quarta-feira, 17 de abril de 2019

Redes sociais e a lógica do poder

Por Frei Betto, no Correio da Cidadania:

Uma ob­ser­vação de Vol­taire (1694-1778) res­salta por que tantas pes­soas emitem ofensas nas redes digi­tais e, assim, re­velam mais a res­peito do pró­prio ca­ráter do que do perfil de quem é des­res­pei­tado. “Nin­guém se en­ver­gonha do que faz em con­junto”, es­creveu em “Deus e os ho­mens”.

Isso ex­plica a in­sa­ni­dade dos lin­cha­mentos vir­tuais e a vi­o­lência ge­rada pelo pre­con­ceito, como bem de­monstra o filme “In­fil­trado na Klan”, de Spike Lee, ven­cedor do Oscar de me­lhor ro­teiro adap­tado em 2019.

Muitos de nós ja­mais ofen­de­ríamos pes­so­al­mente um in­ter­lo­cutor com in­jú­rias e pa­la­vrões. No entanto, há quem seja capaz de re­plicar nas redes di­gi­tais ofensas a inú­meras pes­soas, sem se­quer se dar ao tra­balho de apurar se a in­for­mação pro­cede.

Ao ser hu­mano é dada a ca­pa­ci­dade de dis­cer­ni­mento, atri­buto que lhe per­mite o exer­cício da liberdade. Há, con­tudo, quem pre­fira ab­dicar desse di­reito de optar li­vre­mente. Pre­fere deixar que as de­ci­sões sejam to­madas pelo líder, guru ou mentor do grupo so­cial com a qual a pessoa se iden­ti­fica. Opta pela “ser­vidão vo­lun­tária”, na ex­pressão de La Boétie (1530-1563). E todos que não co­mungam o seu credo são con­si­de­rados ini­migos, he­reges ou trai­dores, e devem ser var­ridos da face da Terra.

Essa sub­missão de si à von­tade do outro ocorre em par­tidos po­lí­ticos, em­presas, as­so­ci­a­ções e, so­bre­tudo, em seg­mentos re­li­gi­osos. No caso de Igrejas, a do­mi­nação ide­o­ló­gica é le­gi­ti­mada pela su­posta von­tade de Deus ecoada pela voz do pastor ou do padre. Assim, di­funde-se uma pe­ri­gosa te­o­di­ceia pela qual tudo se ex­plica pela ló­gica di­vina, ainda que a hu­mana não con­siga di­geri-la.

Se há uma ca­tás­trofe como a de Bru­ma­dinho, se estou de­sem­pre­gado, se perco um filho atin­gido por bala “per­dida”, não devo pro­testar ou la­mentar. Deus tinha algo em mente para per­mitir que tais des­graças acon­te­cessem. Assim a te­o­di­ceia se trans­forma em pa­na­ceia.

É o re­curso da apatia como anes­tesia da cons­ci­ência. O exemplo pa­ra­dig­má­tico é o ex­ter­mínio das ví­timas do na­zismo. A ordem ge­no­cida não saía da ca­beça de um tres­lou­cado, e sim de quem tinha plena (e tran­quila) cons­ci­ência do que fazia, como de­mons­trou Hannah Arendt.

A ordem ini­cial se des­do­brava em sequência. Um di­rigia o ca­mi­nhão até o alo­ja­mento dos presos; outro os en­ca­mi­nhava ao veí­culo; outro or­de­nava se des­pirem e dis­tri­buía to­a­lhas e sabão; outro aper­tava o botão ver­melho; e, por fim, um grupo re­ti­rava os corpos da câ­mara de gás sem a menor ideia por que foram mortos. Pro­cesso con­fir­mado pela des­co­berta, em 1980, dos re­latos es­critos pelo grego Marcel Nad­jari e guar­dados no in­te­rior de uma gar­rafa tér­mica en­ter­rada no solo de Aus­chwitz, onde ele, pri­si­o­neiro, fazia parte do Son­der­kom­mando, a equipe que re­ti­rava os ca­dá­veres das câ­maras de gás (cf: https://​www.​bbc.​com/​por​tugu​ese/​int​erna​cion​al-​42193700).

Isso se re­pete hoje em ins­ti­tui­ções que con­trolam o mer­cado fi­nan­ceiro mun­dial, como o FMI e o Banco Mun­dial. Ao propor ajustes fis­cais, aus­te­ri­dade, teto de gastos a países pe­ri­fé­ricos, seus orá­culos não são mo­vidos por um sen­ti­mento de mal­dade para com povos que verão agra­vada sua si­tu­ação de po­breza. Eles se­guem a ló­gica do sis­tema: esses países to­maram di­nheiro em­pres­tado de cre­dores na­ci­o­nais e in­ter­na­ci­o­nais e, agora, pre­cisam honrar suas dí­vidas. Ainda que isso sig­ni­fique au­mento da mor­ta­li­dade in­fantil e do de­sem­prego.

Esta a ló­gica do poder, que nem sempre leva em conta os di­reitos dos su­bal­ternos. Isso vale para os casos de fe­mi­ni­cídio, nos quais o homem agride a mu­lher; dos ne­o­na­zistas que odeiam ne­gros e judeus; dos in­ter­nautas que vo­ci­fe­raram porque a Jus­tiça per­mitiu que Lula, pri­si­o­neiro, comparecesse ao se­pul­ta­mento do neto.

Como frisou Ba­che­lard (1884-1962), “quanta amar­gura há no co­ração de um ser que a do­çura corrói”.

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