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Tá com medinho, capitão?, zombava, em 25/10, um “meme” de Outras Palavras. Na véspera, Jair Bolsonaro pedira ao Exército para “monitorar” a possível chegada ao Brasil da onda de protestos que sacudia o Chile, desafiando o Estado de Emergência e os tanques de guerra. Nas horas seguintes, ficaria claro que, sim, a revolta era temida pelo presidente e pelos que comandam sua estratégia para manter-se no poder. Já no sábado de manhã, circulava, nas redes sociais bolsonaristas, a ordem: nada de atiçar as ruas. Manifestações para execrar o STF a pretexto da possível libertação de Lula, antes convocadas – com arrogância e em tom desafiador – para 3/11, foram rapidamente abortadas. O astrólogo Olavo de Carvalho deixou claro o receio: “Meu povo amigo, (…) não vamos participar de manifestação alguma na próxima semana. A onda de parar o Brasil (…) só favorece a esquerda”.
O temor é resultado óbvio do vendaval político que sacudiu o cenário da América do Sul nos últimos trinta dias. A onda conservadora que percorria a região há quatro anos, e que parecia prestes a engolir também a Bolívia e o Uruguai, foi quebrada. Os governos do Chile e do Equador foram abalados por manifestações gigantescas. Borraram-se, ao recorrer à intervenção militar contra a população, humilharam-se quando também esta fracassou e viram-se obrigados a ceder. As perdas não são pequenas. O primeiro país é apontado, pelos próprios neoliberais, como caso “exemplar” da aplicação de suas políticas. O segundo converteu-se, há dois anos, em estridente peão da geopolítica dos Estados Unidos e das brutalidades de Donald Trump.
Mas aos levantes populares somaram-se as eleições. Em 27 de outubro, elas colocaram forças claramente opostas ao neoliberalismo no poder, na Argentina – um país cuja importância geopolítica poderá crescer, no vácuo do Brasil, em caso de sucesso do novo governo. Uma semana antes, Evo Morales vencera na Bolívia, e parece capaz de enfrentar a campanha infundada que busca contestar o resultado. Na mesma data da vitória de Alberto Fernández em Buenos Aires, a Frente Ampla venceu no vizinho Uruguai, embora tenha pela frente um difícil segundo turno. Simultaneamente, na Colômbia, outro país de enorme peso regional, o principal partido de direita, comandado pelo ex-presidente Alvaro Uribe, sofria dura derrota nas eleições municipais e regionais. A capital, Bogotá, escolheu pela primeira vez uma prefeita – Cláudia Lopez, lésbica e integrante da coalizão à esquerda formada pelo Polo Democrático e Partido Verde.
Quando Bolsonaro tomou posse, em 1º de janeiro, temia-se o avanço avassalador da direita. Agora, temos uma América do Sul simbolicamente dividida – e há uma ofensiva, ainda discreta porém nítida, das ideias que querem superar o neoliberalismo. Quais as características deste movimento? Quão consistente ele é? Poderá articular-se em toda a região? Expressa um passo adiante em relação à onda rosa que atravessou a América do Sul da virada do século até a metade desta década? Como poderia espraiar-se também pelo Brasil? É, evidentemente, muito cedo para dizer. Mas vale examinar com atenção o que é novo. No curto espaço de tempo deste Outubro Rebelde, afloraram, além da luta de ruas, cinco tendências que desafiam o pensamento convencional sobre a a situação política no continente e por isso merecem ser analisadas com atenção.
1. A ultrapolarização despolitiza – é preciso ter coragem de rompê-la
A contraofensiva que eclodiu nas últimas semanas, e que permitirá terminar o ano em meio a alguma esperança, tem um marco inicial evidente. Em 18 de maio, Cristina Kirchner surpreendeu a Argentina ao anunciar que não seria candidata à presidência. Optava, em vez disso, por disputar a vice-presidência, ao lado de Alberto Fernández. O gesto teve enorme potência. É provável que tenha definido o resultado das eleições. Mas ainda não foi compreendido pelos que alimentam a ultrapolarização, julgando que, embora provocada pela ultradireita, ela terminará por favorecer a esquerda.
