Os 55 anos do golpe militar, pela violência que implicou, agora devidamente tirada a limpo pela Comissão Nacional da Verdade, não pode deixar nenhum cidadão consciente na indiferença. Importa assinalar claramente que o assalto ao poder foi um crime contra a Constituição e uma usurpação da soberania popular, fonte do direito num Estado democrático.
O primeiro Ato Institucional de 9/4/1964 alijou este princípio da soberania popular ao declarar que “a revolução vitoriosa como Poder Constituinte se legitima por si mesma”. Nenhum poder se legitima por si mesmo; só o fazem ditadores que pisoteiam qualquer direito. O golpe militar configurou uma ocupação violenta de todos os aparelhos de Estado para, a partir deles, montar uma ordem regida por atos institucionais, pela repressão e pelo Estado de terror.
Bastava a suspeita de alguém ser subversivo para ser tratado como tal. Mesmo detidos e sequestrados por engano como inocentes camponeses, para logo serem seviciados e torturados. Muitos não resistiram e sua morte equivale a um assassinato. Não devemos deixar passar ao largo, os esquecidos dos esquecidos que foram os 246 camponeses mortos ou desaparecidos entre 1964-1979. E agora está sendo descoberta a eliminação de muitos indígenas, tidos como empecilho ao crescimento econômico. Sobre alguns deles foram lançadas até bombas de napalm.
O que os militares cometeram foi um crime lesa-pátria. Alegam que se tratava de um estado de guerra, um lado querendo impor o comunismo e o outro defendendo a ordem democrática. Esta alegação não se sustenta. O comunismo nunca representou entre nós uma ameaça real pois qualquer manifestação neste sentido era brutalmente reprimida, não sem o apoio da CIA dos EUA.
Na histeria coletiva do tempo da guerra fria, todos os que queriam reformas na perspectiva dos historicamente condenados e ofendidos – as grandes maiorias operárias e camponesas – eram logo taxados de comunistas e de marxistas, como ocorre atualmente no atual regime no qual as palavras “comunista” e “cultura marxista” são usados como termos de acusação e vitupério, como se estivéssemos ainda no tempo da guerra fria de 30 anos atrás.
Bispos como o insuspeito Dom Helder Câmara, sacerdotes trabalhando nas favelas, religiosas nos fundões de nosso país, leigos e leigas, defensores dos ideais democráticos e dos direitos humanos, intelectuais notáveis foram submetidos a rigorosa vigilância Contra eles não cabia apenas a vigilância. Muitos sofreram a perseguição, a prisão, o interrogatório aviltante, o pau-de-arara feroz, os afogamentos desesperadores. Os alegados “suicídios” camuflavam apenas o puro e simples assassinato.
Em nome do combate ao perigo comunista, se assumiu a prática comunista-estalinista da brutalização dos detidos. Em alguns casos se incorporou o método nazista de incinerar cadáveres como admitiu o ex-agente do Dops de São Paulo, Cláudio Guerra.
Causa espanto e constitui até um problema filosófico a falta de remorsos que o coronel reformado Paulo Magalhães há tempos, manifestou à Comissão Nacional da Verdade de ter atuado na Casa da Morte de Petrópolis, de ter torturado, assassinado, mutilado cadáveres e ter ocultado o corpo do deputado Rubens Paiva.
Rudof Höss, comandante do campo de extermínio nazista em Auschwitz que segundo seus próprios cálculos em sua autobiografia (Kommandant in Auschwitz,1961) mandou para as câmaras de gás cerca de um milhão de judeus, também não mostrava nenhum arrependimento. Divertia-se atirando ao leu sobre os prisioneiros e chorava com uma criança ao chegar em casa ao saber que seu passarinho preferido havia morrido. É o mistério da iniquidade.
O Estado ditatorial militar, por mais obras que tenha realizado ( “o milagre econômico” foi apropriado apenas por 10% da população, pelos mais ricos, no quadro de um espantoso arrocho salarial), fez regredir política e culturalmente o Brasil. Expulsou ou obrigou ao exílio nossas mais brilhantes inteligências e nossos artistas mais criativos. Afogou lideranças políticas e ensejou o surgimento de súcubes que, oportunistas e destituídos de ética e de brasilidade, se venderam ao poder ditatorial em troca benesses que vão de estações de rádio a canais de televisão e de outros benefícios sociais. E muitos deles estão ai, politicamente ativos e ocupando até altos cargos da administração do Estado “democrático”.
