terça-feira, 22 de outubro de 2019

O cristianismo e o comunismo primitivo

Por Augusto C. Buonicore, no site da Fundação Maurício Grabois:

“Hoje sois vós, com as vossas mentiras e ensinamentos, que sois pagãos, e somos nós quem traz aos pobres, aos explorados, as novas da fraternidade e da igualdade. Somos nós quem está a marchar para a conquista do mundo como fez aquele que outrora proclamou que é mais fácil a um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que a um rico entrar no reino do céu”. Rosa de Luxemburgo, revolucionária comunista alemã.

“Se quiserem fazer uma ideia das primeiras comunidades cristãs, observem uma seção local da Associação Internacional de Trabalhadores”. Ernest Renan, historiador alemão do século XIX autor de A vida de Jesus e um dos principais estudiosos do cristianismo.

“E perguntou-lhe (a Jesus) um aristocrata. Bom, mestre, que devo fazer para possuir a vida eterna? (...) Ainda te falta uma coisa. Vende o que tens, dá aos pobres e terás tesouros no céu; então, vem e segue-me. Então, ao ouvi-lo, ficou muito triste porque era muito rico”. Novo Testamento.


Um cristianismo proletário e comunista

Um anticomunismo atávico ganhou nova força no interior das cúpulas de algumas igrejas ditas cristãs. Nesse processo não se incluem apenas os pastores pentecostais, mas também setores do clero católico. Estranhamente, apareceu até uma exótica “teologia da prosperidade”, cujo espírito é: enriquecei-vos (e não no sentido espiritual, como prevê os Evangelhos). O objetivo das preces é nos tornar mais prósperos materialmente. Ganhar na loteria passou a ser a maior graça possível a ser alcançada. Igualmente há uma perigosa aproximação desse clero reacionário com políticos e governos que negam os direitos humanos e até admitem práticas abomináveis, como a tortura e genocídio. Algo que teria sido veementemente condenado pelos primeiros cristãos.

De fato, o processo de enfraquecimento do comunismo original junto às cúpulas das igrejas cristãs é antigo e não se deu sem contradições. Ele teve como um dos marcos fundamentais a fusão Igreja-Estado durante o reinado de Constantino, que viveu entre 272-337. Até meados do século III o comunismo era uma das bases ideológicas do cristianismo. Os exemplos se multiplicam nos próprios textos do Novo Testamento e dos primeiros teólogos cristãos. E estão presentes em escritos pagãos do Império Romano. O historiador alemão Max Beer no seu clássico História do socialismo e das lutas sociais escreveu: “Nos anos seguintes ao martírio de Jesus, as primeiras comunidades, compostas quase que exclusivamente de judeus proletários, viveram ou de acordo com o sistema comunista ou no espírito do ideal comunista”.

Aquele comunismo dos primeiros cristãos não é idêntico ao comunismo moderno, criação do século XIX, contudo tem algumas similitudes. Não sem razão, os fundadores do “socialismo científico” (Marx e Engels) e alguns de seus primeiros ideólogos/intelectuais, como Karl Kautsky e Rosa de Luxemburgo, se interessavam pela história desses primeiros cristãos e buscaram construir pontes entre ela e o socialismo do seu tempo. Vejamos o que diz a Apresentação ao livro A luta de classes na França de K. Marx feita por Engels: “no Império Romano atuava um perigoso partido subversivo. Esse partido minava a religião e todos os fundamentos do Estado; negava sem rodeios que a vontade do imperador fosse a lei suprema; era um partido sem pátria, internacional (...). Este partido subversivo, que era conhecido pelo nome de cristãos, tinha também uma forte representação no exército; legiões inteiras eram cristãs (...). O imperador Diocleciano já não podia assistir tranquilamente ao minar da ordem (...). Então, emitiu uma lei contra os socialistas, queria dizer contra os cristãos (...). Foram proibidas as reuniões desses subversivos, os seus locais de reunião encerrados ou demolidos, os símbolos cristãos, cruzes, proibidos, como na Saxônia são os lenços vermelhos (dos socialistas). Mas estas leis de exceção não tiveram êxito (...). Este (Imperador) vingou-se com a grande perseguição aos cristãos no ano 303 da nossa era (...). E foi tão ‘eficaz’ que dezessete anos mais tarde (...) o autocrata de todo o Império Romano, Constantino, (...) proclamou o cristianismo religião de Estado”.

Dado a importância do tema, Engels retomou o tema num pequeno ensaio dedicado ao estudo do cristianismo primitivo. Assim iniciou sua obra: “A história do cristianismo primitivo oferece curiosos pontos de contato com o movimento operário moderno. Como este, o cristianismo era, na origem, o movimento dos oprimidos: apareceu primeiro como a religião dos escravos e dos libertos, dos pobres e dos homens privados de direitos, dos povos subjugados ou dispersos por Roma. Os dois, o cristianismo como o socialismo operário, pregam uma libertação próxima da servidão e da miséria (...). Os dois são perseguidos e encurralados, os seus aderentes são proscritos e submetidos a leis de exceção (...). E, apesar de todas as perseguições, um e outro abrem caminho vitoriosamente. Três séculos depois do seu nascimento, o cristianismo é reconhecido como a religião do Estado e do Império romano: em menos de sessenta anos, o socialismo conquistou uma posição tal que o seu triunfo definitivo está absolutamente assegurado”. Essas seriam comprovações de que, como o cristianismo, o socialismo poderia ser vitorioso apesar da repressão e das calúnias contra os quais recaiam. Os grandes caluniadores eram justamente os membros do alto clero.

Rosa de Luxemburgo e o clero reacionário

Rosa de Luxemburgo, da mesma forma, escreveu sobre o assunto, O socialismo e as Igrejas, visando ganhar para sua causa os operários católicos poloneses e isolar o clero ultrarreacionário: “Os social-democratas propõem-se a pôr fim à exploração do povo pelos ricos. Pensar-se-ia que os servidores da igreja deveriam ter sido os primeiros a desempenhar-se desta tarefa (...). Não é Jesus Cristo quem ensina que ‘é mais fácil um camelo passar pelo furo de uma agulha que um rico entrar no Reino dos Céus’? (...) Se o clero realmente deseja que o princípio ‘Ama o teu próximo como a ti mesmo’ seja aplicado na vida real, por que é que não recebe bem e com entusiasmo a propaganda dos social-democratas? Os social-democratas tentam, através de uma luta desesperada e da educação e organização do povo, subtraí-lo à opressão em que se encontra e oferecer-lhe um melhor futuro para os filhos. Todos devem admitir que, neste ponto, o clero deveria abençoar os social-democratas, pois não é ao clero que eles servem, e sim a Jesus Cristo, que diz que ‘o que fizeres aos pobres é a mim que o fazeis’?”.

Continua Rosa: “Contudo vemos o clero, por um lado, excomungando e perseguindo os social-democratas (...). Assim, o clero, que se torna o porta-voz dos ricos, o defensor da exploração e opressão, põe-se em flagrante contradição com a doutrina cristã (...). Os padres de hoje, que combatem o comunismo, condenam, na realidade, os primeiros apóstolos cristãos, pois estes não passavam de ardentes comunistas (...). Se Cristo aparecesse na terra, atacaria com certeza os padres, os bispos e arcebispos que defendem os ricos e vivem explorando os desafortunados, como outrora atacou os comerciantes que expulsou do templo para que a presença ignóbil deles não maculasse a Casa de Deus (...). Hoje sois vós, com as vossas mentiras e ensinamentos, que sois pagãos, e somos nós quem traz aos pobres, aos explorados, as novas da fraternidade e da igualdade. Somos nós quem está a marchar para a conquista do mundo como fez aquele que outrora proclamou que é mais fácil a um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que a um rico entrar no reino do céu”.

Rosa cita o historiador alemão Vogel que ainda em 1780 constatou: “De acordo com a regra, todo cristão tinha direito à propriedade de todos os membros da comunidade, caso quisesse, podia pedir que os membros mais ricos dividissem a sua fortuna com ele, de acordo com as suas necessidades. Todo o cristão podia fazer uso da propriedade dos seus irmãos. Assim, os cristãos que não tinham casa podiam exigir do que tinha duas ou três que os recebesse; o proprietário conservava para si próprio apenas a sua própria casa. Mas por causa da comunidade de gozo dos bens, tinha de dar-se habitação àquele que a não tinha’”. Entre os primeiros cristãos, agora segue a própria autora, “o dinheiro era colocado em caixa comum e um membro da sociedade, especialmente escolhido para esse fim, dividia a fortuna coletiva entre todos. Mas isto não era tudo. Entre os primeiros cristãos o comunismo foi levado tão longe que eles tomavam as suas refeições em comum. A sua vida familiar era, portanto, abolida; todas as famílias cristãs, numa sociedade, viviam juntas, como uma única grande família (...) Deste modo, os cristãos do I e II século foram fervorosos adeptos do comunismo”. Por isso, todos se tratavam de irmãos e irmãs.

Essa situação não poderia durar muito tempo: “Ao princípio, quando os seguidores do novo Salvador constituíam um pequeno grupo na sociedade romana, a divisão do pecúlio comum, as refeições em comum e o viver debaixo do mesmo teto, eram praticáveis. Mas quando o número de cristãos se espalhou pelo território do Império, esta vida comunitária dos seus partidários tornou-se mais difícil. Em breve desapareceu o costume das refeições comuns e a divisão dos bens tomou um novo aspecto. Os cristãos não mais viveram como uma família; cada um tomou cuidado da sua própria propriedade e já não ofereciam o total dos seus bens à comunidade, mas apenas o supérfluo. As ofertas dos mais ricos dentre eles ao organismo geral, perdendo o seu caráter de participação numa vida comum, em breve se transformaram em simples esmolas, desde então os cristãos ricos deixaram de fazer caso da propriedade comum e passaram pôr ao serviço dos outros apenas uma parte do que tinham, parte que podia ser maior ou menor, consoante a boa vontade do doador. Assim, no coração do comunismo cristão, apareceu a diferença análoga à que reinava no Império Romano e contra a qual os primeiros cristãos tinham combatido. Em breve foram apenas os cristãos pobres – os proletários – que tomaram parte em refeições comuns”, afirmou Rosa.

Kautsky e o cristianismo primitivo

Um dos mais importantes estudos sobre o cristianismo primitivo foi redigido por Karl Kautsky, o principal ideólogo da social-democracia pós-Engels. Para ele “a comunidade cristã abarcava em seus primórdios, quase que exclusivamente elementos proletários e era uma organização proletária. E isto permaneceu ainda durante muito tempo após sua criação”. Cita então Friedlander – autor de Vida e costumes romanos: “é certo que antes da metade ou do final do século II, só tinham uns quantos partidários isolados entre as classes superiores (...). O pobre e o humilde, dizia Lactâncio, estão mais dispostos a crer do que o rico, cuja hostilidade, sem dúvida alguma, surgiu em muitos aspectos contra as tendências socialistas do cristianismo”. Engels, por sua vez, havia escrito: “Os gentios diziam, desdenhosamente, que os cristãos só podiam converter os ingênuos, escravos, mulheres e crianças; que os cristãos eram rudes, sem educação e rústicos; que os membros de suas comunidades eram, principalmente, pessoas sem importância”.

Kautsky constata que: “há (entre os primeiros cristãos) um selvagem ódio de classes contra o rico. Percebe-se essa condição no Evangelho de São Lucas (...). O rico é condenado pela única razão de ser rico. (...) O mesmo Evangelho faz jesus dizer: ‘Quão dificilmente entrarão no reino de Deus os que tem riqueza! Porque é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha que um rico entrar no reino de Deus’”. Ou seja, um rico entrar no reino dos Céus era quase uma impossibilidade para aqueles cristãos originais. Um dos primeiros grandes apologistas cristãos Tertuliano reafirmou: “Deus despreza os ricos e protege os pobres. O reinado de Deus foi feito para os pobres e não para os ricos”.