No cenário atual da América do Sul, ultrapolarizar é uma tática despolitizadora, argumentava um texto publicado à época por Outras Palavras. Permite suprimir o diálogo e o debate sobre temas cruciais para região e seus países. Oferece à ultradireita a oportunidade de galvanizar uma parcela do eleitorado muito superior à que a apoiaria em condições normais – porque desperta e articula os preconceitos mais profundos do pensamento colonial. A necessidade de submeter os diferentes, inclusive por meio da força bruta. A negação de autonomia aos não-brancos ou não-machos. A aceitação da supremacia dos que são militar ou economicamente mais fortes. Tudo isso aflora, mobiliza e se autojustifica – a pretexto de um suposto “ataque”, promovido pelo Foro de São Paulo, pela “Ursal”, pelo “marxismo cultural” ou pela “ameaça feminista”.
Do ponto de vista especificamente eleitoral, a ultrapolarização pode ser ainda mais eficaz. Ele oferece, a projetos muito impopulares (o de Macri na Argentina, ou o do golpe de 2016 no Brasil) a oportunidade de evitar o julgamento popular e de deslocar o centro do debate para o que lhes interessa. Foi a “ameaça do petismo”, em 2018. Seria a “volta do peronismo” este ano, na Argentina.
Cristina esquivou-se com um drible que faria jus a Maradona. Ao indicar Alberto Fernández, deixou de se oferecer como alvo e esvaziou o argumento essencial de Macri e do neoliberalismo na Argentina. Despolarizar permitiu repolitizar, ou seja, debater o essencial: a crise social e econômica profunda do país e suas causas. Foi necessário, porém, enorme desprendimento e noção de tempo político. Nesta matéria da BBC, a jornalista Camila Veras Mota resgata as circunstâncias da decisão da ex-presidente. Ela mostra que teve peso crucial o exame da experiência do Brasil, onde a insistência de Lula em manter sua própria candidatura inviabilizou o processo de repolitização. Haddad não era proposta, mas apenas um substituto, uma máscara. A pergunta incômoda, no Brasil, é: terá havido aprendizado?
A contraofensiva que eclodiu nas últimas semanas, e que permitirá terminar o ano em meio a alguma esperança, tem um marco inicial evidente. Em 18 de maio, Cristina Kirchner surpreendeu a Argentina ao anunciar que não seria candidata à presidência. Optava, em vez disso, por disputar a vice-presidência, ao lado de Alberto Fernández. O gesto teve enorme potência. É provável que tenha definido o resultado das eleições. Mas ainda não foi compreendido pelos que alimentam a ultrapolarização, julgando que, embora provocada pela ultradireita, ela terminará por favorecer a esquerda.
No cenário atual da América do Sul, ultrapolarizar é uma tática despolitizadora, argumentava um texto publicado à época por Outras Palavras. Permite suprimir o diálogo e o debate sobre temas cruciais para região e seus países. Oferece à ultradireita a oportunidade de galvanizar uma parcela do eleitorado muito superior à que a apoiaria em condições normais – porque desperta e articula os preconceitos mais profundos do pensamento colonial. A necessidade de submeter os diferentes, inclusive por meio da força bruta. A negação de autonomia aos não-brancos ou não-machos. A aceitação da supremacia dos que são militar ou economicamente mais fortes. Tudo isso aflora, mobiliza e se autojustifica – a pretexto de um suposto “ataque”, promovido pelo Foro de São Paulo, pela “Ursal”, pelo “marxismo cultural” ou pela “ameaça feminista”.
