Por Helder Lara Ferreira Filho e José Luis da Costa Oreiro, no site Brasil Debate:
Na visão de Tirole, no entanto, os planos de Macron esbarrariam em alguns obstáculos. Para começar, os “Coletes Amarelos” querem a redução da tributação e, também, a ampliação dos serviços públicos. Para o economista, algo que não seria possível num país que possui uma despesa pública de 57% do PIB e uma dívida pública próxima de 100% do PIB. Além disso, os “Coletes Amarelos” reclamam da desigualdade, focando na eliminação recente do imposto sobre riqueza – que representava cerca de cinco bilhões de euros anuais ao governo.
Para Tirole, isso seria irrelevante perto dos 188 bilhões de euros arrecadados com o Imposto de Valor Adicionado (IVA) francês, e se comparado a outros fatores explicativos da desigualdade (educação e acesso ao mercado de trabalho, para ele). Adicionalmente, Tirole alega que há uma percepção equivocada da opinião pública sob alguns assuntos econômicos, como, por exemplo, que a tributação privilegia os mais ricos. Por fim, o autor considera que parte da solução deveria ser avaliar o propósito de cada serviço público, sua relação custo-benefício e se há melhores alternativas – o que os canadenses ou os escandinavos teriam feito nos anos 1990, quando enfrentavam elevação da dívida pública e alto desemprego.
Toda essa situação soa de alguma forma familiar? Pois é, em 2013, o Brasil também observou suas próprias manifestações populares, com múltiplas demandas por parte dos manifestantes – a não elevação da tarifa de ônibus, a realização de uma reforma política, a melhoria da qualidade e a expansão dos serviços públicos, dentre vários outros. A então presidente Dilma Rousseff, ao ser surpreendida com esses grandes movimentos populares, optou por convocar um pacto nacional sob cinco aspectos (Globo, 2013): responsabilidade fiscal, reforma política, saúde, transporte e educação. Como se sabe, a estratégia de Dilma não se mostrou exitosa – o que até poderia servir de alerta para Macron, que seguiu uma estratégia similar, como salientado anteriormente. Portanto, assim como na França, parte da população brasileira também reivindicou, em última instância, a redução da carga tributária e, concomitantemente, a melhoria/ampliação dos serviços públicos. Isto pode parecer uma incongruência, como indicado por Tirole, ou dito de outra maneira, um aparente paradoxo. Mas será que o é, realmente?
Vejamos, primeiramente, o caso francês. Para Tirole, o imposto sobre riqueza que fora extinto gerava valores pouco significantes no orçamento anual francês e há outros fatores mais importantes para explicar a desigualdade. Além disso, haveria uma percepção equivocada da população que a estrutura tributária francesa privilegia os mais ricos. O primeiro argumento não justifica a extinção do tributo, por si só. O tributo sobre a riqueza tem o potencial de reduzir a desigualdade, mesmo que minimamente, principalmente se aplicado em políticas públicas com essa prioridade e enfoque. Ademais, a priori, não haveria um impeditivo de se incrementar esse tributo de forma a elevar seu peso no orçamento francês.
Apenas a título de exemplificação, Saez; Zucman (2016) estimam que a implantação de um tributo sobre riqueza nos EUA poderia gerar cerca de duas centenas de bilhões de dólares anuais ao orçamento estadunidense. Ou seja, nada impediria, a princípio, um incremento na arrecadação com um tributo semelhante para algumas dezenas de bilhões de euros anuais no caso francês. Além do mais, não é porque existem outras razões geradores de determinado problema que se deva ignorar uma outra possível fonte desse problema.
Sobre a outra afirmativa de Tirole, vale observar os dados sobre as características da tributação na França, no Gráfico 1 abaixo.