Nos Atos dos apóstolos, descrevendo as primeiras comunidades, lemos: “E preservaram na doutrina dos apóstolo, e na comunidade e na partilha do pão e das orações (...). E todos os que acreditavam estavam juntos e tinham todas as coisas em comum; e vendiam suas propriedades e seus bens e repartiram-nas entre todos” (II,42,44,45) “e ninguém dizia ser seu algo que possuía, mas todas coisas eram comuns. Não havia nenhum necessitado entre eles: porque todos que possuíam terras e casas, vendiam-nas e traziam os valores da venda e os punham aos pés dos apóstolos e era repetido a cada um segundo tinha necessidade”. (IV. 32, 34,35). Jesus chegou a afirmar “E qualquer um de vós que não renuncia a todas as coisas que possui, não pode ser meu discípulo”. Noutra passagem está dito: “E perguntou-lhe (a Jesus) um aristocrata. Bom, mestre, que devo fazer para possuir a vida eterna? (...) Ainda te falta uma coisa. Vende o que tens, dá aos pobres e terás tesouros no céu; então, vem e segue-me. Então, ao ouvi-lo, ficou muito triste porque era muito rico”.

“Segundo São João, os doze apóstolos possuíam uma caixa comum enquanto Jesus ainda vivia. Mas Jesus também exige que todos os outros discípulos entreguem suas propriedades”. Assim, o cristianismo primitivo: “era um vigoroso comunismo, embora confuso, que prevalecia na comunidade em seus primórdios, uma condenação de toda propriedade privada, um impulso por uma ordem social nova e melhor, em que todas as diferenças de classe desaparecerem com a divisão da propriedade (...). A primeira comunidade comunista do Messias formou-se em Jerusalém (...). Mas as comunidades logo surgiram em outras partes que tinham um proletariado judaico.” Logo surgiram entre os não judeus.

O comunismo dos primeiros cristãos foi sofrendo várias modificações com o passar dos anos, mesmo no período anterior a sua transformação em religião oficial do Estado sob Constantino. A primeira delas foi o próprio aumento dos adeptos e das comunidades, distribuídas em várias regiões. A segunda foi o ingresso gradual de setores sociais mais privilegiados. “Na medida que aumentava a influência das classes educadas sobre o cristianismo, este se distancia cada vez mais do comunismo”, diz Kautsky.

Ainda segundo esse autor, originalmente, “a comunidade cristã deve ter sido, sobretudo, uma organização de luta (...). Isso correspondia plenamente à situação histórica da coletividade judaica do seu tempo”, ocupada e oprimida pelos romanos. “Seria totalmente incrível se precisamente uma seita proletária houvesse permanecido intocada pela atmosfera geral revolucionária”. Naquela época eram comuns as revoltas individuais e coletivas contra a dominação romana. “Mas a situação mudou após a destruição de Jerusalém. Os elementos que haviam dado a comunidade messiânica seu caráter rebelde foram derrotados. E a comunidade do Messias tornou-se cada vez mais uma comunidade antijudaica, dentro de um proletariado não judaico, que não tinha capacidade nem desejo de lutar (...). O reino de Deus que deveria descer do Céu para Terra, transferiu-se cada vez mais para o Céu (...). Na medida em que a esperança messiânica no futuro assumiu cada vez mais uma forma celestial, tornou-se politicamente conservadora ou indiferente”. É claro que esse processo não se deu da noite para o dia e sem inúmeras contradições.

