Por Gustavo Freire Barbosa, na revista CartaCapital:
Sérgio Fausto, superintendente da Fundação Fernando Henrique Cardoso, publicou na revista Piauí de setembro artigo no qual reclama da falta de uma “boa direita” em tempos de bolsonarismo (“Que falta faz uma boa direita: Bolsonaro e o liberalismo no Brasil”, edição 156).
Embora defenda o fortalecimento de uma oposição no campo da socialdemocracia, ele reconhece que a direita liberal no Brasil é repleta de flertes históricos com agendas antiliberais. Na rabeira do iluminismo, os liberais brasileiros não teriam conseguido se desprender da gaiola do conservadorismo autoritário e do patrimonialismo. Da República Velha, passando por Vargas e pelo golpe de 1964, é esse o padrão comportamental da nossa direita.
Na visão de Fausto, o crescimento da aceitação de valores característicos da direita liberal – meritocracia, empreendedorismo, preferência pelo setor privado, etc – foi deturpado pela “enzima do antipetismo”, que os acoplou a pautas que não dialogam com essa visão de mundo. Deixa a entender que, se estivéssemos em condições normais de temperatura e pressão, o reino liberal, em todas as suas formas de vida, poderia muito bem ter vindo a reboque da saída de Dilma. O idealismo é um elemento que atravessa todo o texto.
Na fauna partidária, o autor reputa ao DEM, ao NOVO e ao MBL uma maior coerência com as abstrações ideológicas liberais, pois possuiriam feições “moderadas e democráticas” que os credenciariam a fazer frente à direita bolsonarista: punitivista, sectária e anti-direitos humanos. O MBL parece concordar – e vem demonstrando ter sentido o cheiro de sangue. Notando o crescimento de uma direita órfã do bolsonarismo, passou a moderar seu discurso e a jogar as fichas na estratégia de trazer os arrependidos para o seu colo já nas próximas eleições. Não há princípios nessa escolha, contudo. Há cálculo eleitoral. E só.
É comum que liberais e fascistas troquem olhares na mesma trincheira. Fausto aponta para esse traço da direita brasileira. Erra feio, entretanto, quem acha que ela o monopoliza.
A “enzima do antipetismo” foi apenas o álibi da vez para que uma direita que se diz liberal abraçasse a conveniência de trocar Rousseau por Mussolini. Se há pouca ou nenhuma diferença entre um burguês assustado e um fascista, como disse Brecht, é com o porrete que se lida com movimentos que saem do controle – mesmo que permaneçam dentro da ordem.
Não é preciso ir muito longe. Foi com sua vida que o congolês Patrice Lumumba pagou o preço de ter sido eleito para o cargo de primeiro-ministro de seu país em 1960. O script impunha a vitória de um yorkshire do imperialismo belga e norte-americano, assim como a docilidade dos povos argentino, chileno e equatoriano estava no roteiro dos sacrifícios de direitos no altar recente do neoliberalismo.
A ideologia que esclarece também ofusca. São as platitudes idealistas de Fausto que o impedem de identificar o caricato bolsonarismo do NOVO, sigla preposta do mercado financeiro que vem se alinhando ao presidente mais do que seu próprio partido e ainda antes do Delegado Waldir, seu ex-líder na Câmara, chamá-lo carinhosamente de “vagabundo”.
Da mesma forma, o golpismo adolescente do MBL não é captado pelo seu radar, que ignora o miolo ideológico do movimento: um ajuntamento de velhas crianças propagadoras de fakenews, repetidoras de chavões da economia neoclássica e adesistas saudosas do mundo pré-iluminista. Já o DEM, que há alguns anos era o Partido da Frente Liberal (PFL), possui o DNA autoritário da ARENA. Sua diferença dos outros dois está somente na ausência de pares de sapatênis em seu guarda-roupa.
Fausto resolve puxar orelhas em determinados momentos. Além de fazer apontamentos sobre os potenciais faróis do iluminismo brasileiro, lança-se na tarefa de corrigir os desleixos da direita com os protocolos do liberalismo político: “a direita liberal fará vista grossa ao bolsonarismo, no que ele tem de profundamente autoritário e mesmo incivilizado, em nome de uma agenda econômica que também é sua?”.
Mas quando não foi assim?
Em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, Marx analisa como a melhor maneira encontrada para salvar a acumulação capitalista foi terceirizando sua gestão para um aristocrata que nada tinha de liberal, burguês e tampouco de democrata. Para manter os níveis de expropriação, foi necessário que se abrisse mão dos valores consagrados em 1789 pelos jacobinos, o que levou à restauração do próprio regime monárquico.
