quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Previdência, o debate desonesto

Por Denise Lobato Gentil, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:

O livro de Eduardo Fagnani é muito bem definido nas suas primeiras páginas: “um ato exasperado diante da estúpida imposição de novo retrocesso ao processo civilizatório brasileiro”. Não há melhores palavras para definir o que o autor sente e enfrenta no país nestes tempos sombrios. Depois de décadas de intensa luta, Fagnani escreve um livro que expressa o auge de sua angústia e o fervor de sua devoção à defesa dos direitos sociais e ao combate à pobreza.

A Seguridade Social do Brasil está sob sua maior ameaça de destruição com a PEC nº6/2019, a proposta de reforma da Previdência da dupla Bolsonaro-Paulo Guedes – a “Nova Previdência”. E, com ela, está em curso a destruição de um dos mecanismos mais eficientes de distribuição de renda no Brasil.

Eduardo Fagnani é um dos maiores conhecedores do conteúdo econômico, histórico e político do tema da Previdência. Há décadas vem se dedicando ao tema com paixão e envolvimento incomuns. Não emprega apenas seu saber científico, mas usa de uma profunda sensibilidade.

Para ele o debate em torno da reforma é desonesto. “Não é uma reforma da Previdência. É uma reforma para destruir a Seguridade Social”, afirma. Há um propósito velado e muito mais amplo. “O que está em xeque é o contrato social e o modelo de sociedade pactuado em 1988, fruto da longa luta travada por muitos em favor da democracia e da construção de uma sociedade mais justa e igualitária”.

Argumentos absurdos

Fagnani desenvolve a arte do convencimento, cercando, com grande engenhosidade, os absurdos dos argumentos em favor da reforma. Há muitas distorções na interpretação do problema previdenciário, que induzem intencionalmente ao erro.

São falas baseadas na desonestidade intelectual de grande parte dos especialistas hoje no poder dentro do governo, no mercado e na mídia corporativa. Uma delas é considerar a Previdência como um bloco monolítico, quando na realidade, existem vários sistemas bastante heterogêneos – o Regime Geral de Previdência Social (RGPS), o Regime Próprio de Previdência dos Servidores Públicos civis (RPPSA), o regime dos militares e a previdência complementar. Qual deles precisaria ser reformado? Onde, afinal, residiria o problema? O diagnóstico deveria começar por identificar o sistema que ainda apresenta distorções.

Nas últimas três décadas foram aprovadas várias Emendas Constitucionais e leis complementares. Entretanto, não se faz uma avaliação com profundidade dos impactos dessas reformas e do que ainda seria necessário fazer. Antes, indica-se uma reforma estrutural, geral, irrestrita, sem que os pontos críticos sejam de fato, alcançados e corrigidos.

No caso do RPPS, houve uma sequência de alterações na sua legislação que resultaram no fim da aposentadoria integral para o servidor desde 2003, na cobrança de uma alíquota contributiva de 11% dos aposentados e, depois de 2013, adotou-se o mesmo teto de benefícios do INSS para os dois regimes (R$5.839,45). Além disso, foi criada a previdência complementar para o servidor público, a Funpresp. “O problema não está nos servidores federais que ingressaram após 2012” e “é injusto tratar todos os servidores como privilegiados”, diz Fagnani.

Queda de gastos

Em função das reformas já feitas, a tendência dos gastos no RPPS é de queda, segundo as próprias estimativas do governo. Passarão de 1,26% em 2018 para 0,32% em 2060. Por que deveria ser reformado mais uma vez se as reformas anteriores já estão em curso e resolverão o problema?

O RGPS passou por outros tantos remendos, sempre visando dificultar o acesso aos benefícios para gerar corte de gastos. Entretanto, Fagnani questiona se seria o RGPS (e o Benefício de Prestação Continuada – BPC) o sistema a continuar a ser reformado, sob a falsa retórica de que ali permanecem distorções e privilégios, uma vez que paga benefícios próximos ao salário mínimo (em torno de R$1.200,00) para a grande maioria dos beneficiários.

É praticamente uma renda básica para a população mais empobrecida. O Ministro da Economia, entretanto, ao apresentar a reforma, esgrimiu o argumento em defesa de uma “reforma justa e com equidade”, considerando que “rico” seria um aposentado que ganha R$2.231,00 (e se aposenta por tempo de contribuição) e pobre o que ganha R$1.252,00 (e se aposenta pela regra da idade mínima).

Daí a necessidade de reformar o RGPS, conclui o ministro e, mais, de se fazer a maior parte (80%) da suposta economia de recursos estimada para os próximos dez anos, recair, exatamente, sobre o RGPS, BPC e o Abono Salarial. É um discurso obsceno, que pretende liquidar esses importantes mecanismos de proteção social, conclui Fagnani.