Do ponto de vista especificamente eleitoral, a ultrapolarização pode ser ainda mais eficaz. Ele oferece, a projetos muito impopulares (o de Macri na Argentina, ou o do golpe de 2016 no Brasil) a oportunidade de evitar o julgamento popular e de deslocar o centro do debate para o que lhes interessa. Foi a “ameaça do petismo”, em 2018. Seria a “volta do peronismo” este ano, na Argentina.
Cristina esquivou-se com um drible que faria jus a Maradona. Ao indicar Alberto Fernández, deixou de se oferecer como alvo e esvaziou o argumento essencial de Macri e do neoliberalismo na Argentina. Despolarizar permitiu repolitizar, ou seja, debater o essencial: a crise social e econômica profunda do país e suas causas. Foi necessário, porém, enorme desprendimento e noção de tempo político. Nesta matéria da BBC, a jornalista Camila Veras Mota resgata as circunstâncias da decisão da ex-presidente. Ela mostra que teve peso crucial o exame da experiência do Brasil, onde a insistência de Lula em manter sua própria candidatura inviabilizou o processo de repolitização. Haddad não era proposta, mas apenas um substituto, uma máscara. A pergunta incômoda, no Brasil, é: terá havido aprendizado?
2. A esquerda não está condenada a ser sistema
Reducción de las dietas [salários] parlamentarias. Incomum nos documentos tradicionais da esquerda, esta reivindicação ajudou a convocar, no Chile, a manifestação gigante de 25/11, que forçou o presidente Sebastián Piñera ao primeiro grande recuo. Estava associada às cinco ou seis bandeiras que implicam reversão do projeto neoliberal, ao fim do Estado de Exceção (conquistado em seguida) e à exigência de uma Assembleia Constituinte. Sua presença tem caráter emblemático. As revoltas do Equador e do Chile tiveram êxito também porque assumiram – e politizaram – a ira da população contra um sistema institucional que sequestrou a democracia. Ao fazê-lo, impediram que a direita capturasse esta queixa, que se espalha pelas sociedades, e lhe desse sentido autoritário ou protofascista.
Nos dois países, rompeu-se uma prisão que a esquerda histórica impõe a si mesma quando assume, de modo acrítico, a defesa de um sistema político visivelmente capturado pelo poder econômico. E este cacoete tem força especial no Brasil, onde o acomodamento de militantes no aparelho de Estado vem de longa data, assumiu proporções espantosas nos governos Lula e Dilma e contribuiu de modo decisivo para amortecer as lutas sociais. Mas manteve-se mesmo depois do golpe de 2016. Está presente até mesmo nas melhores falas de Lula – como a “discurso da jararaca”, que ele fez em setembro daquele ano, logo após ser coagido a depor na Polícia Federal.
Ao defender o establishment, a esquerda tranca três bolas de ferro em seu próprio tornozelo. A primeira, ao tornar-se cúmplice de práticas e personagens execrados, com razão, pelas maiorias. A segunda, ao defender as instituições que bloqueiam as mudanças estruturais indispensáveis para construir uma sociedade mais justa. A terceira, e mais pesada, por oferecer à ultradireita a enorme avenida de um combate fictício à “velha política”. Ao livrarem-se destas bolas de ferro, chilenos e equatorianos giraram uma chave que pode ser decisiva para reconstruir o pensamento e a ação anticapitalistas.
3. As multidões podem dirigir a si mesmas – até certo ponto…
Até que ponto as multidões em luta podem auto-organizar seu movimento? Como responder às iniciativas do poder, aos atos dos provocadores, ou articular a comunicação com a sociedade – e manter coesão? A inteligência coletiva que se produz nestas ocasiões é suficiente para lidar com sucessões de fatos novos, súbitas reviravoltas, simulações, ciladas? Estas questões, que são objeto de estudo e despertam ampla polêmica, entre entre as organizações políticas e nas ciências sociais, puderam ser examinadas a quente, durante o Outubro Rebelde da América do Sul.
