quinta-feira, 30 de maio de 2019

Modernização neoliberal e trabalho forçado

Por Carlos Drummond, na revista CartaCapital:

Há décadas várias organizações internacionais divulgam recordes seguidos de aumento da desigualdade que, provavelmente por ter assumido características de um problema crônico, suscita perguntas a respeito de eventuais efeitos acumulados das diferenças cada vez mais extremadas entre ricos e pobres. Sabe-se que o abismo atual de renda e de condições de vida e trabalho tem a mesma profundidade daquele existente no fim do século XIX, mostram as estatísticas analisadas em numerosos estudos econômicos, mas o que terá acontecido com as sociedades submetidas ao efeito combinado de concentração de renda, precarização do trabalho, globalização e intensificação do movimento migratório?

Segundo Sighard Neckel, do Instituto de Sociologia da Universidade de Hamburgo, na Alemanha, em muitas sociedades modernas está em andamento uma transformação da própria desigualdade social, com o surgimento de privilégios “neofeudais” para os ricos, enquanto as classes pobres enfrentam a exclusão e o retorno do trabalho forçado. Os achados do pesquisador estimulam a se pensar um mundo complexo, diante do qual as categorias convencionais de análise parecem insuficientes.

Neckel recorre a uma figura utilizada pelo também alemão Jürgen Habermas para classificar essa transformação como uma “refeudalização” do capitalismo moderno, que ele próprio explica como um modo paradoxal de mudança social que leva a padrões sociais pré-modernos como um resultado da modernização. “Uma mudança está em andamento em muitos setores da sociedade, que vê emergir novamente hierarquias e estruturas de poder pré-modernas na esteira de uma modernização neoliberal da economia e da empresa, não como um retorno aos tempos antigos, mas como resultado paradoxal das transformações sociais que recriam o antigo como novo e que, ao fazê-lo, produzem modos “neofeudais” de distribuição da riqueza, reconhecimento e poder”, disparou Neckel em conferência durante um encontro da Sociedade Suíça de Sociologia, na Universidade de Lausanne.

Do ponto de vista da transformação social, explicou o sociólogo, a refeudalização materializa um processo muito mais complexo do que um retorno ao passado. A mudança de estrutura em questão, diz, é o resultado de um processo de modernização paradoxal, no quadro do qual são restabelecidas estruturas sociais que têm suas origens nas épocas pré-burguesas da história da sociedade: “Eu considero a refeudalização como um exemplo de mudança social que diz respeito a uma modernização paradoxal no coração do capitalismo moderno. Ele não leva direto ao passado, mas designa uma dinâmica social contemporânea que realiza a modernização como uma renúncia às máximas da ordem social burguesa”.

Nos últimos 20 anos, prossegue, várias formas de refeudalização emergiram em muitos países capitalistas. Esse desenvolvimento traduz-se em vantagens significativas concedidas sem contrapartida para as elites, que se beneficiam de uma oportunidade de enriquecimento única na história, enquanto as camadas inferiores não só empobreceram como também se viram cada vez mais expostas a condições de trabalho que não correspondem mais aos padrões modernos elementares em matéria de relações contratuais.

As novas arrumadeiras que estão à procura de emprego nos mercados globais, exemplifica Neckel, estão presas a diferentes situações de dependência pessoal em relações de trabalho e de exploração, sem contrato ou estabilidade, que favorecem a violência e a coerção sexual. Seu trabalho é frequentemente realizado de maneira invisível na esfera privada de seu empregador, em cujas famílias essas mulheres vivem privadas de qualquer liberdade de movimento. “Em especial no gigantesco segmento profissional de cadeias globais de cuidados pessoais, em que as mulheres estão deixando seus países mais pobres de origem para fazer trabalho doméstico nos países mais ricos, a relação de trabalho transformou-se em relação de dependência pessoal, o que é um recuo diante de todo o progresso da sociedade moderna em termos do reconhecimento de direitos e reenvia as mulheres em questão às relações de dominação neofeudal”, dispara o sociólogo.

Há ainda o trabalho forçado entre “a enorme multidão de trabalhadores industriais itinerantes, particularmente na Ásia, na África e em alguns países sul-americanos.

Pesquisas sociológicas estimam que entre 30 milhões e 35 milhões de seres humanos vivam hoje em condições de violência e privação de direitos próximos à escravidão. A Organização Internacional do Trabalho estimou, em 2014, que 21 milhões são vítimas de trabalho forçado no mundo e presume que o número real daqueles nesta situação é realmente muito maior e que proporcionam aos seus senhores um lucro de cerca de 150 bilhões de dólares por ano.

“Estimulados pela globalização e os fluxos migratórios, o trabalho forçado e o tráfico de seres humanos, formas extremas de exploração, assim como outras maneiras modernas de servidão por dívida, também são encontrados nos países ocidentais. A indústria da carne, a mineração de carvão, a construção, os cuidados domésticos, as tarefas básicas ou o setor agrícola sob a égide de empresas ocidentais mantêm formas subempresariais caracterizadas por ausência de direitos e controle pessoal das relações de trabalho, em ruptura com todos os padrões modernos de liberdade legal”, dispara Neckel.