A incompatibilidade entre liberalismo e autoritarismo só existe em postulações teóricas.
Fausto em nenhum momento esboça ir além delas. A ascensão de Hitler, que contou com o entusiasmo das corporações alemãs, só foi possível, dentre outras coisas, em razão do extermínio dos comunistas pelas mãos dos socialdemocratas, que acreditavam que tirá-los do jogo os faria a principal força política da Alemanha. Tragédia e farsa. Dado o golpe de 2016, o PSDB, ansioso para colher os louros eleitorais da derrubada do PT, associou-se de imediato ao consórcio golpista que passou a ocupar o Planalto. Em ambos os casos, deu no que deu.
No Brasil, grandes referências do pensamento liberal ocuparam espaços estratégicos na ditadura militar. Mario Henrique Simonsen e Roberto Campos foram fiéis aos generais, enquanto Paulo Guedes até hoje acha irrelevante o fato do Chile ter vivido uma ditadura sob Pinochet – por mais que tenha resolvido fugir do país quando se deparou com seu apartamento sendo vasculhado pela polícia política chilena. O laboratório do neoliberalismo na América Latina jamais seria possível sem o golpe de Estado simbolizado pelo cadáver de Salvador Allende e os escombros do Palácio La Moneda. Ou seja: jamais seria possível se a democracia fosse respeitada.
Hoje, Guedes trabalha para o governo Bolsonaro, sendo costumeiramente apontado como o responsável pela tardia entrada do mandatário no clube dos Chicago Boys. Fausto discorda de Guedes em vários pontos. Posiciona-se, por exemplo, contra a informalidade excessiva defendida por Bolsonaro e melhor representada pela uberização das relações de trabalho, que qualifica como uma “utopia regressiva alimentada por tendências reais”. Reconhece, em uma concessão atípica, que a desigualdade social está colocando em xeque a legitimidade do capitalismo liberal. Só os “moderados” e “democratas” do NOVO se dispõem a bater nas estatísticas atualizadas da PNAD, que apontam que metade dos brasileiros vive com apenas R$ 413,00 por mês em um contexto de aumento da renda dos ricos e diminuição da dos pobres.
No frigir dos ovos, o que Fausto defende é algo como um bolsonarismo sem Bolsonaro: light, humanizado e ciente de que a Terra é redonda.
Um mundo de fadas e unicórnios no qual o liberalismo quebre os diques da economia e se lance sobre a política, como se uma das grandes contradições do modo de produção capitalista não fosse a rasteira nas liberdades políticas quando estas se mostram um obstáculo ao que chamam de “liberdades econômicas”.
Mas será possível um retorno a uma socialdemocracia que o Brasil nunca teve? Ou, como Fausto deixa implícito, ao modelo liberalizante que atingiu seu ápice nas gestões tucanas as quais, diferentemente do atual governo, prestam suas homenagens a valores civilizatórios inegociáveis, como o respeito aos direitos humanos e às liberdades individuais? Suas intenções se alinham às do movimento Direitos Já, composto por personalidades que, tirando os obscurantismos autoritários do presidente, não veem tantos problemas em todo o resto.
Tragédia e farsa, mais uma vez. Na Constituinte de 1946, liberdades como a de imprensa e de culto foram bandeiras não de parlamentares identificados com as ideias liberais, mas de membros do PCB, em especial Carlos Marighella e Jorge Amado. Não há notícias de vozes liberais organizadas e consistentes favoráveis às lutas anticoloniais, de independência e de libertação nacional do século XX, ao passo que, no escravismo de modo geral, liberais e conservadores convergiam sobre a ausência de incompatibilidade desta prática com o ideário professado por John Locke – este, um acionista da Royal African Company, monopolista do comércio de escravos no século XV.
No artigo “O pior estar por vir”, publicado na edição da 146 da Piauí, a jornalista Anne Applebaum lamenta a conversão de seus amigos democratas à extrema-direita de Jarosław Kaczyński, atual presidente da Polônia. A exemplo de Fausto, Applebaum se aflige por não existir em seu país uma alternativa que se situe mais ao centro do espectro ideológico.
A principal convergência entre ambos, contudo, é a miopia quanto aos limites emancipatórios da democracia liberal ou parlamentar burguesa, acreditando ser possível restaurá-la por meio do retorno de uma direita civilizada ao poder (no Brasil, essa direita é aparentemente o PSDB, que não aceitou o resultado das urnas e, apenas para “encher o saco” do PT, tentou tirar Dilma no tapetão após sua vitória em 2014).
