quarta-feira, 3 de julho de 2019

Governo federal abastece a crise climática

Por Alessandra Cardoso e Nathalie Beghin, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:

A despeito da grave crise econômica e dos cortes de gastos públicos que estão atualmente na pauta da política nacional, os combustíveis fósseis têm recebido vultosos investimentos e incentivos fiscais para seu desenvolvimento. Mas há necessidade de subsidiar um setor responsável por impactos sociais e ambientais que agravam o quadro das mudanças climáticas?

Para responder a essa pergunta, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) monitora, desde 2018, o volume dos recursos públicos alocados pelo governo federal nos combustíveis fósseis, da produção ao consumo. Estudo inédito do instituto mostrou que, em 2018, foram R$ 85,1 bilhões em subsídios – montante que corresponde a cerca de 1% do PIB e a 6% da arrecadação para o mesmo ano.

A pesquisa é lançada em um momento oportuno para um debate aprofundado sobre a necessidade desses subsídios e a importância de medi-los, reduzi-los ou até eliminá-los. Embora aparentemente distantes do debate público, essas questões afetam o cotidiano das pessoas e os rumos do desenvolvimento do país.

Os números impressionam

Os resultados da pesquisa revelam que a maior parte dos subsídios (86%) é financiada com renúncias tributárias: R$ 4,2 bilhões são gastos tributários [1] e R$ 69,1 bilhões são outros tipos de renúncia. Os demais 14% são oriundos de recursos do Orçamento Geral da União (OGU).

As renúncias se destinam a apoiar tanto a produção quanto o consumo. A produção é incentivada por meio de regimes tributários especiais que desoneram importações e exportações de equipamentos e de bens e serviços destinados à pesquisa e lavra das jazidas de petróleo e de gás natural ou, ainda, aquisições no mercado interno de matérias-primas, de produtos intermediários e de materiais de embalagem utilizados nas atividades de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e gás natural. Os incentivos fiscais que estimulam o consumo (R$ 62,24 bilhões) correspondem à redução de tributos federais que diminuem o preço do combustível na bomba.

Além das renúncias, o governo federal incentiva o setor de petróleo e gás por meio da alocação direta de recursos. No campo da produção, as despesas se voltam essencialmente à pesquisa. Quanto ao consumo, os recursos da União se destinam a baratear o preço do óleo diesel e a subsidiar o custo de geração termelétrica a diesel nos sistemas isolados, essencialmente na região Norte do país.




Brasil não cumpre acordos

O Brasil é o sexto emissor de gases de efeito estufa do mundo, e os combustíveis fósseis são fator relevante para esse triste resultado. Com o intuito de conter a crise climática, o país assumiu um compromisso internacional de desenvolver políticas públicas que contribuam para a redução do aquecimento global. Esses compromissos constam de diversas negociações internacionais, como a Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (COP), os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) – especificamente o ODS 12, meta 12c – e o G20.

Ao que tudo indica, o Brasil está longe de cumprir o acordado, pois vem adotando medidas que resultam em aumento dos subsídios por pelo menos mais vinte anos. Além das questões climáticas, existem outras que justificam o melhor entendimento sobre a vultosa transferência de recursos públicos para o setor de petróleo, gás e carvão.

Uma delas é a crise fiscal pela qual passa o país. Até o momento, as soluções encontradas pelo governo têm sido colocar em prática medidas de austeridade e reformas que prejudicam sobretudo as pessoas mais pobres. Foi aprovada nova lei trabalhista que precariza as condições de trabalho; foi votada emenda à Constituição que congela os gastos públicos para os próximos vinte anos; cortes vêm sendo realizados sistematicamente nos últimos três anos, particularmente em políticas e programas sociais, como aqueles voltados para agricultores familiares, mulheres, povos indígenas, quilombolas, crianças e adolescentes, entre outros; está tramitando no Congresso proposta de reforma da Previdência que prejudica os trabalhadores de baixa renda, especialmente as mulheres.

Diante desse quadro alarmante, a pergunta que nos fazemos é: por que não se discute a possibilidade de diminuir as expressivas benesses oferecidas ao setor de petróleo e gás, conhecido por ser emissor de gases de efeito estufa?

Há ainda um terceiro fator relevante para dimensionar os subsídios aos combustíveis fósseis: a opacidade que os envolve. Protegidas pelo sigilo fiscal, não sabemos quem são as empresas beneficiadas pelas renúncias tributárias nem com que valores são agraciadas.

Ao que tudo indica, muitas delas são poderosas transnacionais estrangeiras do setor de petróleo e gás, que não precisam dos recursos dos contribuintes brasileiros para gerar seus lucros. Ademais, não existe nenhuma avaliação da efetividade das renúncias. Estudos pontuais revelam que os incentivos fiscais não são necessários para a rentabilidade do setor [2].

Agenda propositiva

Diante desses números e dos desafios que trazem, o Inesc tem se preocupado em monitorar o tema e construir uma agenda propositiva ao poder público, defendendo: a) colocar em prática medidas legais que tornem públicas as empresas que se beneficiam de renúncias fiscais e com que valores; b) realizar avaliações dos impactos das renúncias; c) tornar públicas todas as estimativas de renúncias tributárias e suas respectivas metodologias; d) debater com a sociedade a relevância dos subsídios aos combustíveis fósseis em tempos de crise climática e de crise fiscal; e) elaborar de forma participativa uma metodologia de mensuração desses subsídios; e f) construir uma estratégia de médio e longo prazos para o phase-out dos combustíveis fósseis no país.

* Alessandra Cardoso é assessora política do Inesc; Nathalie Beghin é coordenadora da assessoria política do Inesc.

Notas

1- Segundo a Receita Federal do Brasil (RFB), gastos tributários são gastos indiretos do governo realizados por intermédio do sistema tributário, visando atender objetivos econômicos e sociais, e constituem uma exceção ao sistema tributário de referência, reduzindo a arrecadação potencial e, consequentemente, aumentando a disponibilidade econômica do contribuinte.

2- A esse respeito, ver o estudo de Patricia Pedra e Alexandre Szklo intitulado “Are fiscal incentives for the oil business in Brazil really necessary?” [Incentivos fiscais para o setor de petróleo no Brasil são realmente necessários?], Coppe/UFRJ, 2018.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente: