Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
A crença é que a natureza política do posto deveria garantir, automaticamente, a nomeação de 03 para o mais importante cargo da diplomacia brasileira no exterior. É como se, resolvida a questão administrativa-jurídica, não houvesse um debate político a ser travado e grandes questionamentos a serem feitos. Engano.
Como já lembrei aqui neste espaço (18/8/2019), várias resoluções anteriores do STF questionam o direito absoluto do Executivo nomear parentes, mesmo para cargos "políticos".
O retrospecto mostra que, mesmo assegurado pela súmula 13 do Supremo, que regulamentou esse tratamento diferenciado, o questionamento em torno da nomeação de um parente até terceiro grau não se limita a impedimentos desse tipo. Também é preciso encarar e resolver quesitos como aptidão e competência para o cargo.
Comum na disputa miúda nos governos de Estado e nas prefeituras do país, esse debate recorda o ponto principal em discussão aqui, que é compreender que, parente ou não, 03 está longe de possuir a legitimidade necessária a um posto de tamanha relevância política.
Numa resolução de 2011, Joaquim Barbosa rejeitou a posse de um Secretário de Educação num município gaúcho quando se demonstrou que o "laço de parentesco" era a "exclusiva razão" para a nomeação. É de se perguntar que outro motivo haveria para um escrivão concursado da Polícia Federal ter sido indicado para o principal cargo da diplomacia brasileira no exterior.
Numa resolução de 2014, Luiz Roberto Barroso lembrou que a "ausência manifesta de qualificação técnica" também pode ser um critério eliminatório. A sentença chama a atenção para a ausência de estudos formais de política internacional no currículo de 03, sem falar que até seu desempenho em língua inglesa constitui um mistério, como se viu na mais recente viagem aos EUA, quando declinou do convite para dar uma entrevista a jornalistas norte-americanos.
Há outros aspectos mais consistentes e graves. Falta à formação de Eduardo Bolsonaro um compromisso irredutível com a defesa da Constituição e seus valores mais caros -- inclusive na cena internacional, onde passará a atuar caso a nomeação venha a ser aprovada.
Como deputado, um parlamentar tem todo direito de criticar a Constituição de seu país e até pedir a convocação de uma Constituinte para escrever a história mais uma vez. A situação é diferente, contudo, quando se trata de um embaixador, representante do Estado brasileiro. Aí não lhe cabe falar por si, nem pelo governo que o nomeou, mas pelo país e a Constituição, sua síntese menos imperfeita até hoje.
Nem sempre é fácil separar uma coisa da outra, sabemos todos. Mas 03 já deu uma demonstração clara de que ignora os limites necessários entre a opinião pessoal, os valores comuns e as necessidades do país.
Essa verdade ficou escancara numa das inúmeras visitas aos EUA, aquela em que se fez fotografar com um boné da campanha presidencial pela reeleição de Trump em 2020. Para além de um eventual deslumbramento, em si inaceitável para um já candidato a embaixador, a imagem representa o avacalhamento da Constituição brasileira num ponto essencial.
No item 1 do artigo primeiro, informa-se que a soberania é a primeira de nossas clausulas pétreas, à frente de outros princípios que formam a nação, como a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da iniciativa privada e o pluralismo político. Ao se portar como cabo eleitoral de Trump, 03 simplesmente ignorou o início de tudo -- e nem pediu desculpas.
Outro aspecto reside num currículo que, mais econômico do que uma folha F4, já levou Celso de Mello, decano do STF, a classificar o candidato a embaixador como "inconsequente e golpista", com uma "inaceitável visão autoritária".
A reação de Celso de Mello foi produto de uma palestra de Eduardo Bolsonaro para concurseiros da Polícia Federal, em julho de 2018, mas só divulgada, em vídeo, após o segundo turno da eleição presidencial.
Um dos presentes perguntou a 03 o que poderia acontecer se a Justiça fizesse investigações que colocassem em risco a candidatura de Jair Bolsonaro. A questão o levou a especular, com preocupante naturalidade, sobre o fechamento do STF, deixando claro que, em sua visão, não seria uma operação muito difícil de ser realizada.
"Para fechar o STF não manda nem um jipe. Manda um soldado e um cabo".
Pode-se imaginar o efeito de uma afirmação dessa natureza num país como os Estados Unidos. Ali, as decisões da Suprema Corte jamais deixaram de ser cumpridas, seja na legalização do aborto ( 1973), que enfrentava uma imensa resistência republicana, seja na ordem judicial que levou Nixon a renunciar no caso Watergate (1974), dois anos depois de uma reeleição que parecia triunfal.
Outros momentos ilustrativos dos compromissos do candidato a embaixador foram registrados na jornada em que Eduardo Cunha consumou o golpe parlamentar que derrubou Dilma Rousseff. Jair Bolsonaro dedicou o momento a Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel condenado pela morte 45 prisioneiros detidos sob sua responsabilidade no DOI-CODI paulista. "O pavor de Dilma Rousseff", sublinhou Bolsonaro, exibindo o sadismo.
Atrás do pai, o candidato a embaixador nada disse.
Como se vê em vídeo, apenas mastigou, sílaba após sílaba, as palavras "Carlos-Alberto-Brilhante-Ustra", num macabro espetáculo de tortura revivida e compartilhada, autêntica provocação aos tratados internacionais que o Brasil assina e reconhece, a começar pela Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU. aprovada após a derrota do nazismo e do fascismo na Segunda Guerra.
Alguma dúvida?