No campo das tarefas elementares, diz, constata-se “uma desqualificação do proletariado de serviço que conhecíamos até agora. Este último tende a se transformar em local de despejo da moderna sociedade do trabalho, em que os salários não permitem mais assegurar sua própria subsistência e são privados de qualquer forma de segurança social, qualificação profissional e ascensão, que é também a base das relações de trabalho modernas. Há uma completa falta de oportunidade para esses trabalhadores extremos que representam um retorno às formas de categorias sociais de baixo status, como as conhecíamos no período pré-industrial”.

Enquanto o retorno ao trabalho forçado e a uma precariedade forte e permanente representa as formas mais negativas de refeudalização na parte mais vulnerável da hierarquia social, destaca Neckel, uma nova oligarquia de riqueza desenvolveu-se no topo da estrutura social, favorecendo um crescimento patrimonial único na história. Essa opulência sem precedentes, diz, não pode ser explicada por princípios econômicos modernos, como performance ou mérito, concorrência ou sucesso comercial, como seria o caso em uma ordem social capitalista e burguesa, mas por estratégias de proteção dos privilégios, cujas origens remontam à era pré-capitalista.
“Nos Estados Unidos, por exemplo, em meados da década de 1960, a proporção entre os rendimentos dos presidentes ou CEOs das empresas e os salários médios era de 20 para 1. Em 2012, essa proporção elevou-se para 273. Na Alemanha, em 1989, os diretores das 30 maiores empresas cotadas em Bolsa receberam um salário anual que correspondeu na época a 20 vezes o salário médio dos empregados. Em 2010, as receitas anuais dos administradores totalizaram 6 milhões de euros, um valor 200 vezes superior aos salários médios dos empregados. Se procurarmos as razões para esses ganhos gigantescos, constataremos que nenhum fator econômico isolado permite relacionar a explosão da remuneração da alta administração a um aumento significativo no desempenho de seus representantes, que teria levado a um aumento súbito na sua produtividade. Ao contrário, os maiores rendimentos são a expressão do aumento de poder no interior das diretorias e dos conselhos de administração das sociedades anônimas, o que permite subtrair mais renda das empresas, e não o resultado de uma contribuição excepcional para o desempenho destas”, fulmina Neckel.

Uma atividade no mercado, analisa o pesquisador, está sempre ligada à incerteza quanto a saber se o engajamento será bem recompensado e a concorrência é capaz de frustrar as perspectivas de lucro e anular as receitas esperadas, portanto, a opção mais segura e vantajosa é sempre garantir a renda sem se preocupar com os concorrentes. As classes superiores da sociedade dispõem de numerosas possibilidades de obter as mais altas rendas sem risco nem competição. As posições estatutárias dos grupos favorecidos na administração, nos conselhos de administração e em outros órgãos de administração econômica, por exemplo, dão a eles a oportunidade de obter vários privilégios, na forma de remuneração direta, descontos, bônus garantidos ou direitos à aposentadoria.

Outros fatores de refeudalização que não se enquadram no arsenal histórico dos privilégios feudais são diretamente de natureza política. O tratamento preferencial sem precedentes concedido a uma classe opulenta e globalizada, cujos rendimentos gigantescos provêm principalmente dos mercados financeiros, é o resultado de uma espécie de economia movida a doações feitas pelo Estado aos ricos, explica Neckel: “Na maioria dos países ocidentais, bilhões foram dados de presente nos últimos 20 anos na forma de enormes cortes de impostos sobre a renda do capital, heranças e altos salários. A política neoliberal de redução de impostos para os ricos, para as empresas e bancos sob seu controle deve-se principalmente ao fato de que os grupos sociais ricos conseguiram, no plano político, por causa de seu poder econômico, dispor de um direito efetivo de veto sobre qualquer obstrução aos seus interesses econômicos”.

O economista Thomas Piketty, diz Neckel, mostrou que os 10% mais ricos da população têm de 80% a 90% da riqueza global e do retorno de um “capitalismo patrimonial” baseado na hiperconcentração do capital nas mãos de uma nova classe oligárquica rica. Segundo Piketty, a sociedade patrimonial de hoje contribui para o desenvolvimento de estruturas dinásticas de poder econômico, nas quais a herança e o casamento desempenham um papel essencial novamente, e onde se apossar de um patrimônio elevado traz regalias que os estudos e o trabalho não podem alcançar. “À luz de uma perspectiva histórica de longo prazo, um dos paradoxos dessa mudança social é que, hoje, o segmento mais rico de uma burguesia econômica, tendo obtido sua prosperidade e influência por meio do mercado e da competição na era capitalista, busca, como a aristocracia de outrora, fortalecer sua própria posição pelos mesmos meios de extração de renda e do poder dinástico herdado.

Os grandes donos de capital formam com os investidores ricos nos mercados financeiros e a elite da administração das empresas uma classe fechada e corporativa. Sua posição dominante nos processos econômicos da globalização e do capitalismo financeiro é tributária de uma refeudalização do capitalismo moderno e, portanto, do paradoxo de um desenvolvimento social reverso. Essa posição econômica neofeudal está ligada ao crescimento de seu poder político nas pós-democracias atuais – um poder político que as classes superiores usam, em particular, para defender seus interesses econômicos. E essa união de poder econômico e poder político nas mãos da nova oligarquia opulenta remete a um tipo de formação de classe pré-moderna em que a separação das esferas da política e do mercado, do direito e da economia ainda não ocorreu.”

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