Muro grafitado na Brasilândia, em São Paulo. Foto: AFP |
O grito: vagabundo!, numa voz feminina, fez soar o alarme. Olhei, era um xingamento da mãe de um dos garotos do Sub-11 do Botafogo de Ribeirão Preto, em jogo amistoso contra o rival Comercial, na casa do adversário. Pais torciam pelo time dos filhos como se disso dependessem suas vidas. A manhã de domingo estava fria e ensolarada, e eu me encontrava ali com meu neto, selecionado numa “peneira” do “Fogo” .
Fim da partida, Botafogo 2, Comercial 0. Encostado no alambrado, dentro do campo, uniforme oficial do time vencedor, um técnico conversava com um pai e uma avó ao meu lado, do lado de fora. Ouvi o tom de zombaria e sintonizei: “Estão melhorando, agora têm até chuveiro no vestiário”, dizia o bonitão, desclassificando o time adversário. Me intrometi: “Não concordo com deboche, é desensinamento pras crianças. Não pode respeitar o oponente?”, perguntei. “É assim, sempre foi assim”, respondeu, e saiu andando orgulhoso, mas meio desnorteado.
Agora os olhares são atraídos por duas jovens técnicas, únicas figuras femininas em campo. “Essa aí é forte, não?”. Olhei: um senhor. E então uma suave voz de menina: “Ave, vô!!!…” Lute como uma menina, pensei.
Com essas cenas, penso nas mudanças em operação na cultura masculina reinante nos estádios de futebol a partir da maior presença feminina em espaços até aqui legitimados como hegemonicamente masculinos.
As atitudes ali aprendidas e naturalizadas por torcedores, jogadores e jornalistas esportivos seriam inquestionáveis, assim como inquestionáveis seriam as representações que, do alto de sua autoridade, eles produzem sobre as mulheres que atuam nesses espaços.
O estudo Representações sobre mulheres nos estádios de futebol, dos pesquisadores Gustavo Andrada Bandeira e Fernando Seffner, doutores em educação pela UFRGS, contudo, aponta para a mudança.
“Tomando a construção das masculinidades e feminilidades como complementares e não como polos opostos, uma maior legitimação da participação das mulheres poderia desestabilizar esse lugar naturalizado dos homens no futebol. Esse é um jogo que parece estar ainda em seu começo, mas parece que é bastante visível que elas virão jogá-lo! Quem será capaz de imaginar que as mulheres não tomarão para si a possibilidade de produzir discursos e representações sobre sua participação no contexto futebolístico?”, perguntam eles.
As argentinas que furam a vigilância e entram nos estádios com pañuelos verdes, símbolos da campanha pelo direito ao aborto, são uma resposta a essa pergunta, pelo lado da torcida. Como aqui as Todas Poderosas Corintianas, carregando seus filhos pela Gaviões da Fiel.
Mas no campo é que estão as grandes histórias. Como a de Formiga, que quando menina fugia dos irmãos para poder brincar com a bola nos pés e agora, aos 41 anos, disputa na França a sétima Copa do Mundo – mas ainda não recebeu reconhecimento por isso. Ou árbitras como Lea Campos, que pularam barreiras e sofreram violência e preconceito. Foram décadas de luta até o Brasil poder ver a 8ª Copa do Mundo de Futebol Feminino que começa essa sexta-feira (7/6), na França, com transmissão da TV aberta.
A hora é essa. Mas, recordemos, o campo ainda é minado e contagia crianças e mulheres, como se vê pela mãe do colega sub-11 do meu neto.
“Nascido nas public school inglesas e com origem aristocrática, o futebol se converteu em uma prática multiclassista, transgeneracional e, potencialmente, transgenérica (FIENGO, 2003). Apesar dessa potencialidade de ser uma prática para gêneros distintos, ainda existem hierarquias bastante marcadas com conteúdos específicos, abordando não apenas a predominância da masculinidade como representação legítima no espaço do futebol de espetáculo, como limitando as possibilidades de vivências dessa masculinidade”, consideram os pesquisadores Gustavo e Fernando.
Como agora, no nebuloso caso Neymar, vários jogadores são tristes exemplos da masculinidade tóxica ainda dominante.
