domingo, 15 de setembro de 2019

Liberdade de expressão e o surto de Crivella

Por Eduardo Nunomura, Jotabê Medeiros e Pedro Alexandre Sanches, na revista CartaCapital:

“Muitos livros”, concluiu o chefe dos fiscais da prefeitura do Rio de Janeiro, em resposta à pergunta sobre o que havia encontrado em sua missão de captura de “material impróprio” na Bienal do Livro do Rio. À frente de uma equipe de uns 20 homens, o coronel Wolney Dias perambulou durante duas horas por dezenas de estandes de editoras à cata de algo que pudesse ameaçar a dourada juventude carioca. O Sherlock Holmes encontrou apenas muitos livros, porque não há registro histórico de que as milícias, o crime organizado e o tráfico de drogas (que chegou a carregar 39 quilos de cocaína no avião presidencial) frequentem ao menos remotamente feiras de livros.

O episódio, patrocinado e protagonizado pelo prefeito do Rio, Marcelo Crivella (PRB-RJ), que mandou invadir a Bienal do Livro com o intuito de confiscar uma história em quadrinhos, o álbum Vingadores – A Cruzada das Crianças, da Marvel Comics, foi a cereja do bolo de uma série de ações de Estado truculenta contra a liberdade de expressão que é garantida pela Constituição. Desta feita, o atentado veio tingido com as tintas do fanatismo religioso e da intolerância de gênero. O argumento do prefeito é que havia um desenho, dentro da obra, que mostrava um beijo entre dois rapazes, o que feriria o Estatuto da Criança e do Adolescente. É a primeira vez que um episódio de censura chega a uma empresa tão grande quanto a Marvel, filial da Disney. Houve forte reação contrária do público presente, o que, se tiver continuidade, pode indicar uma inflexão no debate sobre a liberdade de expressão.

A tentativa de censura de Crivella envolveu idas e vindas, liminares suspeitas de um juiz ainda mais suspeito e finalmente uma intervenção dura do Supremo Tribunal Federal condenando a investida. O ministro Celso de Mello afirmou que o ato do prefeito do Rio deve-se ao clima de “trevas que dominam o Estado” brasileiro. “Toda a censura de hoje serve de palanque para os governantes jogarem para suas torcidas”, afirma a editora independente Raquel Menezes, que preside a Liga Brasileira de Editoras (Libre). “Sem dúvida, a pauta LGBTQI é a mais atacada, porque mexe mais com o que essa gente acredita ser a família tradicional e os bons costumes. Mas as temáticas afrorreligiosas também são alvos de ataques.”

A moda pega, vide a intervenção de Doria em São Paulo e de ACM Neto em Salvador

Mas a treva crivellista é só a ponta de um iceberg, os casos multiplicam-se desde a assunção do grupo de extrema-direita a diversos governos e cargos públicos pelo País na esteira do golpe que depôs Dilma Rousseff em 2016. “A censura chegou aos brancos, agora o trem vai ficar feio”, reagiu no Twitter aos episódios na Bienal o cineasta negro e gay Bruno Victor, do Projeto Afronte, que teve edital cancelado na Ancine e foi um dos citados nominalmente em live de Jair Bolsonaro como destinado a perder patrocínio estatal.

Na terça 3, o governador de São Paulo, João Doria, ordenou o recolhimento de uma apostila de Ciências destinada ao 8º ano das escolas estaduais de São Paulo por conter expressões como “transgênero, cisgênero, homossexual e bissexual”. Em postagem no Twitter, Doria disse que o material continha “erro inaceitável”, porque supostamente fazia apologia à “ideologia de gênero”. O Ministério Público Estadual abriu inquérito para investigar a ação e, na terça 10, acolhendo ação de um coletivo de professores, a juíza Paula Fernanda de Souza Vasconcelos, de São Paulo, concedeu uma liminar obrigando Doria a devolver aos alunos o material escolar confiscado, 330 mil apostilas, em 48 horas, sob pena de multa. A apostila é distribuída desde 2009 nas escolas, atualizando-se anualmente. Cínico, o governador logo aproveitou as desventuras de Crivella no Rio para condenar a ação do prefeito carioca por ter “perdido a razão” ao tentar censurar um livro. Diferentemente de Crivella, Doria acena, ao mesmo tempo, para os eleitores mais e menos conservadores.

Na quarta-feira 4, o prefeito de Salvador, ACM Neto (DEM-BA), assinou uma lei que proíbe “a divulgação e o acesso de imagens e músicas obscenas” em serviços ou eventos apoiados pelo poder público na capital baiana. O texto fala em coibir “palavrões, imagens eróticas ou de órgãos genitais, de relação sexual ou ato libidinoso”. Como a prefeitura de Salvador é partícipe do Carnaval, maior evento turístico do estado, é mais ou menos insano imaginar que vão policiar todas as canções de duplo sentido da festa, as microssaias da Cláudia Leitte e o “tchan” do circuito Barra-Ondina.

Em Porto Alegre, no dia 3, a Câmara de Vereadores interrompeu após 24 horas a mostra de desenhos de humor Independência em Risco, que deveria se estender até o dia 19. A presidente da casa, Mônica Leal (PP), justificou a censura: “Não considero que houve censura. Essas ilustrações, como aquela com o Bolsonaro lambendo as botinas do Trump, fosse qual fosse o presidente, seriam desrespeitosas porque tratam do presidente do Brasil. Aqui é uma Casa Legislativa, com espaço para arte e história. Então, mandei suspender”.

