Por Henrique Braga e Caroline Tresoldi, no site Brasil Debate:
Fazer mais uma nota sobre “O fim da história” pode até parecer fora de compasso. Qual interesse poderia despertar o ensaio de Francis Fukuyama, datado de 1989, bicentenário da Revolução Francesa, que foi criticado por todos os lados durante os anos de 1990?
Para tensionar essa questão, tomemos um exemplo de nosso cotidiano. Ao entrar num jogo do Flamengo nas últimas semanas, um psicólogo e professor universitário, trajado com uma camisa com os dizeres “Flamengo Antifascista”, foi barrado pelo fiscal do estádio – aquele que cuida para que objetos facilmente transformáveis em armas não entrem nos estádios. O fiscal fica na dúvida sobre o “perigo” que pode trazer a tal camisa. Ele aciona a gerência do estádio, que, também demonstrando incerteza sobre o “perigo”, convoca um sargento da Polícia Militar. Este último, do mesmo modo, não sabia ao certo se a camisa era permitida. A camisa foi considerada por todos como “suspeita”, porém, depois de interrogado, o torcedor conseguiu entrar no estádio e, na sequência, gravou um vídeo para registrar o desatino, que viralizou nas redes sociais. Ora, por que tanto receio?
Em seu ensaio sobre o fim da história, Fukuyama afirmou que a derrota do fascismo após a Segunda Guerra Mundial e a derrocada do socialismo no limiar do novo milênio colocavam o liberalismo como a ideia-força para organização político-econômica das sociedades. Não se tratava de dizer que não haveria mais acontecimentos e grandes eventos na história da humanidade, ou de argumentar que todas as sociedades eram, imediatamente, liberais na política e na economia. Outrossim, tratou-se de defender que a grande disputa ideológica característica do século 20 entre liberalismo, fascismo e comunismo havia acabado, triunfando, portanto, uma ideologia que afirmava a democracia liberal “ocidental” como forma política e a economia de mercado como organização econômica.
Mais ainda, na visão de Fukuyama, os problemas que eram atribuídos ao capitalismo (como a violência, a destruição ambiental, os desabrigados, as drogas etc.), não seriam resultados dos limites das democracias liberais, mas decorrentes das dificuldades de implementar os princípios liberais (notadamente, igualdade e liberdade). Em uma síntese, o liberalismo seria o “espírito” do tempo que conformava o sistema de crenças norteador da vida social, o destino da “evolução ideológica da humanidade”.
Passadas três décadas, a cena no Rio de Janeiro, que não deixa de ser um episódio local do avanço da extrema direita ao redor do globo, colabora para corrigir a tese de Fukuyama. Se, por um lado, o liberalismo econômico – agora em sua forma neoliberal – está mais forte do que nunca, circulando de forma hegemônica como o horizonte possível da produção material humana – basta lembrar a defesa intransigente do “ajuste fiscal” por todos os analistas de maior repercussão que são de um ou outro espectro político –; por outro lado, já não se pode dizer o mesmo do liberalismo político, haja vista que a democracia, em mais de uma pena, parece estar com os dias contados, entrando em seu lugar uma nova forma de autoritarismo – ainda que meio atabalhoado em estabelecer as regras do que pode e o que não pode.
Como alerta Achille Mbembe, o principal choque dessa primeira metade do século 21 deve ser entre o “governo das finanças” e uma velha ideia de “governo do povo”, já que a lógica interna do capitalismo financeirizado não tem demonstrado qualquer compatibilidade com os princípios que até então sustentaram a democracia liberal.
Esse processo é resultado do triunfo do liberalismo no final do século 20, uma vez que, junto com a “vitória avassaladora do capital sobre os movimentos operários” (a expressão é de Roberto Schwarz), estabeleceu-se um padrão de acumulação de capital que solapa a base material para a propagação dos ideais políticos liberais, tais como igualdade, liberdade e fraternidade, consagrados com a Revolução Francesa e rotinizados como os princípios modernos que todas as sociedades deveriam almejar. Conforme já apontou Robert Kurz em estudo sobre os processos de modernização nas sociedades “pós-catastróficas” (que se mobilizaram para o desenvolvimento industrial sem jamais alcançar os padrões dos países centrais), a nova situação do capitalismo é profícua em produzir seres humanos supérfluos, ou, mais precisamente, “sujeitos monetários sem dinheiro”.