Uma das consequências da ideia de que há um sistema previdenciário único no Brasil é gerar uma reforma que busca a “igualdade entre desiguais, desprezando a evidência de que a realidade socioeconômica de um trabalhador nordestino não é a mesma de um Ministro do Supremo Tribunal Federal, e quer reformar a Previdência dos mais pobres, pela introdução, nos sistemas brasileiros, de regras de acesso praticadas em nações desenvolvidas”.

Fagnani não deixa de apontar que existem distorções a serem corrigidas. Seria um equívoco negar que o Brasil não precisa de reforma da previdência. Entretanto, os problemas a serem enfrentados estão no RPPS dos Estados e Municípios e no sistema dos militares. Estes últimos contribuem com um percentual menor, por menos tempo, se aposentam com salários maiores e para eles há paridade e integralidade entre salários e aposentadorias.

Servidores

A despeito das especificidades da carreira, nunca foram penalizados com reformas desde a Constituição Federal de 1988. As distorções estão, também, no desrespeito ao teto de remuneração dos servidores, cujo valor não pode ser superior aos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.

O curioso é que o mesmo governo que prega acabar com privilégios, paradoxalmente, no final de 2018, ampliou esse teto de R$33,7 mil para R$39,2 mil, o que mantém altos salários e aposentadorias em carreiras de membros do Poder Legislativo e do Poder Judiciário. Ora, para reduzir privilégios não é necessário fazer uma reforma da Previdência. Basta fazer cumprir a determinação constitucional.

O livro elenca, enfim, muitos temas que circulam em época de reforma liberal. Entretanto, há dois que podem ser considerados o coração do debate científico sobre previdência e que o autor discute com o desembaraço de quem há muitos anos reflete sobre o tema.

O primeiro deles é que as reformas sempre focam na redução do gasto, desconsiderando a perda de receita do sistema provocada pela política de austeridade econômica que colocou a país no fundo do poço. Omite-se o óbvio. A verdadeira bomba-relógio causada pelo desemprego, a informalidade, os empregos intermitentes e de tempo parcial que se alastraram com o arranjo macroeconômico que provoca intensa desaceleração e com a reforma trabalhista.

Seus efeitos são a derrubada das receitas de contribuições previdenciárias de trabalhadores e empregadores. Por seu turno, a queda do consumo e do investimento público, ao contrair a demanda, provocam redução dos lucros e faturamento das empresas sobre os quais incidem importantes contribuições da Seguridade Social. A redução das receitas anula todas as tentativas de fazer o ajuste via corte de gasto deixando o déficit fiscal ainda mais profundo.

Cobrar dívidas

A solução do problema do déficit com o uso de uma estratégia de recuperação das receitas implicaria em fazer gestões para cobrar dívidas previdenciárias atrasadas de setores tradicionais e poderosos, combater a elevada sonegação de forma agressiva, rever desonerações ineficientes ao crescimento e, sobretudo, implementar políticas macroeconômicas de criação de empregos formais e de progresso técnico.

Essas alternativas, entretanto, enfrentam feroz resistência das classes privilegiadas, que não desejam pagar tributos para aliviar a vida dos mais pobres e construir uma sociedade mais igualitária. Sem se comprometer com um patamar civilizatório mais elevado empurram a solução do problema da pobreza para os ombros dos próprios trabalhadores que, desarticulados e sem dispor de organização sindical fortalecida, se vêm sem força para fazer frente à onda conservadora predatória. E, assim, a reforma vai assumindo um caráter de barbárie social e política.

O segundo ponto relevante do debate abordado no livro é o terror demográfico. Com o envelhecimento populacional haverá menor proporção de trabalhadores contribuintes ativos para um maior número de aposentados que não contribuem. “É fato que a população está envelhecendo e que o maior número de idosos pressionará as contas da Previdência. Mas isso não implica em aceitar o fatalismo demográfico e a ideia de que ‘não há alternativas’. Democracias desenvolvidas enfrentaram e superaram essa questão no século passado”, diz Fagnani.

Os argumentos que levanta sobre este subtema compõem, provavelmente, um dos capítulos mais relevantes do livro. Em combate ao determinismo demográfico, o primeiro aspecto levantado é o fato de que o financiamento da Previdência não depende unicamente da contribuição do trabalhador ativos.

Além dela, a Constituição Federal de 1988 assegurou o financiamento em um modelo tripartite, segundo o qual, empregadores e o Estado são igualmente responsáveis pelo provimento de recursos para as políticas de proteção social. Esse arranjo assegura uma magnitude de receitas que compensa a elevação da relação de dependência e ameniza a fragilidade da arrecadação ao ciclo econômico.