Outra iniciativa que veio juntar-se a esse pacote de barbaridades dos novos censores do aparato público brasileiro saiu do Itamaraty. Em resposta a um pedido de informações de grupos LGBTQI, o órgão diplomático decretou sigilo de quatro anos sobre os documentos que tratam de sua política de gênero. As entidades queriam saber por que o Itamaraty passou a rejeitar, na Organização das Nações Unidas, o termo “igualdade de gênero” e “educação sexual” em resoluções e textos oficiais. Em resposta, mais censura.

O ex-secretário Especial de Cultura do Ministério da Cidadania (que, na prática, tem a função do antigo ministro da Cultura), o gaúcho José Henrique Pires, demitiu-se no último dia 20 de agosto por discordar do avanço da censura oficial dentro do governo que integrava. Pires opôs-se ao cancelamento do edital da área audiovisual do Estado brasileiro que contemplava os temas da identidade de gênero e racial.

Em entrevista a CartaCapital, Pires disse concordar que a intenção de Bolsonaro de implantar “filtros” na cultura integra uma onda de ações do Estado refratária à livre expressão e ao direito à identidade de gênero. E o ex-secretário também enxerga oportunismo político. Ele observou que no pedido feito pela prefeitura do Rio ao desembargador, solicitando uma nova investida contra a história em quadrinhos da Bienal, foi anexado um exemplar de livro que nem sequer estava à venda no evento, uma fraude argumentativa. “Fazer manobra diversionista para atrair atenções e desviar o foco dos verdadeiros problemas é uma manobra clássica. Mas usar desse tipo de estratagema agredindo a Constituição é muito grave. Esses maus exemplos propagam-se e estimulam a intolerância. Por isso, esses atos têm de ser denunciados e os autores punidos”, defende Pires.

Embora tenha se desligado do governo por bater de frente no caso da censura aos temas LGBTQI, ele tem esperança que os vetos não progridam na gestão de seu sucessor, o economista Ricardo Braga, recém-indicado. “O Ministério Público Federal abriu inquérito e vai responsabilizar os que pretendem ‘filtros na cultura’”, afirmou Pires. “E, além disso, esse fiasco protagonizado pelo prefeito do Rio resultou em firme posicionamento do Supremo Tribunal Federal, rechaçando a intolerância. Ficou bastante claro: ou respeitam a Constituição ou serão penalizados por isso.”

Não é bem assim: a censura, invariavelmente, pode ser mascarada com argumentos legalistas, financeiros ou jurídicos. No Nordeste, o grupo teatral Clowns de Shakespeare, de Natal, foi surpreendido com o cancelamento do espetáculo infanto-juvenil Abrazo, na Caixa Cultural Recife. Uma primeira apresentação havia sido realizada em 7 de setembro, seguida de debate com o público, sem manifestações políticas, e de forma abrupta a segunda sessão no mesmo dia foi vetada sob a alegação de “descumprimento contratual”. Procurada por CartaCapital, a assessoria de imprensa limitou-se a informar que o contrato com o Clowns de Shakespeare foi rescindido. Cautelosos, os integrantes do grupo ainda insistem com a instituição para descobrir o argumento jurídico para o cancelamento, se é que há algum.

A temporada de Abrazo se estenderia até 15 de setembro. O espetáculo, que circulou por outras cidades brasileiras, narra a história de um menino que vive em um país no qual os habitantes não podem abraçar-se ou demonstrar afeto entre si. Não há falas, com exceção das regras proibitivas estabelecidas no início da peça e de uma palavra dita ao final. É inspirado em O Livro dos Abraços (L&PM), obra de histórias curtas do escritor uruguaio Eduardo Galeano que trata da ditadura, da opressão e da liberdade de expressão. Antes da estreia, a Caixa Cultural chegou a fazer uma solicitação informal de um vídeo com o espetáculo, que havia sido enviado para a inscrição do edital. “Eu dei uma entrevista para o Jornal do Commercio, que saiu no sábado, e aí eu falo que o espetáculo foi criado em 2014, dentro do marco dos 50 anos do golpe civil-militar de 1964, e quando criamos não só esse espetáculo, mas a trilogia toda, não imaginávamos que viveríamos um novo golpe e, dois anos depois, teríamos um presidente misógino, racista, antidemocrático, homofóbico, com ideais fascistas”, relatou Fernando Yamamoto, do Clowns de Shakespeare.

A sensação de sombrio déjà-vu que sacode o mundo cultural não é apenas uma impressão, diz o ator Ciro Barcelos, que integrou o libertário grupo Dzi Croquettes nos anos 1970, lendária trupe performática transgressiva de teatro e dança que sacudiu a ditadura civil-militar. Barcelos até acha pior a situação atual em relação à censura. “Porque, além da questão dessa aparente ditadura e da questão da homofobia, há a questão religiosa, que eu acho muito complicada. Eu sou um cara espiritualista, universalista, mas essa questão do comportamento do evangélico castrador e fundamentalista realmente me assusta bastante. E o nosso presidente infelizmente caminha para esses porões do fundamentalismo evangélico”, afirmou.

Ao examinar a censura no século XVIII, o historiador Robert Darnton, no livro Censores em Ação – Como os Estados influenciaram a literatura (Companhia das Letras, 2014), indicou as dicotomias básicas do confronto: obscurantismo contra a razão; opressão contra a liberdade; fanatismo contra a tolerância. No Brasil de 2019, há um componente político extra: a manutenção de um golpe de Estado mal-ajambrado parece depender terrivelmente do farsesco argumento da moralidade.

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