Mais uma vez, o laboratório principal foi o Chile. As observações são ainda provisórias: tudo se passou há muito pouco, ou se passa ainda; revelações futuras poderão, eventualmente, jogar luz sobre o que não se vê agora. Mas vale registrar o que já é sabido e formular hipóteses a respeito.
A. Embora tenha sido deflagrada após chamamento de uma entidade estudantil (a Assembleia Coordenadora dos Estudantes Secundaristas – ACES), a revolta contra o aumento das passagens de metrô – estopim dos protestos – espalhou-se por espontaneidade. Ganhou corpo pouco a pouco, a partir de 1º de outubro, mais ou menos como a luta contra o aumento das passagens de ônibus, no Brasil, em junho de 2013. Foi favorecida por uma forma de luta particular: as evasiones, ou pula-catracas, que podem ser reproduzidas autonomamente por pequenos grupos e compartilhadas nas redes sociais, multiplicando e capilarizando os protestos.
B. A partir de 18/10, uma sexta-feira, o movimento agigantou-se, em resposta à repressão policial. É o mesmo padrão registrado em quase todas as “novas revoltas” que se espalharam pelo mundo, a partir de 2011. Então, em menos de 24 horas, Piñera descreveu um ziguezague duplo. Na madrugada do sábado, decretou Estado de Emergência e convocou os militares a reprimir os protestos. Na tarde do mesmo dia, recuou do aumento das passagens. No domingo, falou em “guerra” contra os manifestantes. Neste fim de semana crucial, em que não parece ter havido comando algum, a inteligência coletiva respondeu de forma notável. As multidões reagiram à repressão com mais mobilização e rechaçaram a “oferta” do presidente – revogar o aumento da tarifa, mas manter o Estado de Emergência.
C. Mas derrotar o governo, num cenário de intervenção militar, mais de uma dezena de mortos (foram vinte, ao final da onda de protestos) e de duas mil prisões exigia dar um passo adiante. Foi então que emergiu uma forma organizativa nova, a Plataforma de Unidade Social. Reunia cerca de 60 organizações: as redes que lutam por um novo sistema de aposentadorias, pela republicização da água (privatizada no Chile) e contra os acordos de “livre” comércio; o feminismo; a Central Única de Trabalhadores e os sindicatos mais ativos; entidades estudantis e de educadores; ONGs ligadas às lutas sociais. Fora criada semanas antes, em setembro, para articular crítica e ações contra o projeto neoliberal. Sua presença na cena chilena era, até então, mínima. Mas sua representatividade social a credenciava a assumir um papel na revolta.
A Unidade Social, como se tornou conhecida, foi decisiva para articular os lances decisivos da luta contra Piñera: a greve geral em 23 e 24/10; e a megamanifestação de 1,2 milhão de pessoas que desmoralizou, na sexta-feira passada (25/10), o Estado de Emergência. Na tarde de domingo (27/10), Piñera finalmente cedeu. As medidas de exceção foram revogadas e o exército saiu das ruas.
D. A Unidade Social lançou, então, uma nova fase da luta – menos intensa, porém mais capilar. As reivindicações antineoliberais se mantêm, assim como a exigência de uma Assembleia Constituinte. Mas o objetivo agora é organizar e dar densidade ao movimento. Para isso, criaram-se os Cabildos e Assembleias Cidadãs. São articulações informais, que podem reunir-se nas praças, nas organizações populares ou nas casas de quem os deseje reunir. Visam debater os problema do país e as alternativas. Esta repolitização, acredita-se, poderá abrir terreno para a Constituinte.
E. Convocar a Assembleia exige, obviamente, articulação institucional. Ela já começou. O concerto central é com um bloco parlamentar (No más abusos) que reúne Frente Ampla, Partido Comunista e Partido Progressista: os que se recusaram a dialogar com Piñera enquanto durou o Estado de Exceção. Mas busca-se também a adesão de setores do Partido Socialista (moderado, no poder entre 2006-10 e 2014-18).
