domingo, 13 de outubro de 2019

Cartas marcadas prejudicaram Lula no Nobel

Foto: Ricardo Stuckert
Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:

Quaisquer que sejam os méritos apontados no desempenho de Abiy Ahmed Ali, primeiro-ministro da Etiópia e Premio Nobel da Paz 2019, a verdade é que sua escolha está sendo comparada a vitória de Barack Obama - premiado quando era um presidente calouro, menos de um ano à frente da Casa Branca, e sua mais notável obra política consistia no slogan "Yes, we Can".

(Muitas pessoas acreditam que o slogan foi, de fato, a melhor herança de Obama, e que o presidente americano no máximo poderia ter sido um mau candidato ao Nobel de Literatura, mas isso é outra conversa).

Embora a disputa de 2019 incluísse outros concorrentes, inclusive o cacique Raoni, é importante refletir porque a candidatura de Lula não vingou.

É óbvio que um Nobel da Paz para um preso político reconhecido internacionalmente, inclusive através de um abaixo assinado com centenas de milhares de adesões, teria um significado inegável como uma mensagem ao mundo - não apenas ao Brasil.

Imagine se Martin Luther King, a grande voz da consciência negra, tivesse sido excluído em 1964.

Ou se Nelson Mandela tivesse sido esquecido, em 1993. Com todas as diferenças que as comparações exigem, acho possível sustentar que, em 2019, Lula tinha uma força comparável.

Ao contrário dos prêmios de natureza cientifica, como Medicina, Química e Física, ou mesmo de Literatura, o Nobel da Paz é o único que responde a fatores diretamente políticos.

A escolha não é feita por filósofos ou intelectuais de prestígio, mas por um comitê de cinco membros, escolhidos pelo parlamento, base do governo norueguês.

E aqui outras coisas começam a ficar claras.

Mesmo admitindo que a escolha do Nobel da Paz pode não ter sido uma disputa na base do toma-lá-dá-cá, a tendencia política dominante na Casa é inteiramente desfavorável a Lula e seu legado político.

Desde 1917 a Noruega é governada por uma coalização de direita, integrada por quatro partidos, sob liderança do Partido Conservador, o maior deles.

O detalhe é que a partir de 1917 a segunda força da aliança que governa o país é o Partido do Progresso, que tem idéias de extrema-direita, controla o Ministério das Finanças e exerce óbvia influência sobre assuntos econômicos, de importância crucial numa Noruega onde um dos centros da atividade econômica - inclusive dos programas de bem-estar social - encontra-se na Statoil, estatal de petróleo, que nos últimos anos fez grandes compras no pré-sal brasileiro.

Em tempos remotos o Partido do Progresso abrigou em suas fileiras o mais conhecido terrorista norueguês de todos os tempos -- aquele jovem de espírito nazista que, em 2011, fora da legenda, metralhou 91 pessoas num terrível atentado em duas etapas em Oslo e numa ilha próxima, onde a juventude do partido trabalhista fazia um acampamento).

De uns tempos para cá a Statoil deixou de ser poderosa somente na Noruega.

Também tem uma história construída no Brasil, onde acelerou investimentos depois do golpe de 2016, quando Dilma Rousseff foi derrubada e a Lava Jato mostrou as garras para conduzir Lula à prisão e impedir sua candidatura presidencial.

Nesse período, o colosso nórdico tornou-se uma das estrelas dos leilões do pré-sal que vieram a seguir.

Há algo para se refletir, portanto.

Enquanto Lula engrandeceu a biografia de sindicalista com um projeto político que permitiu a descoberta do Pré Sal e o esforço para colocar a Petrobras entre as grandes empresas do mundo, em nosso país tropical a Statoil defendia interesses bilionários numa posição inversa, aliada objetiva das forças mobilizadas para quebrar o monopólio estatal que o presidente brasileiro pretendeu fortalecer.

Em junho de 2018, quando Lula já se encontrava na cela em Curitiba, a Statoil se firmava como uma das campeãs nos leilões organizados por Michel Temer e Pedro Parente.

Entre outras aquisições, os noruegueses levaram 66% do mega poço de Carcará, além de um bom quinhão de Uirapuru.

Coisa grande, muito grande, de quem se aproximou das grandes petroleiras do planeta, sabem os especialistas.

Em outubro do ano seguinte, o nome de Lula estava fora do Nobel da Paz, evento político-cultural que transforma a Noruega no centro de atenções mundiais.

É difícil imaginar - apenas isso, imaginar - que uma empresa tão bem sucedida no Brasil de Temer-Bolsonaro pudesse ficar de braços cruzados em seu próprio país, sem nada fazer para atrapalhar uma vitória do principal adversário, que receberia um impulso gigantesco no esforço para sua libertação.

Na lista de premiados desde 1901, há raríssimas personalidades de perfil político semelhante ao de Lula.

Para começar, nenhum se encontrava na prisão no momento em que foi premiado.

Adolfo Perez Esquivel, que tomou a iniciativa de lançar o próprio Lula, recebeu o Nobel em 1980, num reconhecimento a sua atuação contra a ditadura militar argentina, então alvo de repúdio mundial, inclusive do governo Jimmy Carter.

Martin Luther King recebeu o Nobel em 1964, quando a causa pelos direitos civis já havia entrado na agenda da Casa Branca de Lyndon Johnson.

Líder das greves operárias na Polonia comunista, Lech Walesa ganhou o Nobel em 1983, logo depois de sair da prisão - num momento em que a Casa Branca e o Vaticano acentuavam a pressão internacional contra a ditadura do general Jaruzelski.

Com receio de ser impedido de retornar ao país, Walesa enviou a mulher, Danuta, para receber o premio em seu lugar.

O Nobel de 1993, recebido por Nelson Mandela sempre será lembrado.

Costuma-se esquecer, contudo, que ele não recebeu o premio sozinho, mas ao lado de Frederick Willem de Klerk, líder da minoria branca que abriu caminho para o fim do apartheid, numa transição negociada que preservou os interesses econômicos dos antigos senhores.

O Nobel de 1993 não premiou o revolucionário que ficou décadas na prisão.

Como sublinha a nota que o justificou, o Nobel daquele ano foi um reconhecimento a um esforço negociado "pelo término pacífico do regime do apartheid e por lançar as bases para uma nova Africa do Sul democrática".

Para quem gosta de comparar Lula a Mandela, há muitas diferenças importantes.

O ponto básico: desde que o golpe que afastou Dilma não surgiu um líder da minoria branca brasileira disposto a apertar a mão da grande liderança popular deste país tão desigual para encontrar uma saída e um futuro. Assim, até o Nobel fica difícil.

Alguma dúvida?

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