Começou-se a pregar o respeito cego às autoridades, sejam quais fossem. Lemos na Epístola de São Paulo aos Romanos: “Todo homem se submeta às autoridades superiores, pois não há autoridade senão de Deus, onde ela há, por Deus é ordenada. Assim, quem se opõe à autoridade resiste à ordem de Deus; e os que resistem recebem a condenação ao inferno”. Muitos afirmam que esta formulação subserviente ao poder seria uma maneira de proteger a pequena e fragilizada comunidade cristã das autoridades imperiais romanas. O problema é que muitas das práticas pagãs obrigatórias, como a veneração ao Imperador e a participação nos cultos do Estado, não eram obedecidas a contento pelos cristãos. Isso levava a uma eterna desconfiança sobre eles, por mais que buscassem demonstrar respeito aos governantes de plantão. Isso explica, em parte, as várias perseguições sofridas até o século IV.

A mesma concessão foi feita em relação à escravidão, que os primeiros cristãos não viam com bons olhos: “O autor da Epístola de Paulo aos Colossenses (...) ordena aos escravos o seguinte: ‘servos, obedecei em tudo os vossos senhores não servindo apenas sob vigilância (...), mas com simplicidade de coração, temendo ao Senhor’. O autor da Primeira Epístola de Pedro – provavelmente escrita no tempo de Trajano – usa termos ainda mais claros: ‘Servos, sede submisso com todo temor a vossos senhores; não somente os bons e humanos, mas também os indignos’”. Isso repete-se na Primeira Epístola de Paulo a Timóteo: “E os que tem senhores fiéis (cristãos) não os menosprezem por serem irmãos; sirvam-nos com ainda melhor vontade, pois são fiéis e participantes das refeições comuns e se dedicam às boas ações”. Naquele tempo escravos e senhores chamavam-se de irmãos e compartilhavam conjuntamente da ceia cerimonial. O cristianismo era uma religião universal que buscava incluir a todos, independentemente da nacionalidade, incluindo os escravos. No entanto, não advogou a abolição da escravidão, mesmo nos seus primeiros anos. O escravismo era o Modo de Produção da época, a base econômica do Império romano. O abolicionismo, como movimento, seria algo extremamente revolucionário e perigoso.

“Mas, para fazer com que os ricos se sentissem bem dentro da comunidade, o caráter dele tinha de mudar: ódio de classe aos ricos tinha que ser abandonado. O espirito proletário combativo da comunidade foi prejudicado por esse esforço de atrair o rico e fazer-lhe concessões, como sabemos a Epístola de Tiago às 12 tribos da diáspora (...) admoesta os membros de algumas igrejas: ‘Porque se em nossa comunidade entra um homem com anel de ouro e trajes luxuosos e também entra um pobre com roupas modestas e tratardes com deferência ao que traz as roupas preciosas e lhe disserdes: Senta-se aqui em bom lugar. E disserdes aos pobres: Fica em pé, ou senta-se abaixo do estrado dos meus pés (...). Se fazeis essa diferença entre pessoas, cometeis pecado’. Conclui Kautsky: “Na teoria, o comunismo não foi largado; e, na prática, unicamente o rigor de sua aplicação parecia ter se suavizado (...). Apesar do comunismo haver se enfraquecido muito, as refeições em comum continuaram ainda a ser vínculo firme que unia todos os camaradas”. Alguns séculos depois isso desapareceria. Das refeições comunitárias cotidianas participavam apenas os pobres. Os ricos compartilhavam a comunhão durante a missa em lugares especiais. Prática consolidada na “Idade Média”.

Heranças do comunismo cristão

Segundo Iakov Lentman, “seria, no entanto, um erro pensar que já na primeira metade do século II o cristianismo era a religião das classes dominantes de Roma. O reconhecimento da escravatura e o apelo à submissão dirigido aos escravos testemunham antes uma manifestação de fidelidade ao Império, e não o aparecimento nas comunidades cristãs de um contingente influente de possuidores de escravos (...). A composição social das comunidades era ainda bastante homogênea e incluía, para além dos escravos, artesãos e trabalhadores das cidades. Não é por acaso que no segundo grupo de Epístola paulinas se encontram frequentemente apelos a ‘trabalhar com as próprias mãos’ (I Tessalonicenses, IV, 11) (...). O célebre preceito: ‘Se alguém não quiser trabalhar, que não coma também’ (II Tessalonicense, III, 10) só pode evidentemente surgir num meio laborioso”. E continua: “mas, é visível que a partir da segunda metade do século II as camadas dominantes da população começam já a desempenhar um papel decisivo no seio das comunidades cristãs”.

