Santiago, 24/10/19. Foto: Martin Bernetti |
Santiago está em chamas – literalmente. As manifestações contra o aumento da tarifa de metrô começaram há uma semana na capital chilena e rapidamente se alastraram, como fogo, por todo o país. Foi estopim para a maior greve geral das últimas décadas. Nem a repressão, nem o toque de recolher, nem o Estado de Emergência fizeram a população recuar. Chegou a hora de cobrar a conta do neoliberalismo num país onde até a água foi privatizada pela ditadura militar.
Sebastian Piñera foi o primeiro presidente da história do Chile a declarar guerra contra o povo nas ruas em um regime democrático, o único chefe de Estado a fazer isso antes dele foi o ditador Augusto Pinochet (1973-1990). As cifras são realmente de guerra, até agora foram registrados 18 mortos, 84 feridos a tiros e 2600 presos. O cenário de caos nos remete ao episódio do Estádio Nacional que em 1973 foi convertido no maior palco de repressão e tortura da América Latina, imediatamente após o país sofrer o golpe que depôs o presidente Salvador Allende. Não à toa, a máxima de Marx cai como uma luva: “a história se repete...”.
Diante disso, os movimentos sociais se uniram e nesta terça-feira (22) convocaram uma greve geral para os dias 23 e 24. Na manhã desta quarta-feira o Chile amanheceu paralisado, comércios, indústrias, serviços públicos estão fechados. As pessoas estão organizadas nas ruas, em imensas manifestações pacíficas. Elas exigem reformas estruturais essenciais para libertar o país das amarras da ditadura.
Isso porque, até hoje a Constituição chilena é a mesma instituída por Pinochet, e todas as privatizações promovidas durante os 20 anos de regime de exceção seguem vigentes. Parece impensável, mas até a água foi privatizada, além do gás, cobre e outros minerais, os sistemas de Previdência, Saúde, Educação, Transporte e rodovias. Tudo custa e custa muito.
O metrô e os pedágios, por exemplo, têm tarifas mais altas nos horários de pico. Afinal, se mais gente usa ao mesmo tempo, é possível lucrar mais. As Administradoras de Fundo de Pensão (AFP) arrecadaram durante 30 anos e agora, na hora de pagar a aposentadoria de quem contribuiu, simplesmente não têm recursos, e não se sabe o que foi feito com esse dinheiro porque as empresas não foram reguladas pelo Estado. Os aposentados, sem ter a quem recorrer, entram em pânico. Muitos recebem o equivalente a meio salário mínimo, outros não recebem nada. O índice de suicídio entre idosos cresceu de forma vertiginosa no país desde o colapso do pagamento de pensões.
Estas imensas manifestações que começaram por conta do aumento de 30 centavos de peso na tarifa do metrô de Santiago e se alastraram como pólvora por todo o país são surpreendentes, mas não inesperadas. Porque não se trata de 30 centavos, e sim de 30 anos de neoliberalismo. Piñera havia dito há uns dias atrás que o Chile era um “oásis” em meio a um continente em crise. De fato, o PIB costuma ser mais alto que nos países vizinhos. Se o Estado não se responsabiliza com nada, é fácil apresentar números altos. Quem paga a conta é o trabalhador, afinal.
No “oásis” de Piñera os idosos não recebem aposentadoria, os jovens não conseguem sair da universidade sem uma dívida astronômica para pagar ao longo da vida, as crianças não ingressam na escola sem pagar infinitas taxas, não há atendimento médico sem assinatura de um contrato prévio. O aumento da tarifa de metrô foi só a gota d’água, mas desde 2011 quando foram registradas as primeiras grandes manifestações pela gratuidade do ensino público, a população nunca mais se desmobilizou.
Depois do massacre contra os manifestantes, Piñera fez um pronunciamento em rede nacional nesta segunda-feira para pedir desculpas e anunciar que vai aumentar em 20% o valor dos fundos de pensão. “Teve que acontecer um estalo social com consequências tão graves para que o governo por fim estabelecesse um reajuste que vinhamos pedindo há meses”, criticou o deputado Guillermo Teiller, do Partido Comunista do Chile.
Outros líderes da oposição condenam a repressão e exigem a renúncia de Piñera. Os prefeitos das intendências de Santiago se uniram para pedir ao governo federal que considere a gratuidade do transporte público, bem como o congelamento do do preço das tarifas de água e energia elétrica, além de uma reforma tributária. “Precisamos de uma reforma tributária de verdade que colete muito mais do que o Estado coleta hoje, para aumentar as pensões, melhoras a Saúde e a Educação e nos encarregarmos de nossas crianças e nossos idosos e tirá-los do abandono em que se encontram hoje”, afirmou o prefeito de Recoleta, intendência de Santiago, Daniel Jadue.
O Chile tem sido uma espécie de laboratório do neoliberalismo. As mudanças econômicas promovidas pelos Chicago Boys – os jovens economistas treinados por Milton Friedman na Universidade de Chicago (EUA) nos anos 70 – deram resultados rápidos. Mas o colapso chegou. Se hoje Piñera se orgulha em apresentar altos índices de crescimento econômico, isso só é possível porque, como estamos vendo, não se reflete na vida real da população. São os trabalhadores que pagam esta conta.
Mesmo com o exemplo que salta aos olhos, o Brasil avança a passos largos para aprovar a reforma da Previdência inspirada no modelo pinochetista. Nosso superministro da Economia, Paulo Guedes, é um dos garotos de Chicago. Trabalhou no governo Pinochet e, de volta ao Brasil, nunca teve relevância acadêmica, seu grande projeto é aprovar este modelo previdenciário fracassado em outras partes do mundo.
Está claro que as políticas neoliberais são impopulares. Só foram possíveis no Chile porque o país sofreu um dos mais sangrentos golpes de Estado da América Latina. E agora, passadas mais de três décadas, a manutenção também é feita à força. As cifras da repressão destes últimos dias deixaram as organizações de Direitos Humanos alerta.
Antes de ser assassinado no palácio La Moneda pelas tropas pinochetistas, Salvador Allende fez um comunicado ao povo chileno onde anunciava que a luta seria longa, mas a liberdade – econômica, social e política – chegaria novamente. “Eles detém a força, poderão nos avassalar; mas não se pode deter os processos sociais. Nem com o crime, nem com a força. A história é nossa, e os povos a fazem”, disse. Começou a greve geral, a maior das últimas décadas, é um novo capítulo.
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