Os que deram o golpe de Estado deveriam ser responsabilizados moralmente por esse crime coletivo contra o povo brasileiro, como vários juristas já o tem pedido. Os militares se imaginam que foram eles os principais protagonistas desta façanha nada gloriosa como ainda pensa o atual presidente Jair Bolsonaro. Na sua indigência analítica, mal suspeitam que foram, de fato, usados por forças muito maiores que as deles. Disse-o acertadamente Tarso Genro, ex-governador do Rio Grande do Sul, numa entrevista ao Boletim Carta Maior (30/3/2014): “O poder não foi apropriado diretamente pelos militares para eles próprios. Foi um projeto político dos setores mais conservadores e reacionários (burguesia nacional e os latifundiários) que tiveram nas forças armadas um apoio e um protagonismo muito grande”.
René Armand Dreifuss escreveu em 1980 sua tese de doutorado na Universidade de Glasgow com o título: 1964: A conquista do Estado, ação política, poder e golpe de classe (Vozes 1981). Trata-se de um livro com 814 páginas das quais 326 são cópias de documentos originais. Por estes documentos fica demonstrado: o que houve no Brasil não foi um golpe militar, mas um golpe de classe com uso da força militar.
A partir dos anos 60 do século passado, se formou o complexo IPES/IBAD/GLC. Explico: o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e o Grupo de Levantamento de Conjuntura (GLC). Compunham uma rede nacional que disseminava ideias golpistas, composta por grandes empresários multinacionais, nacionais, alguns generais, banqueiros, órgãos de imprensa, jornalistas, intelectuais, a maioria listados no livro de Dreifuss. O que os unificava, diz o autor “eram suas relações econômicas multinacionais e associadas, o seu posicionamento anticomunista e a sua ambição de readequar e reformular o Estado”(p.163) para que fosse funcional a seus interesses corporativos. O inspirador deste grupo foi o maquiavélico General Golbery de Couto e Silva que já em “em 1962 preparava um trabalho estratégico sobre o assalto ao poder”(p.186).
A conspiração pois estava em marcha, há bastante tempo. Aproveitando-se da confusão política criada ao redor da renúncia do Presidente Jânio Quadros e da obstinada oposição ao Presidente João Goulart, que propunha reformas de base e principalmente a reforma agrária, e por isso, tido como o portador do projeto comunista, este grupo viu a ocasião apropriada para realizar seu projeto. Chamou os militares para darem o golpe e tomarem de assalto o Estado. Foi, portanto, um golpe da classe dominante, nacional e multinacional, usando o poder militar.
Conclui Dreifuss: “O ocorrido em 31 de março de 1964 não foi um mero golpe militar; foi um movimento civil-militar; o complexo IPES/IBAD e oficiais da ESG (Escola Superior de Guerra) organizaram a tomada do poder do aparelho de Estado”(p. 397).
Especificamente afirma: ”A história do bloco de poder multinacional e associados começou a 1º de abril de 1964, quando os novos interesses realmente tornaram-se interesses do Estado, readequando o regime e o sistema político e reformulando a economia a serviço de seus objetivos”(p.489). Todo o aparato de controle e repressão era acionado em nome da Segurança Nacional que, na verdade, significava a Segurança do Capital.
O grande golpe de misericórdia ao regime ditatorial foi a publicação, patrocinada pelo Cardeal de São Pulo, Dom Paulo Evaristo Arns, do livro Brasil Nunca mais (1984), utilizando materiais de 770 processos militares completos com um volume de mais de um milhão de páginas. Ai, em fontes do próprio sistema. apareciam as barbaridades cometidas nos porões da ditadura.
Militares inteligentes e nacionalistas que os há hoje em dia, deveriam dar-se conta de como foram usados por aquelas elites oligárquicas e antipopulares que não buscavam realizar os interesses gerais do Brasil mas sim, alimentar sua voracidade particular de acumulação, sob a proteção do regime autoritário dos militares.