“De imediato, a direita liberal precisa se diferenciar da direita predatória e da direita lunática, irmanadas no bolsonarismo”, conclui Fausto. Faltou perceber que as três são cabeças do mesmo corpo.
Embora defenda o fortalecimento de uma oposição no campo da socialdemocracia, ele reconhece que a direita liberal no Brasil é repleta de flertes históricos com agendas antiliberais. Na rabeira do iluminismo, os liberais brasileiros não teriam conseguido se desprender da gaiola do conservadorismo autoritário e do patrimonialismo. Da República Velha, passando por Vargas e pelo golpe de 1964, é esse o padrão comportamental da nossa direita.
Na visão de Fausto, o crescimento da aceitação de valores característicos da direita liberal – meritocracia, empreendedorismo, preferência pelo setor privado, etc – foi deturpado pela “enzima do antipetismo”, que os acoplou a pautas que não dialogam com essa visão de mundo. Deixa a entender que, se estivéssemos em condições normais de temperatura e pressão, o reino liberal, em todas as suas formas de vida, poderia muito bem ter vindo a reboque da saída de Dilma. O idealismo é um elemento que atravessa todo o texto.
Na fauna partidária, o autor reputa ao DEM, ao NOVO e ao MBL uma maior coerência com as abstrações ideológicas liberais, pois possuiriam feições “moderadas e democráticas” que os credenciariam a fazer frente à direita bolsonarista: punitivista, sectária e anti-direitos humanos. O MBL parece concordar – e vem demonstrando ter sentido o cheiro de sangue. Notando o crescimento de uma direita órfã do bolsonarismo, passou a moderar seu discurso e a jogar as fichas na estratégia de trazer os arrependidos para o seu colo já nas próximas eleições. Não há princípios nessa escolha, contudo. Há cálculo eleitoral. E só.
É comum que liberais e fascistas troquem olhares na mesma trincheira. Fausto aponta para esse traço da direita brasileira. Erra feio, entretanto, quem acha que ela o monopoliza.
A “enzima do antipetismo” foi apenas o álibi da vez para que uma direita que se diz liberal abraçasse a conveniência de trocar Rousseau por Mussolini. Se há pouca ou nenhuma diferença entre um burguês assustado e um fascista, como disse Brecht, é com o porrete que se lida com movimentos que saem do controle – mesmo que permaneçam dentro da ordem.
Não é preciso ir muito longe. Foi com sua vida que o congolês Patrice Lumumba pagou o preço de ter sido eleito para o cargo de primeiro-ministro de seu país em 1960. O script impunha a vitória de um yorkshire do imperialismo belga e norte-americano, assim como a docilidade dos povos argentino, chileno e equatoriano estava no roteiro dos sacrifícios de direitos no altar recente do neoliberalismo.
A ideologia que esclarece também ofusca. São as platitudes idealistas de Fausto que o impedem de identificar o caricato bolsonarismo do NOVO, sigla preposta do mercado financeiro que vem se alinhando ao presidente mais do que seu próprio partido e ainda antes do Delegado Waldir, seu ex-líder na Câmara, chamá-lo carinhosamente de “vagabundo”.
Da mesma forma, o golpismo adolescente do MBL não é captado pelo seu radar, que ignora o miolo ideológico do movimento: um ajuntamento de velhas crianças propagadoras de fakenews, repetidoras de chavões da economia neoclássica e adesistas saudosas do mundo pré-iluminista. Já o DEM, que há alguns anos era o Partido da Frente Liberal (PFL), possui o DNA autoritário da ARENA. Sua diferença dos outros dois está somente na ausência de pares de sapatênis em seu guarda-roupa.
Fausto resolve puxar orelhas em determinados momentos. Além de fazer apontamentos sobre os potenciais faróis do iluminismo brasileiro, lança-se na tarefa de corrigir os desleixos da direita com os protocolos do liberalismo político: “a direita liberal fará vista grossa ao bolsonarismo, no que ele tem de profundamente autoritário e mesmo incivilizado, em nome de uma agenda econômica que também é sua?”.
Mas quando não foi assim?
Em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, Marx analisa como a melhor maneira encontrada para salvar a acumulação capitalista foi terceirizando sua gestão para um aristocrata que nada tinha de liberal, burguês e tampouco de democrata. Para manter os níveis de expropriação, foi necessário que se abrisse mão dos valores consagrados em 1789 pelos jacobinos, o que levou à restauração do próprio regime monárquico.
A incompatibilidade entre liberalismo e autoritarismo só existe em postulações teóricas.