Isso porque, se nosso pertencimento à sociedade passa pela transformação de nossa atividade (ou de nós mesmos) em mercadoria vendável, significa que somente nos reproduzimos se possuímos nossa parcela do trabalho social, que aparece na forma do dinheiro em nossos bolsos. Com isso, nos apropriamos de mais caso sejamos mais produtivos, pelo menos até o momento em que a produtividade elevada se torna o padrão de produção. Quando isso ocorre, somos novamente compelidos a ampliar a produtividade. Nessa dinâmica, a quantidade de trabalho abstrato por mercadoria cai, assim como o mais-valor nele incorporado, como observava o velho Marx.
Como resultado, temos um declínio, conforme sublinhou Moishe Postone, da produção de mais-valor ao longo do tempo, exigindo a transformação em mercadoria das mais diversas dimensões da vida humana – do cuidado ao amor, passando pelas “informações” produzidas por meio dos nossos celulares. O problema é que, com a revolução microeletrônica e as novas tendências da inteligência artificial, a expansão da produção de mercadorias não absorve a força de trabalho dispensada por essas tecnologias, tal como aconteceu após a Segunda Guerra Mundial, período no qual a expansão do padrão fordista de acumulação de capital não produziu o fenômeno do desemprego em massa – ao menos nos países centrais.
Em nosso caso, de um país que reitera de tempos em tempos o hífen histórico que liga centro e periferia, o desemprego tecnológico graça há muito por essas bandas, bastando lembrar a constatação de Celso Furtado sobre a dissociação entre indústria intensiva em capital e a força de trabalho brasileira durante a industrialização dos anos 1950. Ou mesmo a situação recente, em que a crise da dívida da década de 1980 e sua solução por meio do Plano Real redunda, somadas às mudanças globais, em um ajuste produtivo interno que, nos lembra Roberto Schwarz, joga por terra o projeto de constituição de uma Nação socialmente integrada e autônoma, no sentido de controle político (com participação popular, por certo) do processo produtivo interno. Resta, assim, um horizonte rebaixado para a vida social brasileira, liquidando com qualquer anseio de Nação. Os últimos anos reforçam este diagnóstico realizado no “fim do século”: é cada vez mais evidente que o “mercado” (essa entidade tão abstrata e ao mesmo tempo com agentes tão concretos) não é disponível para todos, restando uma desagregação sistemática e violenta da vida social.
Esse é, em larga medida, o caldo de cultura para a ascensão local e global de um novo tipo de autoritarismo (que ainda precisa ser melhor qualificado). Pois, diante do crescimento dos seres humanos inúteis, somente a política do controle, triagem e extermínio é capaz de manter a “economia de mercado” em funcionamento – uma política, vale notar, que ocorrerá de modo cada vez mais dramático em países que foram colônias.
Vemos esse processo em andamento no Brasil. A ideia-força que hoje está no poder em terras brasileiras está muito distante de ser o liberalismo nos moldes pensados por Fukuyama. É, antes, uma combinação entre políticas draconianas de redução dos custos da força de trabalho e de apropriação da renda do Estado combinadas com uma ideia política de que igualdade, liberdade e fraternidade não são mais do que devaneios juvenis – em tempo, o primeiro ensaio do livro mais vendido de Olavo de Carvalho é justamente contra o jovem como agente social. Trata-se, para de Carvalho e outros tantos, de recuperar o sagrado e a tradição e “cair na real”. Ou seja, é preciso se conformar com o “ser brasileiro”: exercer a violência política quando necessário, a segregação social sob diversas modulações e respeitar acima de tudo as hierarquias estabelecidas desde a colônia, porque desígnios divinos do que nós somos.
Nesse “novo” espírito do tempo, digamos que pensar diferente nos trópicos – “antifascista” ou qualquer outra forma considerada “mimimi” – é apenas desvio, que deve ser corrigido pela força. Assim, com diz Mbembe, a luz no fim desse túnel são os campos de concentração.
