fontes de receita, os tributos. Pelo contrário, não cessam de rosnar contra a suposta “carga tributária excessiva”. Mas reclamam de boca cheia, pois os setores do topo de nossa pirâmide de desigualdade são justamente os mais beneficiados por essa estrutura tributária regressiva. O sistema penaliza os mais pobres e isenta os mais ricos. Qual crise fiscal? Aquela onde os que mais têm renda e patrimônio nada recolhem aos cofres públicos, mas nos momentos de crise bradam contra as “injustiças” de um sistema público de saúde, educação e previdência social que oferece esse tipo de serviço públicos para a maioria da população.
Recuperar o protagonismo do Estado
A recuperação da atividade só será possível se o Estado recuperar seu papel preponderante como protagonista no processo econômico. Isso significa que deverá ser levada acabo uma flexibilização profunda nessa ortodoxia burra, que impede o PIB de voltar a crescer. O Brasil possui os meios para promover tal virada. O que se faz necessário é a vontade política de consolidar essa nova abordagem da questão da política econômica em geral e da política fiscal em particular.
E para comprovar que não se trata de elucubrações malucas de alguns bolivarianos desvairados, vale recordar aqui as recentes contribuições do economista André Lara Resende a essa discussão. O banqueiro e tucano está promovendo uma importante autocrítica a respeito dos equívocos cometidos ao longo das últimas décadas em nome dessa visão da ortodoxia. Além de considerar errada a estratégia de juros estratosféricos praticados desde sempre em nome de consertar os desequilíbrios da macroeconomia, o professor e intelectual tucano agora derruba as teses da “austeridade fiscal” a qualquer custo. No resto do mundo, essa abordagem ganhou a alcunha chique em inglês de “modern monetary theory” - MMT. Algo equivalente a teoria monetária moderna em nossa língua. Ainda vai dar muito no que falar. Aguardemos.
Para Resende, a obsessão canônica com o suposto excesso de endividamento público não se justifica. Nos momentos de crise, a sociedade espera do Estado justamente o contrário que do propõem Guedes e sua equipe. Trata-se daquilo que o economês chama de medidas contracíclicas. O setor público precisa adotar políticas de estímulo à atividade econômica, por via direta ou indireta. Mas qualquer uma delas implica em aumentar os gastos no curto prazo. Desse fenômeno não há como se escapar. Se isso significa uma elevação da dívida pública num primeiro momento, mais à frente tudo voltaria a se equaciona por conta dos frutos da retomada do crescimento. Esse é o único caminho capaz de prover receitas tributárias ao Estado. O atual superministro da economia sabe muito bem disso. Mas sua competência e seriedade estão voltadas tão somente para resolver os interesses da banca e não orientadas para solucionar os verdadeiros problemas do Brasil.
O debate está lançado. Afinal, qual crise fiscal?
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
O governo do capitão continua insistindo na tecla da chamada crise fiscal. Para além de todas as translouquices e das trapalhadas dos integrantes de seu primeiro escalão, existe um time sério e perigoso no comando do Ministério da Economia. Não devemos nos deixar enganar pelas inimagináveis propostas e ações que terminam por depor contra a própria imagem do nosso País no exterior. O governo Bolsonaro não se resume a Ernesto Araújo nas Relações Exteriores, a Damares na Família, a Velez na Educação, aos filhos irresponsáveis ou a Olavo Carvalho infernizando a vida de todos por aqui a partir de torpedos disparados lá dos Estados Unidos.
Um dos principais fatores para a vitória eleitoral do defensor declarado da tortura em outubro passado foi sua capacidade de convencer parcela expressiva de nossas classes dominantes a respeito da viabilidade de seu projeto. Setores do empresariado compraram esse verdadeiro estelionato por seu valor de face, impulsionados por seus colegas que atuam no mercado financeiro. A mítica gerada em torno da figura de Paulo Guedes recuperava um pouco a adesão incondicional de nossa burguesia ao golpeachment contra Dilma Roussef e o cheque em branco conferido a Michel Temer lá em 2016. Afinal, valia tudo para tirar o PT do poder e entregar o comando da economia para gente “técnica e competente”. E lá vinham Henrique Meireles e Ilan Goldfajn, a duplinha dinâmica respondendo pelos interesses do Bank of Boston e do Banco Itaú. Triste ilusão!
A desgraça que se abateu nossa economia e nossa sociedade nós estamos sentindo até agora. A maior recessão de nossa História entre 2015 e 2016, seguida por mais dois anos em que a economia ficou andando de lado, praticamente estagnada. Um desemprego oficial impressionante de 13 milhões de pessoas, às quais se somam outras dezenas de milhões em situação de desalento ou trabalhando menos do que gostariam e em condições de intermitência ou informalidade nas relações trabalhistas.
