Protesto em Santiago (Chile), 21/10/19 Foto: Ivan Alvarado/Reuters |
Talvez o dia 18 de outubro de 2019 seja registrado como um momento de revolta popular na história do Chile. Ou talvez seja seguido por outros momentos de maior intensidade. Mas, sem dúvida, podemos dizer que algo mudou no Chile. O modelo neoliberal, hoje administrado por Sebastián Piñera, mas amado por Ricardo Lagos a Michelle Bachelet em seu momento, está mortalmente ferido.
A decisão do atual presidente de decretar o Estado de emergência, que habilita o exército a restaurar a ordem em Santiago, não resolve o problema, senão o agrava.
Não é por acaso que, pouco mais de uma semana após o término dos protestos no Equador, que forçaram Lenín Moreno a recuar em suas medidas de aumento dos preços dos combustíveis, Santiago do Chile passou por incidentes e manifestações semelhantes.
O aumento das tarifas do metrô de Santiago causou, desde a segunda-feira (14/10), uma escalada de protestos que, na sexta-feira (18/10) à noite, alcançaram uma extensão e intensidade não observadas durante o período pós-ditadura. Nos dois casos, existe um problema em comum: o modelo de mercado e o aumento de preços como a gota que fez transbordar um copo que já estava cheio de ter que manter a paciência.
Primeiro ato: os protestos começaram no início desta semana, com estudantes do ensino médio organizados através das redes sociais para invadir os portões do metrô. Ações pontuais que, com a passar das horas e dos dias, foram estendidas por todas as estações da rede metroviária. O sucesso retumbante das ações, que receberam resposta positiva da população em curtíssimo tempo, se expandiu espontaneamente em ações que se reproduzem em intensidade e frequência.
O segundo ato foi a intervenção cada vez mais dura da polícia, com a violência usual das Forças Especiais de Segurança. Foi aqui que tudo desmoronou. No início eram apenas os estudantes em um processo de desobediência civil, mas na sexta-feira já havia tumultos e barricadas nas ruas, destruição de escadas rolantes, incêndios em ônibus, veículos policiais, contêineres urbanos e estações de metrô.
Durante a noite, o prédio de empresa energética Enel foi queimado, uma expressão que mostrou a verdadeira dimensão do protesto. Não foi apenas pelas tarifas do transporte. Se trata de um sistema baseado no que David Harvey chama de acumulação por desapropriação. Todo chileno sente que as grandes corporações o enganam um pouco, todos os dias. Um roubo que dura décadas, seja pelas taxas de serviço, pelos empréstimos de usura, o transporte, as aposentadorias miseráveis, o lucro na educação e na saúde.
Em algumas horas, o ultraje se precipitou. Um país que parecia ordenado e submisso até o último fim de semana, nesta sexta-feira explodiu de raiva, raiva acumulada por gerações e transmitida aos adolescentes, como uma decantação das frustrações de seus pais, irmãos e avós.
Políticos da aliança governista Chile Vamos criticaram os jovens por “protestar sem uma causa própria, já que eles desfrutam de descontos nas passagens para os estudantes”. A resposta não demorou a chegar: o movimento é uma expressão de uma dor social acumulada ao longo da longa história do neoliberalismo chileno.
No início da primeira década do século, durante o governo de Ricardo Lagos, outra geração de estudantes do ensino médio reivindicou uma mudança no sistema escolar imposto pela ditadura. Um primeiro alerta que abalou o modelo chileno pela primeira vez, colocando em xeque o grande paradigma do aparato de crescimento econômico e promoção social.
Anos depois, outra geração de adolescentes mudou a bússola das elites novamente. Toda uma molecada que estava entrando na cena política para não sair mais. Primeiro na chamada “Revolução dos Pinguins” (em referência à como os chilenos se referem aos estudantes secundaristas uniformizados), e anos depois, durante o primeiro governo de Sebastián Piñera, voltaram às ruas já como movimento universitário, com novas demandas. No Chile, como em outros países, foram os estudantes que pressionaram a história.
Os incidentes da sexta-feira, 18 de outubro de 2019, foram os mais intensos, espontâneos e generalizados de toda a transição pós-ditadura. A chamada para um panelaço através das redes sociais teve uma resposta massiva em todas as estações de metrô da capital do país. Dezenas de milhares de pessoas, a grande maioria sem organização ou militância conhecida, passaram horas batendo latas e panelas em piquetes que impediam o tráfego.
Diante desse levante, que surpreendeu o país por não ter uma organização ou coletivo conhecido, o governo só consegue ameaçar. Desde o início da semana, a presença da polícia nas estações de metrô e nos métodos de controle aumentou. Nesta sexta-feira no Twitter, apareceram vídeos de estudantes feridos por balas de borracha e de chumbinho.
Piñera decidiu não dar entrevistas nos primeiros dias após anunciar o aumento. Na sexta-feira (18/10), quando a situação já era difícil de controlar até mesmo para a polícia, o ministro do Interior, Andrés Chadwick, um pinochetista que se esforça para não se parecer com o velho ídolo, deu um declaração à imprensa, convencido, e em pleno Palácio de La Moneda, dizendo que o governo acionou a Lei de Segurança do Estado, que aumenta as multas para quem altera a ordem pública.
Em pouco mais de cinco minutos, e sem responder perguntas, Chadwick comprovou aquilo que já se sentia: que a única estratégia do governo é a repressão, sem considerar, de nenhuma maneira, uma revisão dos aumentos das tarifas. Essa estratégia de comunicação foi um fracasso. Naquela época, a rede de metrô estava fechada, milhões de Santiago tentavam encontrar uma maneira de chegar em casa e a polícia estava totalmente desatualizada. A intensidade dos protestos, dos milhares de piquetes e dos incêndios se espalhou por toda a cidade e seus bairros.
Uma contagem feita no sábado por forças militares estabeleceu que na noite daquela mesma sexta houve cerca de 300 detidos, centenas de feridos, dezenas de veículos queimados, e cerca de vinte estações de metrô destruídas, além de saques registrados em alguns pontos da cidade de Santiago.
O número de pessoas gravemente feridas com balas de armas do serviço policial, além de espancados, detidos e prisioneiros, nada disso ainda foi contabilizado. Em inúmeras comunas da Região Metropolitana, as Forças Especiais da polícia chilena lançaram bombas lacrimogêneas de procedência desconhecida, mas não puderam conter o som das panelas e gritos que ainda soam contra o mau governo.
Piñera é o peru do banquete de um longo processo que envolve toda a classe política chilena. Porque as políticas pós-ditatoriais não sabem diferencia entre os socialdemocratas e a terceira via, neoliberais e pinochetistas. Neste momento, a indignação pública não faz diferença entre a polícia, o governo e toda a classe política. Todos são responsáveis por todas as causas e efeitos atuais.
* Paul Walder é jornalista e escritor chileno, diretor do portal Politika e colaborador do Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE).
*Publicado originalmente no site estrategia.la. Tradução de Victor Farinelli.
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