O segundo aspecto a ser considerado sobre o envelhecimento populacional é o desafio de financiar a Previdência com impostos que deixem de incidir sobre a base salarial, afetada pelo avanço do desemprego, descoberta de novas tecnologias poupadoras de mão de obra em alguns setores e pelo processo de desindustrialização. É preciso que ocorra uma transição para a tributação da renda, lucro e patrimônio. Desse modo, a reforma tributária seria o antídoto para a “bomba-demográfica”.

A maior incidência sobre a renda e a propriedade das classes mais abastadas é uma condição imperiosa para uma reforma da Previdência verdadeiramente justa, assim como para um sistema previdenciário verdadeiramente sustentável.

O terceiro aspecto apontado acerca do problema demográfico é a evolução da população em idade ativa e, nesse contexto, o Brasil viverá, até 2060, o seu melhor momento demográfico, pois a população entre 15 e 65 anos será superior à verificada em 1978. Haverá a possibilidade de se usar uma política macroeconômica que incorpore ao mercado de trabalho os brasileiros adultos que não contribuem para a Previdência porque estão desempregados, trabalham em empregos precários ou estão fora da força de trabalho pelo desalento e por falta de oportunidades.

Uma evolução mais acelerada das remunerações em comparação com a do valor dos benefícios também poderá contribuir para reduzir o peso sobre os trabalhadores ativos, se houver incrementos de produtividade (a variável chave do processo), formando, assim, um círculo virtuoso de crescimento da renda e de criação de empregos.

Desenvolvimento industrial

Fagnani aponta que, para se implementar esse processo, é decisiva a retomada do desenvolvimento industrial do país. “O problema não é a demografia em si, mas o fato de que o Brasil não tem projeto de desenvolvimento econômico compatível com as necessidades da maioria da população, em um momento em que ocorrem grandes transformações em sua estrutura etária”. Ao contrário, “o atual regime de crescimento brasileiro é o típico regime de acumulação dominado pelas finanças, caracterizado por baixas taxas de investimento e de acumulação de capital fixo produtivo”. Assim, a se manter a combinação de políticas de contração fiscal e monetária, combinada com um regime de acumulação financeira em franca aceleração, transforma o “apocalipse” que, supostamente ocorreria em 2060, num cenário que já ocorre hoje.

De fato, no segundo trimestre de 2019, o número de desempregados no Brasil foi de 12,8 milhões de pessoas, a população subutilizada alcança 28,4 milhões e, entre os ocupados, 11,4 milhões não têm carteira assinada. Formam um potencial de contribuintes excluídos que não chega aos cofres da Previdência. Logo, o problema central não está no envelhecimento e no crescimento do gasto, mas no fato de “o Brasil não ter um modelo econômico compatível com as necessidades do seu próprio desenvolvimento”.

Fagnani aponta, muito apropriadamente, que há alternativas para o Brasil, à exemplo do que diversos países produtores de petróleo fizeram ao instituírem um Fundo Soberano incidente sobre as receitas de petróleo e gás. Esses recursos, capitalizados ao longo dos anos, passaram a financiar as políticas governamentais, inclusive políticas de saúde e de Previdência social na transição demográfica. A experiência da Noruega já chegou a inspirar o Brasil no passado, com a criação do Fundo Soberano do Brasil, para formar poupança pública, mitigar os efeitos dos ciclos econômicos e fomentar projetos de interesse estratégico do País no exterior. Porém, essa alternativa foi descartada em 2016, transferindo os recursos do Fundo para o Tesouro Nacional, para serem usados para o pagamento da dívida pública.

Essas várias saídas para o problema previdenciário apontadas pelo autor excluem uma resposta apoiada no terror econômico fabricado pelo “austericídio” e desautoriza a tese de que o Brasil “vai quebrar” se não fizer uma reforma pautada apenas no corte de gastos.

Antidemocráticos

Fagnani descreve com riqueza de detalhes o longo percurso histórico de avanço das ideias e do projeto antidemocrático e anti social que consistia em desmanchar todo e qualquer vestígio de modernização e valores do Estado de Bem-estar Social. “O Estado brasileiro não cabe no PIB”, ou ainda, “os pobres não cabem no Orçamento” – esse é o veredicto, resume Fagnani. Entretanto, o gasto social se elevou porque, foi com a Constituição de 1988, um marco no processo civilizatório brasileiro, que pela primeira vez em mais de quinhentos anos de história, os brasileiros passaram a ter, simultaneamente, direitos políticos, civis e sociais assegurados por lei. E mudanças de grande monta na ordem constitucional exigem referendo popular. No entanto, o “mercado” exige uma implosão da Seguridade Social feita a toque de caixa.

