Por Manuel Domingos Neto
Valores e procedimentos que imaginávamos sepultados com a derrota nazifascista em 1945 ressurgem com rapidez e capilaridade admiráveis. Fundamentalismos ganham espaço ao lado de apelos demagógicos ao civismo, ao patriotismo castrense e à falseada meritocracia.
No embate pela formação das almas, a juventude é o supremo objeto de desejo. As jogadas privilegiam os socialmente fragilizados, envolvendo inclusive segmentos de esquerda que acreditaram na concretização de reformas sociais sob o manto do mesmo aparelho de Estado que garantiu o ordenamento escravocrata e a vassalagem ao estrangeiro poderoso.
No Brasil de hoje, uma das faces da contenda é a silenciosa militarização do ensino. A proposição da “Escola Sem Partido” motivou certo debate enquanto nos últimos anos a multiplicação de “colégios militares” avançou sem ruídos, inclusive com apoio de governantes democratas desavisados.
A militarização do ensino adota como modelo ideal os treze colégios do Exército. Esse tipo de estabelecimento surgiu para dar vez aos órfãos dos que lutaram na Guerra do Paraguai. Com o tempo, cumpririam outras funções: melhoria disfarçada no soldo dos membros das corporações, reforço do malfadado recrutamento endógeno (que sabota o princípio meritocrático), disseminação de valores e percepções castrenses, convivência dos futuros oficiais com os segmentos sociais mais ricos...
Esses colégios custam três vezes mais que os colégios públicos civis. Dispõem de piscinas, quadras esportivas, laboratórios bem equipados e pagam aos professores salários maiores do que o das melhores escolas privadas.
Revelando-se impossível reproduzi-los devido aos seus custos elevados, a alternativa foi apelar para modelos que contam com policiais-militares da reserva. O governo Bolsonaro adotou como prioridade para o MEC a ampliação de mal definidas escolas “cívico-militares”. Hoje já são 203 colégios, recebendo cerca de 200 mil alunos espalhados em 23 estados e no Distrito Federal. Em Goiás, há 60 escolas deste tipo. Na Bahia, são 63, distribuídas em 58 cidades, informa Renata Cafardo, em matéria do Estadão (26.07.19).
O MEC reservou recursos para criar mais 108 destas escolas até 2023, contemplando em torno de 100 mil alunos.
Para viabilizar a proposta, Bolsonaro decretou que os policiais podem trabalhar em escolas públicas. A gestão compartilhada com a polícia é justificada como meio para oferecer segurança e disciplina em áreas de risco. De quebra, Bolsonaro melhora a renda de eleitores fieis.
Regulamentos dessas escolas proíbem mascar chicletes, sentar no chão uniformizado, usar “óculos ou armações de cores esdrúxulas” (esportivos ou de grau), portar bonés, tiaras ou “outros adornos”, além de namorar de uniforme. Há regras para o corte do cabelo, cor das unhas e maquiagens. Publicações que os estudantes levam para a escola são censuradas. A participação em redes sociais é monitorada.
É falso que regras comportamentais de caserna ensejem sucesso escolar. Alunos dos Institutos Federais, com professores da mesma carreira que os profissionais das escolas militares e provindos de camadas sociais carentes apresentam desempenho igual ou superior aos dos colégios militares.
Gabriel Pimenta, procurador federal da Bahia, entrou em campo defendendo a individualidade, o direito de manifestação política e a liberdade de expressão dos alunos. Argumenta que tais escolas violam a Constituição, o Estatuto da Criança e do Adolescente e convenções internacionais assinadas pelo Brasil que estabelecem o respeito aos direitos humanos, o pluralismo, a tolerância e a valorização dos diversos saberes.
Caso particularmente perigoso de militarização da juventude ocorre em Parnaíba, no Piauí. O SESC está instalando em belo prédio tombado como patrimônio histórico nacional o “Colégio Militar Presidente Jair Bolsonaro”. O edifício é propriedade pública estadual e no passado agasalhou colégio que homenageava Miranda Osório, herói da Independência.
