sábado, 27 de julho de 2019

Como o Facebook quer controlar o mundo

Por Vicente Ferreira, no site Carta Maior:

Há algumas semanas, o Facebook anunciou a intenção de criar uma nova criptomoeda, a Libra, para servir de meio de pagamento digital global. No Livro Branco entretanto divulgado, a Libra é apresentada como “uma moeda global simples capaz de dar poder a milhões de pessoas”, projetada para que seja “tão fácil enviar dinheiro como enviar um e-mail”, sendo o seu valor de mercado indexado a um cabaz de moedas tradicionais (como o dólar ou o euro). Embora existam já 28 empresas envolvidas no projeto, entre as quais a Visa, Mastercard, Paypal, Vodafone, eBay, Uber e Spotify, é o Facebook que o tem liderado desde o início.

A intenção foi anunciada por David Marcus, líder do projeto, como forma de aumentar a utilidade – e, forçosamente, a necessidade – do Facebook no nosso dia-a-dia. Marcus esclareceu que o objetivo da Libra é ser “um importante meio de troca, uma moeda digital de alta qualidade” capaz de ser usada “sem limite de fronteiras, para pagamentos do dia-a-dia, pequenas transações e outros tipos de operações.” O empresário fez ainda questão de se distanciar das outras criptomoedas – a Libra funcionará como dinheiro e não como mero “ativo ou veículo de investimento”, como a Bitcoin e outras moedas digitais. “Quando um sistema de pagamentos digital como este for possível, creio que poderão ocorrer profundas mudanças”, concluiu.

Não estará enganado: é de mudanças profundas que falamos quando se trata de criar uma moeda digital pronta a ser utilizada pelos 2,5 mil milhões de utilizadores do Facebook (um terço da população mundial). Não por acaso, Marcus já teve de comparecer numa audição no Senado norte-americano, onde se levantaram várias questões relacionadas com a segurança e a estabilidade da nova moeda digital.

Mas o que está realmente em causa com a Libra? Vamos por partes: tradicionalmente, qualquer moeda implica a existência de autoridades políticas – governos – com legitimidade social suficiente para assegurar a aceitação da moeda como meio de pagamento e garantir o seu valor, como escreveu o Alexandre Abreu. Uma vez que à emissão da Libra não corresponde nenhum estado soberano, o seu valor é apenas convencional.

Isto levanta o primeiro problema, já que nem o Facebook, nem nenhuma outra empresa privada, possui a liquidez necessária para garantir a estabilidade da moeda. Um dos maiores riscos da Libra prende-se com o facto de que, estando sujeita a movimentos especulativos ou a simples oscilações dos mercados, nenhuma das empresas envolvidas terá reservas monetárias suficientes para garantir o valor da moeda. Isto significa que em caso de uma crise de confiança, se quisermos evitar um colapso financeiro semelhante ao de 2008, os governos terão de intervir. Não podemos prever os custos de um resgate público deste tipo, mas a jurista Katharina Pistor alerta para o facto de que “é fácil imaginar um cenário em que resgatar a Libra poderia requerer mais liquidez do que qualquer Estado tem capacidade de fornecer. Recordemos a Irlanda após a crise financeira de 2008. Quando o governo anunciou que assumiria as dívidas do setor bancário privado, o país mergulhou numa crise de dívida soberana. Ao lado de um colosso como o Facebook, vários estados-nação poderiam acabar na mesma situação que a Irlanda.”

A essência do problema é o risco sistêmico – o Facebook estará sujeito a todos os riscos do setor financeiro, e resgatá-lo pode implicar medidas e quantias sem precedentes. Daí que a democrata Maxine Waters, líder do Comité de Serviços Financeiros do Congresso norte-americano que pediu mais tempo para avaliar o caso, tema que “se os planos do Facebook se concretizarem, a empresa e os seus parceiros deterão um enorme poder econômico, capaz de desestabilizar moedas e governos”.

Mas os problemas não acabam aqui: é que, ao passar a intermediar as nossas transações financeiras, o Facebook passará a ter acesso a toda a informação sobre os padrões de consumo e os rendimentos dos utilizadores, podendo cruzá-la com os dados que já possui sobre os nossos “gostos”, preferências, redes de amigos, o que escrevemos, os sítios que visitamos, entre outros. Alguns analistas consideram que no centro desta operação está a hipótese de recolha de enormes quantidades de dados, o “petróleo dos dias de hoje”, como já foi apontado pela The Economist.

O Facebook já desenvolveu uma aplicação própria, a Calibra (descrita aqui), uma espécie de “carteira digital” que armazena as moedas de cada utilizador, bem como as chaves criptográficas necessárias para lhes aceder (garantindo, assim, que quem perde a sua password ou telemóvel não fica sem o dinheiro). Na prática, cada carteira permite ter acesso a informação sobre o poder de compra e o tipo de transações da pessoa em questão – se multiplicarmos a informação pelos milhares de milhões de utilizadores da rede social, percebemos o alcance do poder que lhe está associado. Se a informação é o petróleo dos nossos dias, o Facebook encontrou a sua maior reserva mundial.

A centralização da informação nas mãos de um gigante tecnológico como o Facebook permite a sua utilização para operações de publicidade dirigida, com o intuito de manipular os nossos padrões de consumo e moldar as nossas escolhas – como avisa Francisco Louçã, “os estrategos do Facebook imaginam aqui um modo de consumo obsessivo e gerador de uma patologia de dependências mercantilizáveis. O FB e os seus outros modos de comunicar querem ser a bolha onde todos respiramos.”

Além disso, com o controlo sobre um meio de pagamento que pretende estabelecer-se a nível global, o Facebook torna-se um gigante financeiro, responsável não apenas pela utilização da moeda mas ainda pela gestão de crédito. Assemelha-se a ficção, mas parece ter vindo para ficar – o Facebook assume o papel da multinacional Evil Corp, da série norte-americana Mr. Robot, agregando ainda mais informação sobre todos os aspetos da nossa vida e reforçando o seu poder de vigilância e controlo sobre as sociedades, capaz de moldar escolhas que vão dos produtos que compramos aos candidatos em que votamos. “Confiem em nós” foi a expressão mais repetida por David Marcus ao longo da audição no Senado. Soa a um bom sinal?

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