No entanto, apesar disso, Tirole parece ignorar toda a discussão reavivada por Piketty (2014) sobre a concentração de renda e riqueza dos 1% e 0,1% mais ricos das populações de cada país, e possíveis soluções para essa questão, como tributações específicas para esses grupos. Nos EUA, por exemplo, a riqueza do 0,1% mais rico é bastante similar daquela dos 90% mais pobres (Piketty et al., 2018) – na França, apesar de a disparidade entre ricos e pobres ser menos extrema do que nos EUA, ainda é bastante relevante (France 24, 2019). Ainda assim, existem evidências de que as reformas tributárias propostas beneficiam exatamente o grupo dos 1% mais ricos na França (Financial Times, 2019).
Mas e o Brasil, como figura nessa questão? Vejamos no Gráfico 2, abaixo.
Este artigo busca discorrer sobre algumas das manifestações ao redor do mundo, particularmente a francesa e a brasileira. Veremos que há alguns paralelos que podem ser traçados, tanto nas causas como nos possíveis tratamentos para essas insurreições. O economista francês vencedor do prêmio Nobel Jean Tirole escreveu recente artigo sobre a turbulência ocorrida em seu país sob a tutela de Emmanuel Macron (Tirole, 2019). Em resposta à Revolta dos “Coletes Amarelos” (“Yellow Vest” Revolt), o presidente resolveu promover um grande debate nacional acerca de alguns tópicos, notadamente: política ambiental, democracia e identidade, tributação e organização do Estado.
Na visão de Tirole, no entanto, os planos de Macron esbarrariam em alguns obstáculos. Para começar, os “Coletes Amarelos” querem a redução da tributação e, também, a ampliação dos serviços públicos. Para o economista, algo que não seria possível num país que possui uma despesa pública de 57% do PIB e uma dívida pública próxima de 100% do PIB. Além disso, os “Coletes Amarelos” reclamam da desigualdade, focando na eliminação recente do imposto sobre riqueza – que representava cerca de cinco bilhões de euros anuais ao governo.
Para Tirole, isso seria irrelevante perto dos 188 bilhões de euros arrecadados com o Imposto de Valor Adicionado (IVA) francês, e se comparado a outros fatores explicativos da desigualdade (educação e acesso ao mercado de trabalho, para ele). Adicionalmente, Tirole alega que há uma percepção equivocada da opinião pública sob alguns assuntos econômicos, como, por exemplo, que a tributação privilegia os mais ricos. Por fim, o autor considera que parte da solução deveria ser avaliar o propósito de cada serviço público, sua relação custo-benefício e se há melhores alternativas – o que os canadenses ou os escandinavos teriam feito nos anos 1990, quando enfrentavam elevação da dívida pública e alto desemprego.
Toda essa situação soa de alguma forma familiar? Pois é, em 2013, o Brasil também observou suas próprias manifestações populares, com múltiplas demandas por parte dos manifestantes – a não elevação da tarifa de ônibus, a realização de uma reforma política, a melhoria da qualidade e a expansão dos serviços públicos, dentre vários outros. A então presidente Dilma Rousseff, ao ser surpreendida com esses grandes movimentos populares, optou por convocar um pacto nacional sob cinco aspectos (Globo, 2013): responsabilidade fiscal, reforma política, saúde, transporte e educação. Como se sabe, a estratégia de Dilma não se mostrou exitosa – o que até poderia servir de alerta para Macron, que seguiu uma estratégia similar, como salientado anteriormente. Portanto, assim como na França, parte da população brasileira também reivindicou, em última instância, a redução da carga tributária e, concomitantemente, a melhoria/ampliação dos serviços públicos. Isto pode parecer uma incongruência, como indicado por Tirole, ou dito de outra maneira, um aparente paradoxo. Mas será que o é, realmente?
Vejamos, primeiramente, o caso francês. Para Tirole, o imposto sobre riqueza que fora extinto gerava valores pouco significantes no orçamento anual francês e há outros fatores mais importantes para explicar a desigualdade. Além disso, haveria uma percepção equivocada da população que a estrutura tributária francesa privilegia os mais ricos. O primeiro argumento não justifica a extinção do tributo, por si só. O tributo sobre a riqueza tem o potencial de reduzir a desigualdade, mesmo que minimamente, principalmente se aplicado em políticas públicas com essa prioridade e enfoque. Ademais, a priori, não haveria um impeditivo de se incrementar esse tributo de forma a elevar seu peso no orçamento francês.