Memória
A ocupação feminina de áreas tradicionalmente masculinas, a reorganização dos papeis de gênero nos novos modelos de família e a emergência dos novos atores LGBTs vieram tensionar as velhas formas de “ser homem e ser mulher”.
Décadas de luta para desconstruir as qualidades atribuídas como essenciais aos gêneros pelo poder patriarcal ganharam musculatura e levaram as mulheres a conquistar novos campos no esporte, do futebol ao ringue. Sua presença desestabiliza e transforma o universo esportivo, tradicionalmente masculino, por mais que as regras e a legislação tentem conter qualquer transformação. Mas ainda temos à frente uma corrida de obstáculos contra as pechas de anormalidade e subalternidade atribuídas aos diferentes – mulheres, negras em particular, e LGBTs.
O futebol foi proibido às mulheres de meados de 1940 até 1979, sendo a liberação certamente influenciada pela segunda onda do feminismo. As mulheres não poderiam jogar futebol porque seus corpos eram preparados pela natureza para a maternidade – e uma pancada no ventre poderia deixá-las inférteis. O “sexo frágil” não aguentaria prática tão intensa. Seu corpo ficaria “masculinizado”, perdendo as desejáveis curvas da feminilidade. As atletas provavelmente se tornariam homossexuais, rompendo com a heteronormatividade dominante.
As pioneiras driblaram os obstáculos, não sem grandes custos psíquicos e profissionais. Um deles foi a hipersexualização dos corpos das jogadoras pela imprensa esportiva, como reação ao corpo atlético feminino. Em 2001, a Federação Paulista de Futebol no Campeonato Estadual (FPF) proibiu a participação de jogadoras de cabelos curtos na competição. O objetivo era atrair o público masculino – e lucrar com isso, como sempre faz o mercado ao invocar o corpo feminino como objeto sexual.
“Era ridículo, era vexatório, era feio. Era o esporte de homens, masculinizava e todas aquelas coisas. Levamos muita bordoada, muito pau. Muito xingamento”, recorda uma atleta em entrevista às pesquisadoras Caroline Almeida, graduada em Educação Física, e Mariane Pisani, em Ciências Sociais, ambas doutoradas em Antropologia Social pela UFSC. Em seu estudo, Carreiras e profissionalismo de futebolistas brasileiras após a regulamentação do Futebol Feminino no Brasil, elas citam pesquisas como As mulheres também são boas de bola: histórias de vida de jogadoras baianas (1970 – 1990), que busca romper com o silenciamento de jogadoras da região de Feira de Santana, elaborada por Enny Vieira de Moraes, graduada em Educação Física pela UFA e doutora em História Social pela PUC-SP.
“A autora trabalha com a ideia de que a história do futebol praticado por mulheres no Brasil esteve marcada por formas sequenciais de violências: violência simbólica, no que tange ao silenciamento/esquecimento dessa modalidade; violência pela falta de incentivos/investimentos; e violência por serem extremamente cobradas por bons resultados mesmo existindo essas dificuldades. A luta para ganhar esse espaço, considerado tão masculino no país, e mostrar uma outra proposta de futebol atinge uma dimensão política que irá fazer com que cada futebolista que tenha atuado nesse período [pós-regulamentação] venha a carregar o mesmo “fardo” em suas trajetórias individuais e coletivas (Velho, 2003)”.
Uma mulher, ainda que criança, num campo de futebol, disputando em igualdade com os homens com habilidade com a bola, ainda causa estranheza e desconforto, pois sua presença desconstrói e desloca esse lugar de legitimação de uma certa masculinidade nos estádios. Até ontem associada à passividade, fragilidade e subalternidade, ela aparece exibindo um corpo atlético, correndo atrás da bola, gritando com as companheiras e adversárias, competindo e disputando.
Em boa hora, a presença nas telas das TVs brasileiras das atletas do futebol feminino, brasileiras e de outras 20 e tantas nacionalidades, biótipos, tons de pele, durante um mês, concorre para a desestabilização das noções de masculino e feminino no senso comum. Especialmente bem-vinda nesses tempos de guerra aos estudos de gênero em que, recomendam, meninas devem vestir rosa e meninos, azul.
