quarta-feira, 8 de maio de 2019

A tradição autoritária dos nossos liberais

Por Alexandre Andrada, no site The Intercept-Brasil:

Como qualquer grande ideologia política, religiosa ou moral, o liberalismo é plástico o suficiente para ser usado por aproveitadores na defesa de princípios e políticas que são o exato oposto do pregado pelos grandes autores dessa ideologia.

No caso do Brasil, há uma longa tradição de liberais que usam de um suposto liberalismo para justificar toda sorte de ditaduras, de violações das liberdades individuais, desprezo pelos direitos humanos, de ojeriza aos pobres.

O que significa ser liberal? Do ponto de vista político, o liberal acredita no Estado Democrático de Direito. O liberal deve acreditar que a democracia – apesar de todos seus defeitos – é o melhor regime existente para resolver os problemas políticos da sociedade. Do ponto de vista econômico, o liberal acredita que o sistema de mercado é, via de regra, o melhor mecanismo possível para maximizar a produção de uma sociedade e de utilizar os fatores produtivos – capital, trabalho, terra, tecnologia – da forma mais eficiente possível.
Do ponto de vista filosófico, o liberal acredita que cada indivíduo é o melhor juiz de suas ações; que as pessoas são dotadas de um conjunto de “direitos naturais”, que lhes garante a liberdade de rezar para o Deus que quiserem, de dizer e produzir o que desejam etc.

Essas são ideias revolucionárias. Mas a humanidade também é capaz de transformar radicalismos em justificativas para a manutenção do status quo. De revolucionário, o liberalismo pode se tornar altamente reacionário.

E isso ocorreu no Brasil.

Um dos primeiros propagadores das ideias de Adam Smith em português foi um camarada chamado José da Silva Lisboa, mas conhecido como Visconde de Cairu. Em sua obra “Princípios de Economia Política”, publicada em 1804, Cairu “conseguiu a proeza de fabricar uma defesa econômica do absolutismo numa obra que se apresentava como peça de divulgação do liberalismo” econômico, como bem afirma Jorge Caldeira.

Enquanto Smith afirmava que “os reis são servos do povo, para serem obedecidos, resistidos, depostos ou punidos, conforme a conveniência do público exigir”, nosso Cairu invertia a lógica. Dizia o nosso liberal baiano: “O primeiro princípio de Economia Política é que o soberano de cada nação deve considerar-se como o chefe ou cabeça de uma vasta família”.

Cairu era amigo do rei.

Avançando mais de um século no tempo, nos deparamos com outro grande economista liberal brasileiro, o carioca Eugênio Gudin (1886-1986).

Gudin foi ministro da fazenda por alguns meses entre 1954 e 1955, mas ocupou o centro do debate econômico brasileiro desde os anos 1930. Ele foi o grande responsável por transformar a Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro no principal think tank do pensamento econômico liberal do Brasil. Ironicamente, foi da FGV-Rio de onde saíram grande parte dos economistas que guiaram a economia do país durante a ditadura militar.

Em artigo de 1952, Gudin parecia conformado em atestar a inferioridade do Brasil:

“Se a civilização ocidental se desenvolveu invariavelmente fora da zona tropical, se o clima constituiu sempre um fator capital do metabolismo orgânico do homem, com repercussão direta no desenvolvimento econômico… não há como negar que o desenvolvimento econômico é primordialmente função do clima, dos recursos da Natureza e do relevo do solo”.
Ao explicar a diferença de desenvolvimento entre Brasil e Argentina, Gudin afirmava que ela se devia “simplesmente porque o clima da Argentina é temperado, favorável à saúde humana e igual ao da Europa… [o que] lhe valeram… uma imigração europeia muito mais intensa do que a do Brasil, onde o clima é em grande parte tropical (…)”.

Para Gudin, portanto, “por maior que sejam o esforço e a tenacidade do Equador, ele não poderá atingir o grau de desenvolvimento possível ao Uruguai”.