Apenas a título de exemplificação, Saez; Zucman (2016) estimam que a implantação de um tributo sobre riqueza nos EUA poderia gerar cerca de duas centenas de bilhões de dólares anuais ao orçamento estadunidense. Ou seja, nada impediria, a princípio, um incremento na arrecadação com um tributo semelhante para algumas dezenas de bilhões de euros anuais no caso francês. Além do mais, não é porque existem outras razões geradores de determinado problema que se deva ignorar uma outra possível fonte desse problema.
Sobre a outra afirmativa de Tirole, vale observar os dados sobre as características da tributação na França, no Gráfico 1 abaixo.
De fato, houve uma modificação na estrutura tributária francesa no sentido de se elevar o peso daqueles tributos mais progressivos, ou seja, exatamente os tributos sobre renda, lucros e ganhos de capital, além daqueles sobre propriedade – passaram de uma parcela perto de 22% para cerca de 32% da receita total entre 1990 e 2016. Inversamente, aqueles tributos mais regressivos, notadamente, os tributos sobre bens e serviços, tiveram uma redução de 28% para 24%.
No entanto, apesar disso, Tirole parece ignorar toda a discussão reavivada por Piketty (2014) sobre a concentração de renda e riqueza dos 1% e 0,1% mais ricos das populações de cada país, e possíveis soluções para essa questão, como tributações específicas para esses grupos. Nos EUA, por exemplo, a riqueza do 0,1% mais rico é bastante similar daquela dos 90% mais pobres (Piketty et al., 2018) – na França, apesar de a disparidade entre ricos e pobres ser menos extrema do que nos EUA, ainda é bastante relevante (France 24, 2019). Ainda assim, existem evidências de que as reformas tributárias propostas beneficiam exatamente o grupo dos 1% mais ricos na França (Financial Times, 2019).
Mas e o Brasil, como figura nessa questão? Vejamos no Gráfico 2, abaixo.
Como é possível verificar, a tributação, no Brasil, se concentra em tributos indiretos e regressivos, como é o caso daqueles sobre bens e serviços, chegando a representar cerca de 40% do total da receita tributária brasileira. Enquanto isso, a receita com tributos sobre renda, lucros e ganhos de capital, além daqueles sobre propriedade não representavam nem 30% da receita total em 2016. Isto está na contramão do apresentado pelos países integrantes da OCDE, em que os tributos se concentram naqueles diretos e progressivos – em 2016, a média desse grupo de países apresentou 33% e 39%, respectivamente, nessas duas categorias de tributos, ou seja, quase que o inverso da situação brasileira. Além disso, o Brasil é um dos únicos países a isentar a distribuição de dividendos e praticamente não existem tributos sobre grandes riquezas. E tem sido um dos países mais desiguais do mundo há muito tempo, o que causa essa sensação de injustiça por parte da população brasileira.
Portanto, como solucionar esse aparente paradoxo apresentado pelas manifestações ao redor do mundo, particularmente a francesa e a brasileira, abordadas aqui, em que são demandados a redução dos tributos e a ampliação dos serviços públicos? A resposta, evidentemente, é complexa e tem diversos aspectos. Claramente, é possível adotar uma das próprias indicações de Tirole, qual seja, cada país passar a avaliar mais efetivamente cada serviço público, sua relação custo-benefício, se há melhores alternativas e se há outras prioridades.