Bolsonaro & Guedes: austeridade na veia
O início de 2019 não altera em nada o quadro. Afinal, o diagnóstico oficial equivocado continua sendo exatamente o mesmo de antes. O governo de Guedes & Bolsonaro se recusa a mexer uma palha na direção de flexibilizar as regras draconianas da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) de 2001 e da Emenda Constitucional 95/2016. Afinal, o rigor da austeridade fiscal é o tempero que mais delicia os prazeres do povo do mundo do financismo. Enchem a boca para exigir sacrifícios dos outros e dos mais pobres. Os gastos orçamentários da União nas áreas sociais e dos investimentos seguem congelados por longos 20 anos. Os entes da federação, como Estados e Municípios, estão absolutamente estrangulados em tomar iniciativas para solucionar suas dificuldades por conta das ameaças constantes na LRF. A eterna ameaça de cassação de mandatos de prefeitos e governadores por desobediência às normas previstas nessa lei.
E agora o mantra da vez é a necessidade da Reforma da Previdência. Uma loucura! Onze em cada dez colunistas e “especialistas” ouvidos pelos grandes meios de comunicação responsabilizam a crise geral dos nossos tempos pela não votação das mudanças nas regras previdenciárias. E tudo isso por conta de uma suposta compressão da capacidade de recuperação da economia provocada pelo tal do descontrole das contas públicas. Os representantes do sistema financeiro martelam que a desgraça de nossos sucessivos PIBinhos se deve à ausência de votação dessa famosa reforma. Uma enganação!
Pois bem, mas de qual crise fiscal estariam eles falando? Em primeiro lugar, seria bom esclarecer que, em tese, o equilíbrio entre receitas e despesas nas contas públicas de um país é sempre recomendável. Ocorre que tudo começa de forma viesada no debate proposto pelo povo que se deixa dirigir pelos interesses da banca. Afinal, todos nós estamos cansados de ouvir “ad nauseam” a lenga-lenga relativa ao superávit primário. E aqui começa todo o malfeito. A tal da responsabilidade fiscal tão falada e sempre invocada se refere apenas e tão somente aos gastos sociais - educação, saneamento, previdência, pessoal, saúde, investimentos, etc. As despesas financeiras estão fora da conta e do esforço. O País pode gastar livre e solto os valores do Orçamento da União com juros da dívida, pois isso não seria um problema de acordo com essa abordagem que se diz séria e competente.
Cadê o trilhão que estava aqui?
Assim, por exemplo, os R$ 380 bilhões gastos em 2018 com esse tipo de rubrica dos juros realizados pelo governo federal não incomodam. Mas o torniquete se volta para as despesas “estruturalmente deficitárias” de um modelo de previdência que paga a fortuna de um salário mensal para 99% dos aposentados do campo e para quase 65% dos que se aposentaram depois de décadas de trabalho no ambiente urbano. Ou que dirige esse mesmo valor a idosos ou pessoas deficientes cujas famílias tenham uma renda per capita de ¼ do salário mínimo. Esses são os critérios que norteiam a prática desse tipo de responsabilidade fiscal.
Por outro lado, a menção recorrente ao fato de que o governo não tem recursos não se sustenta em pé. Basta olhar as contas da União junto ao Banco Central (BC). Ali estão registrados os valores líquidos que o Tesouro Nacional mantém junto àquele órgão. Sabe qual o valor disponível ali? O saldo positivo é superior a R$1 trilhão. Aliás, não por acaso, esse é o valor sobre o qual Guedes enche o peito orgulhoso de satisfação junto aos seus amiguinhos da confraria financeira. Diz ele que com a Reforma da Previdência, o governo faria uma economia de R$ 1 trilhão ao longo de 10 manos. E mantém um sorriso matreiro no rosto, pois esse esforço todo recairia apenas sobre os mais pobres. Ou seja, nem uma única palavra a respeito de imposto sobre grandes fortunas, taxação de lucros e dividendos nem outras generosidades a favor do grande capital. Qual a crise fiscal?
As contas da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) evidenciam que existe uma dívida tributária superior a R$ 1,5 trilhão a ser cobrada, em especial junto a grandes conglomerados industriais e empresariais. Qual a crise fiscal? As nossas reservas internacionais estão próximas a 380 bilhões de dólares, podendo o governo lançar mão de uma pequena parcela desse total para transformá-lo em instrumentos de financiar os investimentos tão necessários. Qual a crise fiscal?
A maior parte dos países capitalistas conseguiram superar a recessão imposta pela crise econômico-financeira, que se iniciou a partir da crise de 2008/9, a partir de mudanças nesses dogmas fiscalistas que só interessam ao sistema financeiro. Isso porque ficou claro para os articuladores das políticas econômicas nos Estados Unidos e no interior da União Europeia que a manutenção dos fundamentos do neoliberalismo em sua forma mais extremada não tiraria os seus países da crise. Assim, houve uma espécie de relaxamento dos entendimentos contra a presença do Estado na economia e uma certa flexibilização a respeito do conceito de rigor fiscal.