Fausto em nenhum momento esboça ir além delas. A ascensão de Hitler, que contou com o entusiasmo das corporações alemãs, só foi possível, dentre outras coisas, em razão do extermínio dos comunistas pelas mãos dos socialdemocratas, que acreditavam que tirá-los do jogo os faria a principal força política da Alemanha. Tragédia e farsa. Dado o golpe de 2016, o PSDB, ansioso para colher os louros eleitorais da derrubada do PT, associou-se de imediato ao consórcio golpista que passou a ocupar o Planalto. Em ambos os casos, deu no que deu.
No Brasil, grandes referências do pensamento liberal ocuparam espaços estratégicos na ditadura militar. Mario Henrique Simonsen e Roberto Campos foram fiéis aos generais, enquanto Paulo Guedes até hoje acha irrelevante o fato do Chile ter vivido uma ditadura sob Pinochet – por mais que tenha resolvido fugir do país quando se deparou com seu apartamento sendo vasculhado pela polícia política chilena. O laboratório do neoliberalismo na América Latina jamais seria possível sem o golpe de Estado simbolizado pelo cadáver de Salvador Allende e os escombros do Palácio La Moneda. Ou seja: jamais seria possível se a democracia fosse respeitada.
Hoje, Guedes trabalha para o governo Bolsonaro, sendo costumeiramente apontado como o responsável pela tardia entrada do mandatário no clube dos Chicago Boys. Fausto discorda de Guedes em vários pontos. Posiciona-se, por exemplo, contra a informalidade excessiva defendida por Bolsonaro e melhor representada pela uberização das relações de trabalho, que qualifica como uma “utopia regressiva alimentada por tendências reais”. Reconhece, em uma concessão atípica, que a desigualdade social está colocando em xeque a legitimidade do capitalismo liberal. Só os “moderados” e “democratas” do NOVO se dispõem a bater nas estatísticas atualizadas da PNAD, que apontam que metade dos brasileiros vive com apenas R$ 413,00 por mês em um contexto de aumento da renda dos ricos e diminuição da dos pobres.
No frigir dos ovos, o que Fausto defende é algo como um bolsonarismo sem Bolsonaro: light, humanizado e ciente de que a Terra é redonda.
Um mundo de fadas e unicórnios no qual o liberalismo quebre os diques da economia e se lance sobre a política, como se uma das grandes contradições do modo de produção capitalista não fosse a rasteira nas liberdades políticas quando estas se mostram um obstáculo ao que chamam de “liberdades econômicas”.
Mas será possível um retorno a uma socialdemocracia que o Brasil nunca teve? Ou, como Fausto deixa implícito, ao modelo liberalizante que atingiu seu ápice nas gestões tucanas as quais, diferentemente do atual governo, prestam suas homenagens a valores civilizatórios inegociáveis, como o respeito aos direitos humanos e às liberdades individuais? Suas intenções se alinham às do movimento Direitos Já, composto por personalidades que, tirando os obscurantismos autoritários do presidente, não veem tantos problemas em todo o resto.
Tragédia e farsa, mais uma vez. Na Constituinte de 1946, liberdades como a de imprensa e de culto foram bandeiras não de parlamentares identificados com as ideias liberais, mas de membros do PCB, em especial Carlos Marighella e Jorge Amado. Não há notícias de vozes liberais organizadas e consistentes favoráveis às lutas anticoloniais, de independência e de libertação nacional do século XX, ao passo que, no escravismo de modo geral, liberais e conservadores convergiam sobre a ausência de incompatibilidade desta prática com o ideário professado por John Locke – este, um acionista da Royal African Company, monopolista do comércio de escravos no século XV.
No artigo “O pior estar por vir”, publicado na edição da 146 da Piauí, a jornalista Anne Applebaum lamenta a conversão de seus amigos democratas à extrema-direita de Jarosław Kaczyński, atual presidente da Polônia. A exemplo de Fausto, Applebaum se aflige por não existir em seu país uma alternativa que se situe mais ao centro do espectro ideológico.
A principal convergência entre ambos, contudo, é a miopia quanto aos limites emancipatórios da democracia liberal ou parlamentar burguesa, acreditando ser possível restaurá-la por meio do retorno de uma direita civilizada ao poder (no Brasil, essa direita é aparentemente o PSDB, que não aceitou o resultado das urnas e, apenas para “encher o saco” do PT, tentou tirar Dilma no tapetão após sua vitória em 2014).
“De imediato, a direita liberal precisa se diferenciar da direita predatória e da direita lunática, irmanadas no bolsonarismo”, conclui Fausto. Faltou perceber que as três são cabeças do mesmo corpo.
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