Entretanto, parte da resposta passa, ao contrário do que parece pensar o economista francês, numa reforma tributária que ganhem peso os tributos mais progressivos em lugar daqueles mais regressivos (isto particularmente para o caso brasileiro) e, adicionalmente, na estruturação de tributos focados especificamente no grupo dos 1% (e mesmo nos 0,1%) mais ricos. Com isso, a maioria da população até poderia ter uma menor tributação (pelo menos relativa) e, com a criação de tributos mais específicos para os “super-ricos”, poderiam ser gerados recursos que contribuiriam para a expansão dos serviços públicos, pelo menos atenuando o paradoxo apontado neste texto.
Vale dizer que uma reforma tributária no Brasil é ainda mais importante, dada tamanha complexidade dessa matéria por aqui (horas necessárias para se pagar o imposto muito destoantes do resto do mundo), o que acaba gerando um substantivo grau de litígio, distorções alocativas – prejudicando a eficiência econômica – e cumulatividade. Contudo, uma reforma tributária preocupada com questões distributivas não foi algo que Dilma fez e, tampouco, parece algo que Macron esteja disposto a fazer, ou mesmo o atual governo brasileiro.
Referências:
Globo. Dilma propõe 5 pactos e plebiscito para constituinte da reforma política, 2013. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/06/dilma-propoe-5-pactos-e-plebiscito-para-constituinte-da-reforma-politica.html>.
Tirole, J. Macron’s Great Gamble, Janeiro de 2019. Disponível em: <https://www.project-syndicate.org/commentary/macron-yellow-vest-citizen-consultation-by-jean-tirole-2019-01>.
Portanto, como solucionar esse aparente paradoxo apresentado pelas manifestações ao redor do mundo, particularmente a francesa e a brasileira, abordadas aqui, em que são demandados a redução dos tributos e a ampliação dos serviços públicos? A resposta, evidentemente, é complexa e tem diversos aspectos. Claramente, é possível adotar uma das próprias indicações de Tirole, qual seja, cada país passar a avaliar mais efetivamente cada serviço público, sua relação custo-benefício, se há melhores alternativas e se há outras prioridades.
Entretanto, parte da resposta passa, ao contrário do que parece pensar o economista francês, numa reforma tributária que ganhem peso os tributos mais progressivos em lugar daqueles mais regressivos (isto particularmente para o caso brasileiro) e, adicionalmente, na estruturação de tributos focados especificamente no grupo dos 1% (e mesmo nos 0,1%) mais ricos. Com isso, a maioria da população até poderia ter uma menor tributação (pelo menos relativa) e, com a criação de tributos mais específicos para os “super-ricos”, poderiam ser gerados recursos que contribuiriam para a expansão dos serviços públicos, pelo menos atenuando o paradoxo apontado neste texto.
Vale dizer que uma reforma tributária no Brasil é ainda mais importante, dada tamanha complexidade dessa matéria por aqui (horas necessárias para se pagar o imposto muito destoantes do resto do mundo), o que acaba gerando um substantivo grau de litígio, distorções alocativas – prejudicando a eficiência econômica – e cumulatividade. Contudo, uma reforma tributária preocupada com questões distributivas não foi algo que Dilma fez e, tampouco, parece algo que Macron esteja disposto a fazer, ou mesmo o atual governo brasileiro.
Referências:
Globo. Dilma propõe 5 pactos e plebiscito para constituinte da reforma política, 2013. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/06/dilma-propoe-5-pactos-e-plebiscito-para-constituinte-da-reforma-politica.html>.
Financial Times. France’s richest gain most from Emmanuel Macron’s tax reforms, 2019. Disponível em: <https://www.ft.com/content/728cc752-1e7e-11e9-b126-46fc3ad87c65>.
France 24. Yellow vests: are France’s working poor being left behind?, 2019. Disponível em: >.
Piketty, T. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.
Piketty, T.; Saez, E.; Zucman, G. Distributional national accounts: methods and estimates for the United States. Quarterly Journal of Economics, 133, no. 2, 2018.
Saez, E.; Zucman, G. Wealth Inequality in the United States since 1913: evidence from capitalized income tax data. Quarterly Journal of Economics, 131, 2016.
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