Gerard Walter, por sua vez, afirma: “Teoricamente, o princípio da comunidade dos bens, tal como a abolição de toda a propriedade privada, permanecia inscrito em lugar de honra no programa da sociedade cristã primitiva. Na prática, depressa se havia regressado às formas econômicas da sociedade burguesa pagã da época. De compromisso em compromisso, de concessão em concessão, no espaço de vinte anos os preceitos igualitários ditados imperativamente pelos primeiros fundadores do cristianismo (...) tinham-se pouco a pouco transformado numa espécie de recomendação platônica que é para recordarmos, mas cuja realização integral era antecipadamente tida como impossível. (...) Mas, apesar de toda fragilidade desta tentativa (...) o simples fato da existência nos primeiros anos da era cristã de uma pequena sociedade de homens que se esforçaram por fazer durar tanto tempo quanto lhes foi possível o regime comunista no seu meio deixou um traço profundo no espírito das gerações que se seguiram (...) tiveram uma repercussão imensa através de séculos e séculos”.

Mesmo depois de um certo acomodamento do cristianismo e o seu afastamento do comunismo, vários “padres da Igreja” continuaram denunciando o crescimento das desigualdades sociais na comunidade cristã, o privilégio dado aos mais abastados e exortando a se voltarem ao espírito do comunismo dos primeiros Apóstolos. São Basílio, ainda no Século IV, dirigindo-se aos ricos afirmou: "Miseráveis, como vos ireis justificar diante do Juiz do Céu? Vós dizeis-me: ‘Qual é a nossa falta, quando guardamos o que nos pertence’? eu pergunto-vos: ‘Como é que arranjastes isso a que chamais de vossa propriedade? Como é que os possuidores se tornam ricos, senão tomando posse das coisas que pertence a todos? Se todos tomassem apenas o que estritamente necessitam, deixando o resto aos outros, não haveria nem ricos nem pobres".

São João Crisóstomo, patriarca de Constantinopla, também pregou à volta aos Apóstolos: "E havia uma grande caridade entre eles (os Apóstolos); ninguém era pobre entre eles. Ninguém considerava como seu o que lhe pertencia, todas as suas riquezas estavam em comum (...) uma caridade existia em todos eles. Esta caridade, consistia em que não havia pobre entre eles, de tal modo que os que tinham bens apressavam-se a desprender-se deles. Não dividiam as suas fortunas em duas partes, dando uma e guardando a outra; davam o que tinham. Assim não havia desigualdade entre eles. Todos viviam em grande abundância. Tudo se fazia com o maior respeito”. Em outro momento afirmou: “Ninguém pode enriquecer honestamente. Mas, poderão objetar-me, se um homem herdar riquezas de seus pais? Pois bem, ele herdará riquezas adquiridas desonestamente”. Invertendo a lógica liberal, Santo Ambrósio afirmou: “O direito comunista foi criado pela natureza. O direito à propriedade privada foi instituído pela violência”. Assim, a propriedade privada não é um direito natural.

Kautsky concluiu: “Se o comunismo foi admitido oficialmente como exigência fundamental da comunidade, certamente semelhante reconhecimento só foi feito porque era impossível negá-lo, porquanto a tradição nesse ponto tinha raízes demasiado profundas e era amplamente conhecida”. Durante a chamada Idade Média elementos desse comunismo primitivo renasceriam em várias comunidades cristãs (católicas e protestantes), em grande parte, consideradas heréticas e duramente perseguidas, a exemplo de Thomas Munzer, os cátaros, os hussitas, os waldenses e os diggers na Revolução Inglesa. Mais recentemente esse espírito renasceu na Teologia da Libertação, já sob influência do marxismo. Como ocorreu com aquelas correntes que buscaram reaproximar o cristianismo e o socialismo (ou comunitarismo), ela foi perseguida e calada pela alta hierarquia da Igreja Católica. O mesmo fenômeno ocorreu em relação às igrejas protestantes. Contudo, não há como impedir que os interesses e a luta dos trabalhadores empobrecidos – a velha e boa luta de classes – emerja no interior dessas igrejas que têm bases populares, ainda que colateralmente.