Quais seriam os instrumentos dessa implosão? Como seriam utilizados?

Serão basicamente quatro atos. O primeiro, será desconstitucionalizar todos os parâmetros (tempo de contribuição, base de cálculo, alíquotas, valor do benefício e sua correção monetária) do RGPS e do RPPS, restando, na Constituição, unicamente a definição da idade mínima, e introduzir apenas diretrizes transitórias que terão validade até a aprovação de leis complementares. Esse artifício fará a verdadeira reforma da Previdência por meio de dezenas de leis complementares de iniciativa do Poder Executivo, cuja aprovação requer quórum menor de votos dos parlamentares. Haverá, assim, um estado de permanente reforma.

O segundo ato de desconstrução é desfigurar os mecanismos de financiamento previstos na Constituição Federal. Pela regra de hoje, a Seguridade Social é financiada por um conjunto de contribuições que envolvem União, empregadores e trabalhadores. A ideia é fazer a segregação contábil do Orçamento da Seguridade Social, o que acaba com o sistema tripartite, fazendo com que a Previdência seja financiada quase que exclusivamente pelos trabalhadores. A segregação contábil também pode significar a inclusão do RPPS (civil e militar) como parte da “Previdência”, o que faria com que os gastos deste sistema passassem a ser financiados (agora com garantia constitucional) pelos recursos do Orçamento da Seguridade.

O terceiro ato é fazer com que a Seguridade Social, baseada na solidariedade, transite para o Seguro Social através da adoção do Regime de Capitalização. Os resultados serão dramáticos porque os trabalhadores, oprimidos pelo alto desemprego e baixa remuneração, dificilmente conseguirão poupar para o futuro. É assim que poderá entrar em fase de implantação no Brasil o mesmo sistema fracassado do Chile, onde 80% das aposentadorias são inferiores ao salário mínimo e 44% estão abaixo da linha de pobreza.

Mas, é extremamente rentável às Administradoras de Fundos de Pensão (AFP). A taxa de reposição é, em média, de apenas 35%. O desastre dos sistemas de capitalização já deixou rastros e fez com que 18 dos 30 países onde foram implantados os revertessem. O resultado desses sistemas privados implantados na América Latina e em países do leste europeu resultaram em reduzida cobertura, baixíssimos benefícios, elevados custos administrativos e impactos sociais negativos.

“Privilégios”

O governo brasileiro, ignorando a realidade, colocou na PEC da Previdência essa armadilha para os mais pobres e, com despudor, alega querer “atacar privilégios”. Além disso, o governo não apresentou a conta do elevadíssimo custo de transição para o regime de capitalização que, como já se sabe, provoca o aumento do déficit público por longas décadas. Na tramitação pela Câmara os deputados excluíram o regime de capitalização do texto da PEC, mas o Senado tem a intenção de colocá-lo de volta, embora em uma PEC paralela.

E, por fim, o quarto ato de implosão da Seguridade Social será fazer a transição para o assistencialismo. Uma vez que, com as novas regras que se pretende implantar, poucos brasileiros conseguirão se aposentar, restará a proteção assistencial para os que vivem na pobreza. “Antevendo essa tendência, o governo constrói um muro de contenção”, rebaixando o valor do benefício do BPC e dos benefícios previdenciários.

Apesar da seriedade de cada argumento e de seus aspectos socialmente dramáticos há uma passagem irônica e divertida no livro. Refere-se ao momento em que o autor descreve o terrorismo econômico das teses governistas cujo argumento central é atribuir um poder milagroso à Reforma da Previdência defendida pela elite financeira. Não existe mal que a reforma não redima: déficit fiscal, dívida pública, entraves ao investimento, desemprego, baixa poupança, juros elevados, inflação, risco-país e tudo o mais.

Não se sabe qual teoria econômica se utiliza para justificar a alta correlação entre Reforma da Previdência e o comportamento de todos esses indicadores econômicos. “Parece uma Nova Providência, não Nova Previdência”. Não passam de mera “profissão de fé” ou talvez estejam baseadas em “nova corrente de pensamento ainda desconhecida, ancorada na interpretação do horóscopo” – sentencia Fagnani.

Por todos os ângulos que se queira ver, o livro de Fagnani é mais que um estudo sobre Previdência: ele debate o patamar dos valores civilizatórios de nossa sociedade e o processo de implantação do projeto ultraliberal que vem sendo tocado em marcha acelerada desde o início de 2019. No exato momento em que o Senado decide o futuro dos trabalhadores brasileiro, substituindo o Estado Social pelo Estado Mínimo Liberal, seu livro é imprescindível, tocante e lúcido.

* Denise Lobato Gentil é doutora em Economia e professora associada do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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