Fazer mais uma nota sobre “O fim da história” pode até parecer fora de compasso. Qual interesse poderia despertar o ensaio de Francis Fukuyama, datado de 1989, bicentenário da Revolução Francesa, que foi criticado por todos os lados durante os anos de 1990?
Para tensionar essa questão, tomemos um exemplo de nosso cotidiano. Ao entrar num jogo do Flamengo nas últimas semanas, um psicólogo e professor universitário, trajado com uma camisa com os dizeres “Flamengo Antifascista”, foi barrado pelo fiscal do estádio – aquele que cuida para que objetos facilmente transformáveis em armas não entrem nos estádios. O fiscal fica na dúvida sobre o “perigo” que pode trazer a tal camisa. Ele aciona a gerência do estádio, que, também demonstrando incerteza sobre o “perigo”, convoca um sargento da Polícia Militar. Este último, do mesmo modo, não sabia ao certo se a camisa era permitida. A camisa foi considerada por todos como “suspeita”, porém, depois de interrogado, o torcedor conseguiu entrar no estádio e, na sequência, gravou um vídeo para registrar o desatino, que viralizou nas redes sociais. Ora, por que tanto receio?
Em seu ensaio sobre o fim da história, Fukuyama afirmou que a derrota do fascismo após a Segunda Guerra Mundial e a derrocada do socialismo no limiar do novo milênio colocavam o liberalismo como a ideia-força para organização político-econômica das sociedades. Não se tratava de dizer que não haveria mais acontecimentos e grandes eventos na história da humanidade, ou de argumentar que todas as sociedades eram, imediatamente, liberais na política e na economia. Outrossim, tratou-se de defender que a grande disputa ideológica característica do século 20 entre liberalismo, fascismo e comunismo havia acabado, triunfando, portanto, uma ideologia que afirmava a democracia liberal “ocidental” como forma política e a economia de mercado como organização econômica.
Mais ainda, na visão de Fukuyama, os problemas que eram atribuídos ao capitalismo (como a violência, a destruição ambiental, os desabrigados, as drogas etc.), não seriam resultados dos limites das democracias liberais, mas decorrentes das dificuldades de implementar os princípios liberais (notadamente, igualdade e liberdade). Em uma síntese, o liberalismo seria o “espírito” do tempo que conformava o sistema de crenças norteador da vida social, o destino da “evolução ideológica da humanidade”.
Passadas três décadas, a cena no Rio de Janeiro, que não deixa de ser um episódio local do avanço da extrema direita ao redor do globo, colabora para corrigir a tese de Fukuyama. Se, por um lado, o liberalismo econômico – agora em sua forma neoliberal – está mais forte do que nunca, circulando de forma hegemônica como o horizonte possível da produção material humana – basta lembrar a defesa intransigente do “ajuste fiscal” por todos os analistas de maior repercussão que são de um ou outro espectro político –; por outro lado, já não se pode dizer o mesmo do liberalismo político, haja vista que a democracia, em mais de uma pena, parece estar com os dias contados, entrando em seu lugar uma nova forma de autoritarismo – ainda que meio atabalhoado em estabelecer as regras do que pode e o que não pode.
Como alerta Achille Mbembe, o principal choque dessa primeira metade do século 21 deve ser entre o “governo das finanças” e uma velha ideia de “governo do povo”, já que a lógica interna do capitalismo financeirizado não tem demonstrado qualquer compatibilidade com os princípios que até então sustentaram a democracia liberal.
Esse processo é resultado do triunfo do liberalismo no final do século 20, uma vez que, junto com a “vitória avassaladora do capital sobre os movimentos operários” (a expressão é de Roberto Schwarz), estabeleceu-se um padrão de acumulação de capital que solapa a base material para a propagação dos ideais políticos liberais, tais como igualdade, liberdade e fraternidade, consagrados com a Revolução Francesa e rotinizados como os princípios modernos que todas as sociedades deveriam almejar. Conforme já apontou Robert Kurz em estudo sobre os processos de modernização nas sociedades “pós-catastróficas” (que se mobilizaram para o desenvolvimento industrial sem jamais alcançar os padrões dos países centrais), a nova situação do capitalismo é profícua em produzir seres humanos supérfluos, ou, mais precisamente, “sujeitos monetários sem dinheiro”.