Flexibilizar a política fiscal
Essa transformação não foi fácil nem indolor. Afinal, haviam sido décadas de defesa arraigada dos preceitos do conservadorismo da ortodoxia que tiveram de ser deixados um pouco de lado. Economistas renomados, faculdades de referência e centros de pesquisa econômica de ponta, jornalistas e analistas de economia. Tudo isso passou a ser colocado em xeque a partir do momento em que a política fiscal dos EUA passou a ser expansionista - ó santa heresia! Tudo isso passou a ser reavaliado quando o governo norte-americano passou a injetar recursos que até então “não tinha” para estimular a atividade econômica e salvar grandes grupos empresariais em situação falimentar. Uma virada importante na pátria mãe do receituário da austeridade.
Mas como nós temos dificuldades em acompanhar algumas dessas inovações que ocorrem no âmbito das instituições que defendem a política econômica no mundo contemporâneo, ficamos para trás nesse debate. E nossas elites do financismo tupiniquim insistem no discurso que já ficou ultrapassado até mesmo no próprio centro do capitalismo atual. Essa coisa de imobilismo na economia por conta da suposta impossibilidade fiscal é um tremendo de um engodo. Essa ideia de comprimir gastos sociais e de investimento público com a enganação de que tal “gesto nobre” vai promover a retomada da economia não se sustenta em pé.
A questão fiscal, como os economistas heterodoxos não nos cansamos de escrever há muito tempo, tem que ser abordada como uma equação. Existem as despesas e as receitas. Não há razão para focar e insistir apenas no corte dos gastos. Ninguém da bancada da banca abre a boca para falar a respeito das alternativas de recuperação das fontes de receita, os tributos. Pelo contrário, não cessam de rosnar contra a suposta “carga tributária excessiva”. Mas reclamam de boca cheia, pois os setores do topo de nossa pirâmide de desigualdade são justamente os mais beneficiados por essa estrutura tributária regressiva. O sistema penaliza os mais pobres e isenta os mais ricos. Qual crise fiscal? Aquela onde os que mais têm renda e patrimônio nada recolhem aos cofres públicos, mas nos momentos de crise bradam contra as “injustiças” de um sistema público de saúde, educação e previdência social que oferece esse tipo de serviço públicos para a maioria da população.
Recuperar o protagonismo do Estado
A recuperação da atividade só será possível se o Estado recuperar seu papel preponderante como protagonista no processo econômico. Isso significa que deverá ser levada acabo uma flexibilização profunda nessa ortodoxia burra, que impede o PIB de voltar a crescer. O Brasil possui os meios para promover tal virada. O que se faz necessário é a vontade política de consolidar essa nova abordagem da questão da política econômica em geral e da política fiscal em particular.
E para comprovar que não se trata de elucubrações malucas de alguns bolivarianos desvairados, vale recordar aqui as recentes contribuições do economista André Lara Resende a essa discussão. O banqueiro e tucano está promovendo uma importante autocrítica a respeito dos equívocos cometidos ao longo das últimas décadas em nome dessa visão da ortodoxia. Além de considerar errada a estratégia de juros estratosféricos praticados desde sempre em nome de consertar os desequilíbrios da macroeconomia, o professor e intelectual tucano agora derruba as teses da “austeridade fiscal” a qualquer custo. No resto do mundo, essa abordagem ganhou a alcunha chique em inglês de “modern monetary theory” - MMT. Algo equivalente a teoria monetária moderna em nossa língua. Ainda vai dar muito no que falar. Aguardemos.
Para Resende, a obsessão canônica com o suposto excesso de endividamento público não se justifica. Nos momentos de crise, a sociedade espera do Estado justamente o contrário que do propõem Guedes e sua equipe. Trata-se daquilo que o economês chama de medidas contracíclicas. O setor público precisa adotar políticas de estímulo à atividade econômica, por via direta ou indireta. Mas qualquer uma delas implica em aumentar os gastos no curto prazo. Desse fenômeno não há como se escapar. Se isso significa uma elevação da dívida pública num primeiro momento, mais à frente tudo voltaria a se equaciona por conta dos frutos da retomada do crescimento. Esse é o único caminho capaz de prover receitas tributárias ao Estado. O atual superministro da economia sabe muito bem disso. Mas sua competência e seriedade estão voltadas tão somente para resolver os interesses da banca e não orientadas para solucionar os verdadeiros problemas do Brasil.
O debate está lançado. Afinal, qual crise fiscal?
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
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