A Comissão Nacional da Verdade prestou um serviço esclarecedor ao país ao trazer4 à luz toda esta trama. Ela simplesmente está cumprindo sua missão de ser Comissão da Verdade. Não apenas da verdade de fatos individualizados de violência aos direitos humanos, mas da verdade do fato maior da dominação de uma classe poderosa, (anti)nacional, associada à multinacional, para, sob a égide do poder discricionário dos militares, tranquilamente, realizar seus objetivos corporativos e excludentes. Isso nos custou 21 anos de humilhação, de privação da liberdade, perpetrou assassinatos e desaparecimentos e impôs um oneroso padecimento coletivo. Esta classe atuou fortemente no impeachment da Presidenta Dilma Rousseff e foi um esteio fundamental na vitória de Jair Bolsonaro.
Por fim, cabe ouvir as palavras da advogada Rosa Cardoso, advogada e defensora da prisioneira política Dilma Rousseff e hoje integrante da Comissão Nacional da Verdade numa entrevista ao Boletim Carta Maior de 20/02/2014: ”Primeiro quero dizer que até hoje as Forças Armadas devem um pedido de perdão à sociedade brasileira, com o que estariam assumindo uma posição civilizada e democrática, que é, afinal de contas, o que se espera dos militares no século 21. Lamentavelmente, até agora, não recebemos nenhum sinal, nenhuma mensagem, que nos indique que haja algum desejo, por parte dos militares, de pedir desculpas e de fazer uma autocrítica política sobre seu comportamento”.
Esta dívida eles a têm para com todo o povo brasileiro. E deverão um dia saldá-la. Assistimos, envergonhados, no dia 31 de março de 2019, usando os serviços oficiais do Estado, a exibição de um vídeo, ordenado pelo atual Presidente Bolsonaro, exaltando o golpe de 1964. Antes havia baixado ordem que nos quartéis se celebrasse esse fato, tido pelos historiadores, como hediondo, o golpe de 1964.
O dia primeiro de abril de 2019, 55 anos do golpe civil-militar, é um dia de pranto e de luto pelas vítimas da repressão mas também dia de ânimo porque a truculência não pode sufocar o sentimento de dignidade nem abater os ideais democráticos que se firmam mais e mais em nossa consciência nacional.
Infelizmente ascendeu à Presidência em 2019 o ex-capitão Jair Bolsonaro. Ele desavergonhadamente exalta a memória do terrível torturador Ulstra, nos USA dedica tempo para visitar a CIA, agência de informação que tantos golpes orquestrou nos anos 60 e posteriores, na América Latina, no Chile, para espanto de toda sociedade chilena e do próprio presidente Piñera saúda o ditador Pinochet e em Israel de Netanhiau apoia a repressão da população palestina. Esta figura atropela a Constituição, usa as mídias digitais para difundir falsas notícias para alimentar ódio na sociedade, desrespeitando abertamente as leis. Como asseverou um magistrado do Rio de Janeiro Rubens R .R. Casara, vivemos num “Estado pos-democrático” e num “Estado sem lei” (títulos de dois livros seus, de 2018 e 2019).
Estamos na iminência de uma nova tomada do poder de Estado por forças militares, dada a degradação da política oficial, inerte, inoperante e totalmente confusa. Talvez nem quereriam assumir um Estado falido, mas as circunstâncias dramáticas da desorganização social, da entrega de bens comuns sociais que fundam a soberania, a grupos estrangeiros, da violência disseminada em toda a sociedade, se sintam forçados a isso.
Ninguém sabe para onde estamos indo. Parece que estamos num voo cego e sem rumo. Mas a nossa crença é que o Brasil é maior que sua atual crise. Tiraremos duras lições dela mas sairemos mais maduros, democráticos e amantes desta porção ridente e maravilhosa do planeta Terra que é o Brasil.
* Dedico este texto ao meu colega de seminário Arno Preis, cheio de fome de justiça e de liberdade, assassinado em Paraíso do Norte- GO no dia 15/2/1972.
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