O dirigente do SESC, ou preocupado com a disposição de Bolsonaro de cortar recursos do chamado “Sistema S” ou por convicção fascista própria, endossa entusiasmado a criminalização da esquerda. Constrangendo o governador Wellington Dias, que cedeu o prédio, diz não querer “escola do PT”, onde alunos se beijariam libertinamente. Quer escola que ensine “civismo e patriotismo”. Ignora que é a polícia quem mais precisa aprender civilidade e que o homenageado se inscreveu no inglório panteão dos vassalos do Império?
O Governador disse que o nome do prédio não pode ser mudado. O dirigente do SESC encontrou uma forma bizarra de garantir o enaltecimento de seu ídolo: o prédio conservará o nome do herói da Independência, mas agasalhará o colégio que homenageia o líder da neocolonização!
Iniciativas para militarizar a juventude prosseguem sem alarde, harmonizadas com a destruição do sistema brasileiro de ensino superior e de desenvolvimento científico e tecnológico.
Nos bancos dos colégios militares sentaram grandes intelectuais brasileiros. Conheci dois deles: Nelson Werneck Sodré e Otávio Velho. Ambos levaram a vida contraditando as narrativas castrenses do Brasil que ouviram quando adolescentes.
Aliás, é da lavra de Nelson, em “Memórias de um soldado”, as melhores páginas sobre as deformações éticas e morais alimentadas pelas regras vigentes do colégio militar em sua época.
Não foi o caso do atual Vice-Presidente da República, que continua vendo no índio, um indolente; no negro, um malandro; no branco, gente do bem. Nem do general ministro do GSI, que não desgruda de Bolsonaro em sua ensandecida cruzada pela destruição da soberania brasileira e das noções elementares de civilidade.
Pelos colégios militares passaram também autoridades que ordenaram friamente o assassinato de patriotas brasileiros.
Com a juventude egressa dessas escolas militares, o projeto autoritário em curso estabelece amparos seguros.
Na árdua tarefa de reconstrução do Brasil, teremos que discutir seriamente o papel dos colégios militares.
Valores e procedimentos que imaginávamos sepultados com a derrota nazifascista em 1945 ressurgem com rapidez e capilaridade admiráveis. Fundamentalismos ganham espaço ao lado de apelos demagógicos ao civismo, ao patriotismo castrense e à falseada meritocracia.
No embate pela formação das almas, a juventude é o supremo objeto de desejo. As jogadas privilegiam os socialmente fragilizados, envolvendo inclusive segmentos de esquerda que acreditaram na concretização de reformas sociais sob o manto do mesmo aparelho de Estado que garantiu o ordenamento escravocrata e a vassalagem ao estrangeiro poderoso.
No Brasil de hoje, uma das faces da contenda é a silenciosa militarização do ensino. A proposição da “Escola Sem Partido” motivou certo debate enquanto nos últimos anos a multiplicação de “colégios militares” avançou sem ruídos, inclusive com apoio de governantes democratas desavisados.
A militarização do ensino adota como modelo ideal os treze colégios do Exército. Esse tipo de estabelecimento surgiu para dar vez aos órfãos dos que lutaram na Guerra do Paraguai. Com o tempo, cumpririam outras funções: melhoria disfarçada no soldo dos membros das corporações, reforço do malfadado recrutamento endógeno (que sabota o princípio meritocrático), disseminação de valores e percepções castrenses, convivência dos futuros oficiais com os segmentos sociais mais ricos...
Esses colégios custam três vezes mais que os colégios públicos civis. Dispõem de piscinas, quadras esportivas, laboratórios bem equipados e pagam aos professores salários maiores do que o das melhores escolas privadas.
Revelando-se impossível reproduzi-los devido aos seus custos elevados, a alternativa foi apelar para modelos que contam com policiais-militares da reserva. O governo Bolsonaro adotou como prioridade para o MEC a ampliação de mal definidas escolas “cívico-militares”. Hoje já são 203 colégios, recebendo cerca de 200 mil alunos espalhados em 23 estados e no Distrito Federal. Em Goiás, há 60 escolas deste tipo. Na Bahia, são 63, distribuídas em 58 cidades, informa Renata Cafardo, em matéria do Estadão (26.07.19).
O MEC reservou recursos para criar mais 108 destas escolas até 2023, contemplando em torno de 100 mil alunos.
Para viabilizar a proposta, Bolsonaro decretou que os policiais podem trabalhar em escolas públicas. A gestão compartilhada com a polícia é justificada como meio para oferecer segurança e disciplina em áreas de risco. De quebra, Bolsonaro melhora a renda de eleitores fieis.
Regulamentos dessas escolas proíbem mascar chicletes, sentar no chão uniformizado, usar “óculos ou armações de cores esdrúxulas” (esportivos ou de grau), portar bonés, tiaras ou “outros adornos”, além de namorar de uniforme. Há regras para o corte do cabelo, cor das unhas e maquiagens. Publicações que os estudantes levam para a escola são censuradas. A participação em redes sociais é monitorada.
É falso que regras comportamentais de caserna ensejem sucesso escolar. Alunos dos Institutos Federais, com professores da mesma carreira que os profissionais das escolas militares e provindos de camadas sociais carentes apresentam desempenho igual ou superior aos dos colégios militares.
Gabriel Pimenta, procurador federal da Bahia, entrou em campo defendendo a individualidade, o direito de manifestação política e a liberdade de expressão dos alunos. Argumenta que tais escolas violam a Constituição, o Estatuto da Criança e do Adolescente e convenções internacionais assinadas pelo Brasil que estabelecem o respeito aos direitos humanos, o pluralismo, a tolerância e a valorização dos diversos saberes.
Caso particularmente perigoso de militarização da juventude ocorre em Parnaíba, no Piauí. O SESC está instalando em belo prédio tombado como patrimônio histórico nacional o “Colégio Militar Presidente Jair Bolsonaro”. O edifício é propriedade pública estadual e no passado agasalhou colégio que homenageava Miranda Osório, herói da Independência.
O dirigente do SESC, ou preocupado com a disposição de Bolsonaro de cortar recursos do chamado “Sistema S” ou por convicção fascista própria, endossa entusiasmado a criminalização da esquerda. Constrangendo o governador Wellington Dias, que cedeu o prédio, diz não querer “escola do PT”, onde alunos se beijariam libertinamente. Quer escola que ensine “civismo e patriotismo”. Ignora que é a polícia quem mais precisa aprender civilidade e que o homenageado se inscreveu no inglório panteão dos vassalos do Império?
O Governador disse que o nome do prédio não pode ser mudado. O dirigente do SESC encontrou uma forma bizarra de garantir o enaltecimento de seu ídolo: o prédio conservará o nome do herói da Independência, mas agasalhará o colégio que homenageia o líder da neocolonização!
Iniciativas para militarizar a juventude prosseguem sem alarde, harmonizadas com a destruição do sistema brasileiro de ensino superior e de desenvolvimento científico e tecnológico.
Nos bancos dos colégios militares sentaram grandes intelectuais brasileiros. Conheci dois deles: Nelson Werneck Sodré e Otávio Velho. Ambos levaram a vida contraditando as narrativas castrenses do Brasil que ouviram quando adolescentes.
Aliás, é da lavra de Nelson, em “Memórias de um soldado”, as melhores páginas sobre as deformações éticas e morais alimentadas pelas regras vigentes do colégio militar em sua época.
Não foi o caso do atual Vice-Presidente da República, que continua vendo no índio, um indolente; no negro, um malandro; no branco, gente do bem. Nem do general ministro do GSI, que não desgruda de Bolsonaro em sua ensandecida cruzada pela destruição da soberania brasileira e das noções elementares de civilidade.
Pelos colégios militares passaram também autoridades que ordenaram friamente o assassinato de patriotas brasileiros.
Com a juventude egressa dessas escolas militares, o projeto autoritário em curso estabelece amparos seguros.
Na árdua tarefa de reconstrução do Brasil, teremos que discutir seriamente o papel dos colégios militares.
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