Nos anos 1970, em coluna do jornal O Globo, Gudin se lamentava: “nós brasileiros temos que compreender que grande parte de nosso atraso… decorre do precário elemento humano que nos legaram os ancestrais ibéricos”. Enquanto os portugueses teriam vocação comercial, os italianos “que foram os maiores construtores da Argentina e do estado de São Paulo” teriam vocação industrial e agrícola.

Estávamos, pois, condenados ao atraso, seja pelo clima, seja pela herança portuguesa. Fica patente a visão que Gudin tinha do futuro do nordeste brasileiro: tropical e com baixa incidência de descendentes de europeus de origem não-portuguesa.

Com o golpe de 1964, duas estrelas do liberalismo econômico brasileiro assumiram as rédeas da economia: Octávio Bulhões e Roberto Campos.

Campos é amplamente louvado por “liberais” do Livres, do MBL, por Rodrigo Constantino, do Partido Novo como um exemplo de defensor do livre mercado, do progresso, das virtudes.

Pois bem. Em 1972, com o país sob o jugo do AI-5, Campos afirmava que eram óbvias as “vantagens da disciplina social e da coesão governamental” e que com “a crescente popularização da Revolução (sic)” – graças às fortes taxas de crescimento verificadas desde 1968 – “nosso autoritarismo assume cada vez mais as feições de um ‘autoritarismo consentido’”.

Sim. É essa expressão que Roberto Campos usava: “autoritarismo consentido”. Vale um tratado de filosofia – ou algumas horas de conversa com um bom psicanalista.

Campos estava disposto a trocar um pouquinho de liberdade política (dos outros, diga-se, afinal ele era da “turma” do regime), por um pouquinho mais de crescimento econômico.

“Alguns países, dos quais o Brasil constitui um bom exemplo, (…) vieram a perceber que só através de medidas autoritárias e impopulares, visando eliminar os subsídios aos consumidores, impor a contenção salarial e a disciplina fiscal, é que poderia ser reabilitada a economia e recolocada no caminho da expansão. Isso exigiu medidas de restrição ao mecanismo distributivo e diminuição dos confrontos eleitorais”.
Essa visão, aliás, de que é preciso um governo autoritário para fazer as reformas, é o motivo pelo qual os economistas saídos de Chicago, berço do liberalismo econômico no mundo todo, circulavam com galhardia por entre os coturnos de militares no Brasil, no Chile e alhures. Não é isso que explica que supostos liberais – sejam os adolescentes dos movimentos da internet, sejam velhacos saídos do mercado financeiro e de Chicago – defendem o governo de um certo capitão que a vida toda demonstrou total desprezo pela democracia e também pelo liberalismo econômico.
As raízes do liberalismo-conservador-autoritário são profundas em nosso país.

Como pode um liberal defender um capitãozinho que defende as milícias, a tortura, que se desmancha quando fala de algum ditador sanguinário e pedófilo, que é homofóbico, xenófobo, que diz para uma colega deputada “não te estupro porque você não merece”? Que tipo de liberal é esse que produzimos?

São os liberais-conservadores-autoritários, são os que usam palavras bonitas como liberdade para ludibriar incautos. Eles querem liberdade para eles apenas, ainda que isso implique em chibata para a malta descamisada, ainda que isso signifique trevas políticas.

As raízes do liberalismo-conservador-autoritário são profundas no Brasil. Portanto, quando alguém disser “sou liberal”, é bom tomar cuidado. Certifique-se a qual subgênero ele pertence.

Mesmo cuidado que se deve ter quando alguém diz ser “cristão” ou de “esquerda”. Você pode estar diante da Madre Teresa ou de um pastor bilionário que engana otário; você pode estar diante de um ciclista-vegano-progressista ou de um adorador de Stálin.

Nunca confie nos rótulos. Leiam sempre as letras miúdas da bula.

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