A principal esperança de Jair Bolsonaro fugir de uma denúncia óbvia de nepotismo e emplacar o filho Eduardo Bolsonaro como embaixador do Brasil em Washington reside na noção de que a nomeação envolve um "posto político".
A crença é que a natureza política do posto deveria garantir, automaticamente, a nomeação de 03 para o mais importante cargo da diplomacia brasileira no exterior. É como se, resolvida a questão administrativa-jurídica, não houvesse um debate político a ser travado e grandes questionamentos a serem feitos. Engano.
Como já lembrei aqui neste espaço (18/8/2019), várias resoluções anteriores do STF questionam o direito absoluto do Executivo nomear parentes, mesmo para cargos "políticos".
O retrospecto mostra que, mesmo assegurado pela súmula 13 do Supremo, que regulamentou esse tratamento diferenciado, o questionamento em torno da nomeação de um parente até terceiro grau não se limita a impedimentos desse tipo. Também é preciso encarar e resolver quesitos como aptidão e competência para o cargo.
Comum na disputa miúda nos governos de Estado e nas prefeituras do país, esse debate recorda o ponto principal em discussão aqui, que é compreender que, parente ou não, 03 está longe de possuir a legitimidade necessária a um posto de tamanha relevância política.
Numa resolução de 2011, Joaquim Barbosa rejeitou a posse de um Secretário de Educação num município gaúcho quando se demonstrou que o "laço de parentesco" era a "exclusiva razão" para a nomeação. É de se perguntar que outro motivo haveria para um escrivão concursado da Polícia Federal ter sido indicado para o principal cargo da diplomacia brasileira no exterior.
Numa resolução de 2014, Luiz Roberto Barroso lembrou que a "ausência manifesta de qualificação técnica" também pode ser um critério eliminatório. A sentença chama a atenção para a ausência de estudos formais de política internacional no currículo de 03, sem falar que até seu desempenho em língua inglesa constitui um mistério, como se viu na mais recente viagem aos EUA, quando declinou do convite para dar uma entrevista a jornalistas norte-americanos.
Há outros aspectos mais consistentes e graves. Falta à formação de Eduardo Bolsonaro um compromisso irredutível com a defesa da Constituição e seus valores mais caros -- inclusive na cena internacional, onde passará a atuar caso a nomeação venha a ser aprovada.
Como deputado, um parlamentar tem todo direito de criticar a Constituição de seu país e até pedir a convocação de uma Constituinte para escrever a história mais uma vez. A situação é diferente, contudo, quando se trata de um embaixador, representante do Estado brasileiro. Aí não lhe cabe falar por si, nem pelo governo que o nomeou, mas pelo país e a Constituição, sua síntese menos imperfeita até hoje.
Nem sempre é fácil separar uma coisa da outra, sabemos todos. Mas 03 já deu uma demonstração clara de que ignora os limites necessários entre a opinião pessoal, os valores comuns e as necessidades do país.
Essa verdade ficou escancara numa das inúmeras visitas aos EUA, aquela em que se fez fotografar com um boné da campanha presidencial pela reeleição de Trump em 2020. Para além de um eventual deslumbramento, em si inaceitável para um já candidato a embaixador, a imagem representa o avacalhamento da Constituição brasileira num ponto essencial.
No item 1 do artigo primeiro, informa-se que a soberania é a primeira de nossas clausulas pétreas, à frente de outros princípios que formam a nação, como a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da iniciativa privada e o pluralismo político. Ao se portar como cabo eleitoral de Trump, 03 simplesmente ignorou o início de tudo -- e nem pediu desculpas.
Outro aspecto reside num currículo que, mais econômico do que uma folha F4, já levou Celso de Mello, decano do STF, a classificar o candidato a embaixador como "inconsequente e golpista", com uma "inaceitável visão autoritária".
A reação de Celso de Mello foi produto de uma palestra de Eduardo Bolsonaro para concurseiros da Polícia Federal, em julho de 2018, mas só divulgada, em vídeo, após o segundo turno da eleição presidencial.
Um dos presentes perguntou a 03 o que poderia acontecer se a Justiça fizesse investigações que colocassem em risco a candidatura de Jair Bolsonaro. A questão o levou a especular, com preocupante naturalidade, sobre o fechamento do STF, deixando claro que, em sua visão, não seria uma operação muito difícil de ser realizada.
"Para fechar o STF não manda nem um jipe. Manda um soldado e um cabo".
Pode-se imaginar o efeito de uma afirmação dessa natureza num país como os Estados Unidos. Ali, as decisões da Suprema Corte jamais deixaram de ser cumpridas, seja na legalização do aborto ( 1973), que enfrentava uma imensa resistência republicana, seja na ordem judicial que levou Nixon a renunciar no caso Watergate (1974), dois anos depois de uma reeleição que parecia triunfal.
Outros momentos ilustrativos dos compromissos do candidato a embaixador foram registrados na jornada em que Eduardo Cunha consumou o golpe parlamentar que derrubou Dilma Rousseff. Jair Bolsonaro dedicou o momento a Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel condenado pela morte 45 prisioneiros detidos sob sua responsabilidade no DOI-CODI paulista. "O pavor de Dilma Rousseff", sublinhou Bolsonaro, exibindo o sadismo.
Atrás do pai, o candidato a embaixador nada disse.
Como se vê em vídeo, apenas mastigou, sílaba após sílaba, as palavras "Carlos-Alberto-Brilhante-Ustra", num macabro espetáculo de tortura revivida e compartilhada, autêntica provocação aos tratados internacionais que o Brasil assina e reconhece, a começar pela Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU. aprovada após a derrota do nazismo e do fascismo na Segunda Guerra.
Alguma dúvida?
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