A ocupação feminina de áreas tradicionalmente masculinas, a reorganização dos papeis de gênero nos novos modelos de família e a emergência dos novos atores LGBTs vieram tensionar as velhas formas de “ser homem e ser mulher”.
Décadas de luta para desconstruir as qualidades atribuídas como essenciais aos gêneros pelo poder patriarcal ganharam musculatura e levaram as mulheres a conquistar novos campos no esporte, do futebol ao ringue. Sua presença desestabiliza e transforma o universo esportivo, tradicionalmente masculino, por mais que as regras e a legislação tentem conter qualquer transformação. Mas ainda temos à frente uma corrida de obstáculos contra as pechas de anormalidade e subalternidade atribuídas aos diferentes – mulheres, negras em particular, e LGBTs.
O futebol foi proibido às mulheres de meados de 1940 até 1979, sendo a liberação certamente influenciada pela segunda onda do feminismo. As mulheres não poderiam jogar futebol porque seus corpos eram preparados pela natureza para a maternidade – e uma pancada no ventre poderia deixá-las inférteis. O “sexo frágil” não aguentaria prática tão intensa. Seu corpo ficaria “masculinizado”, perdendo as desejáveis curvas da feminilidade. As atletas provavelmente se tornariam homossexuais, rompendo com a heteronormatividade dominante.
As pioneiras driblaram os obstáculos, não sem grandes custos psíquicos e profissionais. Um deles foi a hipersexualização dos corpos das jogadoras pela imprensa esportiva, como reação ao corpo atlético feminino. Em 2001, a Federação Paulista de Futebol no Campeonato Estadual (FPF) proibiu a participação de jogadoras de cabelos curtos na competição. O objetivo era atrair o público masculino – e lucrar com isso, como sempre faz o mercado ao invocar o corpo feminino como objeto sexual.
“Era ridículo, era vexatório, era feio. Era o esporte de homens, masculinizava e todas aquelas coisas. Levamos muita bordoada, muito pau. Muito xingamento”, recorda uma atleta em entrevista às pesquisadoras Caroline Almeida, graduada em Educação Física, e Mariane Pisani, em Ciências Sociais, ambas doutoradas em Antropologia Social pela UFSC. Em seu estudo, Carreiras e profissionalismo de futebolistas brasileiras após a regulamentação do Futebol Feminino no Brasil, elas citam pesquisas como As mulheres também são boas de bola: histórias de vida de jogadoras baianas (1970 – 1990), que busca romper com o silenciamento de jogadoras da região de Feira de Santana, elaborada por Enny Vieira de Moraes, graduada em Educação Física pela UFA e doutora em História Social pela PUC-SP.
“A autora trabalha com a ideia de que a história do futebol praticado por mulheres no Brasil esteve marcada por formas sequenciais de violências: violência simbólica, no que tange ao silenciamento/esquecimento dessa modalidade; violência pela falta de incentivos/investimentos; e violência por serem extremamente cobradas por bons resultados mesmo existindo essas dificuldades. A luta para ganhar esse espaço, considerado tão masculino no país, e mostrar uma outra proposta de futebol atinge uma dimensão política que irá fazer com que cada futebolista que tenha atuado nesse período [pós-regulamentação] venha a carregar o mesmo “fardo” em suas trajetórias individuais e coletivas (Velho, 2003)”.
Uma mulher, ainda que criança, num campo de futebol, disputando em igualdade com os homens com habilidade com a bola, ainda causa estranheza e desconforto, pois sua presença desconstrói e desloca esse lugar de legitimação de uma certa masculinidade nos estádios. Até ontem associada à passividade, fragilidade e subalternidade, ela aparece exibindo um corpo atlético, correndo atrás da bola, gritando com as companheiras e adversárias, competindo e disputando.
Em boa hora, a presença nas telas das TVs brasileiras das atletas do futebol feminino, brasileiras e de outras 20 e tantas nacionalidades, biótipos, tons de pele, durante um mês, concorre para a desestabilização das noções de masculino e feminino no senso comum. Especialmente bem-vinda nesses tempos de guerra aos estudos de gênero em que, recomendam, meninas devem vestir rosa e meninos, azul.
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