Isso porque, se nosso pertencimento à sociedade passa pela transformação de nossa atividade (ou de nós mesmos) em mercadoria vendável, significa que somente nos reproduzimos se possuímos nossa parcela do trabalho social, que aparece na forma do dinheiro em nossos bolsos. Com isso, nos apropriamos de mais caso sejamos mais produtivos, pelo menos até o momento em que a produtividade elevada se torna o padrão de produção. Quando isso ocorre, somos novamente compelidos a ampliar a produtividade. Nessa dinâmica, a quantidade de trabalho abstrato por mercadoria cai, assim como o mais-valor nele incorporado, como observava o velho Marx.
Como resultado, temos um declínio, conforme sublinhou Moishe Postone, da produção de mais-valor ao longo do tempo, exigindo a transformação em mercadoria das mais diversas dimensões da vida humana – do cuidado ao amor, passando pelas “informações” produzidas por meio dos nossos celulares. O problema é que, com a revolução microeletrônica e as novas tendências da inteligência artificial, a expansão da produção de mercadorias não absorve a força de trabalho dispensada por essas tecnologias, tal como aconteceu após a Segunda Guerra Mundial, período no qual a expansão do padrão fordista de acumulação de capital não produziu o fenômeno do desemprego em massa – ao menos nos países centrais.
Em nosso caso, de um país que reitera de tempos em tempos o hífen histórico que liga centro e periferia, o desemprego tecnológico graça há muito por essas bandas, bastando lembrar a constatação de Celso Furtado sobre a dissociação entre indústria intensiva em capital e a força de trabalho brasileira durante a industrialização dos anos 1950. Ou mesmo a situação recente, em que a crise da dívida da década de 1980 e sua solução por meio do Plano Real redunda, somadas às mudanças globais, em um ajuste produtivo interno que, nos lembra Roberto Schwarz, joga por terra o projeto de constituição de uma Nação socialmente integrada e autônoma, no sentido de controle político (com participação popular, por certo) do processo produtivo interno. Resta, assim, um horizonte rebaixado para a vida social brasileira, liquidando com qualquer anseio de Nação. Os últimos anos reforçam este diagnóstico realizado no “fim do século”: é cada vez mais evidente que o “mercado” (essa entidade tão abstrata e ao mesmo tempo com agentes tão concretos) não é disponível para todos, restando uma desagregação sistemática e violenta da vida social.
Esse é, em larga medida, o caldo de cultura para a ascensão local e global de um novo tipo de autoritarismo (que ainda precisa ser melhor qualificado). Pois, diante do crescimento dos seres humanos inúteis, somente a política do controle, triagem e extermínio é capaz de manter a “economia de mercado” em funcionamento – uma política, vale notar, que ocorrerá de modo cada vez mais dramático em países que foram colônias.
Vemos esse processo em andamento no Brasil. A ideia-força que hoje está no poder em terras brasileiras está muito distante de ser o liberalismo nos moldes pensados por Fukuyama. É, antes, uma combinação entre políticas draconianas de redução dos custos da força de trabalho e de apropriação da renda do Estado combinadas com uma ideia política de que igualdade, liberdade e fraternidade não são mais do que devaneios juvenis – em tempo, o primeiro ensaio do livro mais vendido de Olavo de Carvalho é justamente contra o jovem como agente social. Trata-se, para de Carvalho e outros tantos, de recuperar o sagrado e a tradição e “cair na real”. Ou seja, é preciso se conformar com o “ser brasileiro”: exercer a violência política quando necessário, a segregação social sob diversas modulações e respeitar acima de tudo as hierarquias estabelecidas desde a colônia, porque desígnios divinos do que nós somos.
Nesse “novo” espírito do tempo, digamos que pensar diferente nos trópicos – “antifascista” ou qualquer outra forma considerada “mimimi” – é apenas desvio, que deve ser corrigido pela força. Assim, com diz Mbembe, a luz no fim desse túnel são os campos de concentração.
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