De Jesus Cristo aos falsos messias

Segundo os Evangelhos, Cristo nasceu numa manjedoura, dentro de um estábulo, e era filho de carpinteiro, possivelmente profissão exercida por ele durante sua infância e adolescência, antes de iniciar suas pregações. Portanto, foi um jovem proletário. Sempre viveu entre as pessoas mais humildes, excluídas socialmente: mendigos, leprosos, prostitutas etc. Os seus primeiros seguidores eram simples pescadores. Ele não tinha propriedades pessoais e o mesmo exigia dos seus apóstolos. Não era frequentador de palácios reais, nem tinha convivência íntima com os ricos e poderosos da época. E a pobreza, inclusive, era a condição essencial para participar da sua comunidade. Protegeu a adúltera Maria Madalena quando fanáticos religiosos, seguindo à risca as leis do Templo, queriam apedrejá-la. Disse-lhes: “Quem de vós não tem pecado que atire a primeira pedra”. Hoje vemos pastores apedrejando (ainda que virtualmente) LGBTIs, feministas, petistas, comunistas e membros de religiões afro-brasileiras. Jesus expulsou os mercadores do templo em Jerusalém. Quantos templos não viraram verdadeiros mercados persas, onde os bens religiosos são vendidos e os recursos transformados em novos negócios rendosos? Quantos altos dignitários das igrejas não se enriqueceram às custas dos fiéis e outros meios?

E, por fim, pelas suas palavras e ações, Jesus foi condenado por dois poderes: o clerical e o imperial. Assim, ele foi o mais famoso preso político da história da humanidade, torturado e executado barbaramente na Cruz, forma mais degradante de morte entre os romanos. Morreu ao lado de dois ladrões e a um deles perdoou e disse que se encontrariam no reino do Céu. Jesus e os primeiros cristãos, decerto, não aceitariam frases bolsonaristas: como “bandido bom é bandido morto”. Tomemos cuidado com esses novos Messias que agora defendem os ricos, disseminam o ódio aos diferentes, a tortura, o armamento geral e até o genocídio.

* Augusto C. Buonicore é historiador e diretor de publicações da Fundação Maurício Grabois. Autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros; Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas; e Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução. Todos publicados pela Fundação Maurício Grabois e Editora Anita Garibaldi.

Bibliografia

BEER, Max. História do socialismo e das lutas sociais, Centro do livro brasileiro, Lisboa, s/d

BETTO, Frei. Cristianismo & marxismo, Ed. Vozes, Petrópolis, 1986.

ENGELS, Friedrich. O cristianismo primitivo, Ed. Laemmert, s/d

KAUTSKY, Karl. A origem do cristianismo, Ed. Civilização Brasileira, RJ. 2010

LENIN, V. I. Lenin e a religião, Assírio&Alvim, Lisboa, 1974

LENTSMAN, Iakov. A origem do cristianismo, Ed. Caminho, Lisboa, 1988

LOWY, Michael. Marxismo e teologia da libertação, Ed. Cortez, SP, 1991

LUXEMBURGO, Rosa. O socialismo e as igrejas: o comunismo dos primeiros cristãos, Ed. Achiamé, RJ, 1981.

MARX, Karl & ENGELS. Sobre a religião, Ed. 70, Lisboa, 1972

RENAN, Ernest. A vida de Jesus, Ed. Martin Claret, SP, 1995

WALTER, Gérard. A origens do comunismo: judaicas-cristãs-gregas-latinas, edições 70, Lisboa, 1976

Novo Testamento

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente: