Por Matheus Tancredo Toledo, na revista Teoria e Debate:
Qual país saiu das urnas após as eleições de 2018? Qual Brasil restará após o governo do presidente Jair Bolsonaro, que demonstra apreço cada vez maior pelo autoritarismo, por valores excludentes e por um país sem diversidade cultural, étnica, política, religiosa e social? O livro Democracia em Risco – 22 Ensaios sobre o Brasil Hoje, idealizado às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais de 2018, traz como desafio responder essas perguntas, por meio de 22 artigos escritos por intelectuais, escritores e escritoras, pensadores e pensadoras da sociedade e da política brasileira.
Em todos os 22 artigos, com diferentes abordagens e posicionamentos políticos, há a intenção de interpretar parte dos fenômenos político-sociais que levaram o Brasil ao seu estado atual. Sintetizar 22 análises, de 24 autores e autoras, é um desafio. Opta-se, portanto, destacar nesta resenha os principais artigos do livro.
O primeiro artigo de destaque é de autoria de Ronaldo de Almeida, que faz uma análise sobre o papel dos evangélicos e da fé protestante neopentecostal para o bolsonarismo. O autor demonstra de forma interessante e robusta que há duas chaves de pensamento que aproximam a ideologia majoritária entre a população neopentecostal: uma ética econômica baseada na teologia da prosperidade, que nos remete aos escritos de Max Weber sobre a ética protestante e o espírito do capitalismo, e a linha discursiva pautada em torno dos temas da “segurança” e da “ordem”, numa perspectiva punitivista. Um complemento importante a esse artigo é o escrito por Christian Dunker, no qual o psicanalista discorre sobre a construção da psicologia de massas nas redes do bolsonarismo sob a lógica freudiana.
Já Angela Alonso aponta em seu artigo que há na lógica bolsonarista uma linha discursiva moral que gira em torno da divisão da sociedade entre “o bem”, representado por Bolsonaro e seus apoiadores, portadores das melhores vontades e ideias para o país, e “o mal”, a esquerda, as feministas, a política tradicional e todos os considerados desviantes e até inimigos da pátria. A socióloga demonstra, em sua análise do que denomina “comunidade moral”, a exaltação da masculinidade e a construção de Bolsonaro enquanto uma figura que não é “esnobe” como a elite intelectualizada, e sim próxima do que a autora chama de “homem à antiga”.
Vale destacar a análise de Petrônio Domingues, que demonstra claramente que os resultados eleitorais na disputa presidencial são marcados pela divisão de raça, e consequentemente de renda no país: em 50% dos municípios mais pobres, Fernando Haddad venceu em 83%, enquanto na outra metade Bolsonaro ganhou em 87%. Bolsonaro venceu em 85% dos municípios de maioria branca, enquanto Haddad foi vitorioso em 75% dos com maioria não branca. Com base nesses dados, e num recorte histórico do papel do ativismo negro na sociedade brasileira e nos avanços dos governos petistas, fica evidente que a luta contra o racismo e pela emancipação do povo negro tende a ser uma das principais trincheiras de resistência contra o projeto obscurantista que Bolsonaro representa. Nesse mesmo sentido, destaco o texto de Renan Quinalha sobre o caráter anti-LGBT desse governo.
O risco à democracia representado por Bolsonaro permeia, por óbvio, todos os artigos. Um dos mais impactantes é o de Angela de Castro Gomes, que traz relato inédito de sua prisão no Dops durante a ditadura. Retomando historicamente a tradição política da direita brasileira, desde o Integralismo, passando pelo golpista Carlos Lacerda, alertando para a disposição antidemocrática de Bolsonaro. Vale mencionar brevemente os artigos de Carlos Melo e de Conrado Mendes, que focam, respectivamente, nos temas da polarização e na falência do Estado de direito, em especial por vícios e erros cometidos pelo Judiciário.
Dois dos artigos mais robustos, tanto em dados quanto em análise destes, são os de Esther Solano e de Heloisa Starling. Heloisa Starling retorna ao golpe de 1964 para discorrer sobre o autoritarismo brasileiro, com elementos anticomunistas que derrubaram João Goulart e que voltaram às ruas para derrubar Dilma e alçar Bolsonaro ao governo. Já Esther Solano, com dados sobre as manifestações de direita que apoiaram o golpe contra Dilma e deram sustentação à Lava-Jato, e posteriormente a Bolsonaro, também traz relatos de pesquisas qualitativas com eleitores e eleitoras do presidente. A antipolítica, o discurso anticorrupção que decorre numa quase canonização do então juiz e agora ministro Sérgio Moro marcam o que a autora aponta como um novo fenômeno político social brasileiro, o bolsonarismo.
No último artigo do livro, Gustavo Venturi e André Singer são mais cautelosos: se limitam a concluir que a vitória de Bolsonaro pode ser considerada conjuntural, mas que ainda não pode ser resultado de um novo alinhamento da sociedade, coisa que, para os autores, dependerá dos resultados de seu governo.
O livro poderia facilmente ser dividido em mais de um volume, para dar um espaço maior para o aprofundamento das teses dos autores e autoras. Mas mesmo assim é rico analiticamente e vale a pena ser lido. Seu conteúdo pode soar repetitivo, o que demonstra que há preocupações que são comuns a quase todas e todos analistas: o risco que esse governo representa para um país que necessita urgentemente de mais democracia, mais inclusão, mais desenvolvimento, compromissos estes que não são os de Bolsonaro.
* Matheus Tancredo Toledo é cientista político e analista de pesquisas no Núcleo de Estudos e Opinião Pública da Fundação Perseu Abramo.
Qual país saiu das urnas após as eleições de 2018? Qual Brasil restará após o governo do presidente Jair Bolsonaro, que demonstra apreço cada vez maior pelo autoritarismo, por valores excludentes e por um país sem diversidade cultural, étnica, política, religiosa e social? O livro Democracia em Risco – 22 Ensaios sobre o Brasil Hoje, idealizado às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais de 2018, traz como desafio responder essas perguntas, por meio de 22 artigos escritos por intelectuais, escritores e escritoras, pensadores e pensadoras da sociedade e da política brasileira.
Em todos os 22 artigos, com diferentes abordagens e posicionamentos políticos, há a intenção de interpretar parte dos fenômenos político-sociais que levaram o Brasil ao seu estado atual. Sintetizar 22 análises, de 24 autores e autoras, é um desafio. Opta-se, portanto, destacar nesta resenha os principais artigos do livro.
O primeiro artigo de destaque é de autoria de Ronaldo de Almeida, que faz uma análise sobre o papel dos evangélicos e da fé protestante neopentecostal para o bolsonarismo. O autor demonstra de forma interessante e robusta que há duas chaves de pensamento que aproximam a ideologia majoritária entre a população neopentecostal: uma ética econômica baseada na teologia da prosperidade, que nos remete aos escritos de Max Weber sobre a ética protestante e o espírito do capitalismo, e a linha discursiva pautada em torno dos temas da “segurança” e da “ordem”, numa perspectiva punitivista. Um complemento importante a esse artigo é o escrito por Christian Dunker, no qual o psicanalista discorre sobre a construção da psicologia de massas nas redes do bolsonarismo sob a lógica freudiana.
Já Angela Alonso aponta em seu artigo que há na lógica bolsonarista uma linha discursiva moral que gira em torno da divisão da sociedade entre “o bem”, representado por Bolsonaro e seus apoiadores, portadores das melhores vontades e ideias para o país, e “o mal”, a esquerda, as feministas, a política tradicional e todos os considerados desviantes e até inimigos da pátria. A socióloga demonstra, em sua análise do que denomina “comunidade moral”, a exaltação da masculinidade e a construção de Bolsonaro enquanto uma figura que não é “esnobe” como a elite intelectualizada, e sim próxima do que a autora chama de “homem à antiga”.
Vale destacar a análise de Petrônio Domingues, que demonstra claramente que os resultados eleitorais na disputa presidencial são marcados pela divisão de raça, e consequentemente de renda no país: em 50% dos municípios mais pobres, Fernando Haddad venceu em 83%, enquanto na outra metade Bolsonaro ganhou em 87%. Bolsonaro venceu em 85% dos municípios de maioria branca, enquanto Haddad foi vitorioso em 75% dos com maioria não branca. Com base nesses dados, e num recorte histórico do papel do ativismo negro na sociedade brasileira e nos avanços dos governos petistas, fica evidente que a luta contra o racismo e pela emancipação do povo negro tende a ser uma das principais trincheiras de resistência contra o projeto obscurantista que Bolsonaro representa. Nesse mesmo sentido, destaco o texto de Renan Quinalha sobre o caráter anti-LGBT desse governo.
O risco à democracia representado por Bolsonaro permeia, por óbvio, todos os artigos. Um dos mais impactantes é o de Angela de Castro Gomes, que traz relato inédito de sua prisão no Dops durante a ditadura. Retomando historicamente a tradição política da direita brasileira, desde o Integralismo, passando pelo golpista Carlos Lacerda, alertando para a disposição antidemocrática de Bolsonaro. Vale mencionar brevemente os artigos de Carlos Melo e de Conrado Mendes, que focam, respectivamente, nos temas da polarização e na falência do Estado de direito, em especial por vícios e erros cometidos pelo Judiciário.
Dois dos artigos mais robustos, tanto em dados quanto em análise destes, são os de Esther Solano e de Heloisa Starling. Heloisa Starling retorna ao golpe de 1964 para discorrer sobre o autoritarismo brasileiro, com elementos anticomunistas que derrubaram João Goulart e que voltaram às ruas para derrubar Dilma e alçar Bolsonaro ao governo. Já Esther Solano, com dados sobre as manifestações de direita que apoiaram o golpe contra Dilma e deram sustentação à Lava-Jato, e posteriormente a Bolsonaro, também traz relatos de pesquisas qualitativas com eleitores e eleitoras do presidente. A antipolítica, o discurso anticorrupção que decorre numa quase canonização do então juiz e agora ministro Sérgio Moro marcam o que a autora aponta como um novo fenômeno político social brasileiro, o bolsonarismo.
No último artigo do livro, Gustavo Venturi e André Singer são mais cautelosos: se limitam a concluir que a vitória de Bolsonaro pode ser considerada conjuntural, mas que ainda não pode ser resultado de um novo alinhamento da sociedade, coisa que, para os autores, dependerá dos resultados de seu governo.
O livro poderia facilmente ser dividido em mais de um volume, para dar um espaço maior para o aprofundamento das teses dos autores e autoras. Mas mesmo assim é rico analiticamente e vale a pena ser lido. Seu conteúdo pode soar repetitivo, o que demonstra que há preocupações que são comuns a quase todas e todos analistas: o risco que esse governo representa para um país que necessita urgentemente de mais democracia, mais inclusão, mais desenvolvimento, compromissos estes que não são os de Bolsonaro.
* Matheus Tancredo Toledo é cientista político e analista de pesquisas no Núcleo de Estudos e Opinião Pública da Fundação Perseu Abramo.
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