A eclosão de uma revolta espontânea não derrubou o poder conservador no Chile. Mas em um mês, o cenário do país se transformou. A agenda neoliberal, que avançava, está interrompida e questionada. Há um horizonte alternativo claro. Parte central do Outubro Rebelde, o Chile volta a lembrar que a luta social é o motor das transformações; e que delas pode surgir não apenas inteligência coletiva, mas também as estruturas organizativas que podem levá-la a novos patamares.
4. É possível neutralizar a violência das armas
Foram ao menos sete mortos no Equador e vinte no Chile. Houve milhares de pessoas presas, e inúmeras denúncias de abusos (inclusive sexuais) nas dependências da polícia. Atropelamentos propositais. Espancamentos constantes nas ruas, inclusive de adolescentes. Estado de emergência e exército contra a população. O neoliberalismo latino-americano tirou as máscaras e mostrou as garras, nos dois países. Lênin Moreno e Piñera adotaram, contra protestos pacíficos, selvageria que era antes associada apenas a déspotas caricatos – como Hosni Moubarak, na Primavera Árabe egípcia (no Brasil, Bolsonaro já anunciou que fará o mesmo, em condições semelhantes).
Porém, no que diz respeito à repressão, algo muito mais relevante, portador de futuros e em certa medida inédito surgiu, durante o Outubro Rebelde. Ficou claro que, em certas condições, as lutas sociais podem resistir à violência militar, arma extrema dos Estados autoritários. Não por meio da força, é claro. Basta observar o armamento atual dos policiais, em todo o mundo, os dispositivos tecnológicos e acesso a bancos de dados que têm em seu favor, as armaduras Robocop que os blindam ou as cores propositadamente ameaçadoras de seus uniformes para perceber que não é possível fazer-lhes frente. Mas pode-se paralisá-los, impedi-los de usar a enorme superioridade bélica que possuem diante da multidão.
De distintas maneiras, Chile e Equador foram, no último mês, laboratórios valiosíssimos (e muito bem sucedidos) de resistência ativa ao uso da violência. Examine, em particular, duas cenas em Santiago, ambas sob Estado de Exceção. Em 19/10, quando os protestos estão tomando as praças, o exército envia soldados e tanques de guerra para desocupá-las. Como a brutalidade da repressão já havia se manifestado, os riscos para os manifestantes são evidentes. Mas estes não recuam: colocam-se diante dos blindados, cujos condutores hesitam. Já em 25/10, a Unidade Social convoca a marcha más grande de Chile. Piñera já havia, então, declarado “guerra” contra a população revoltada. Carabineros (polícia militar) e soldados cercam a Praça Itália, fortemente armados. Mas os rios de gente começam a chegar, engrossam, tomam todo o espaço. Em breve, serão 1,2 milhão de pessoas, que cantam, dançam por horas e se recusam a voltar para suas casas. Os soldados têm, é óbvio, armamento para reprimi-las – mas lhes faltam condições políticas e mesmo psíquicas. A força militar é derrotada. Sem recursos, Piñera só tem, como alternativa, recuar. Em menos de 48 horas, ele anunciará o fim do Estado de Exceção e do toque de recolher.
No Equador, onde não houve manifestações tão gigantescas, a multidão enfrentou o exército de formas distintas. Primeiro, em enfrentamentos de rua, onde grandes massas de jovens resistiam ao avanço dos soldados com seus corpos, ou os enfrentavam a pedradas. Mais tarde, com a chegada à capital de 20 mil indígenas, que se instalaram em escolas e centros culturais, transformaram-nos em espaços de assembleias e tornaram muito alto o custo de um desalojamento forçado. Adicionalmente, a Confederação Indígena (Conaie), decretou seu próprio “estado de exceção” nos territórios originários, onde militares chegaram a ser detidos.
Por que a resistência aos tanques, que não foi possível em tantos momentos da história da América Latina, agora tornou-se eficaz? Encontrar a resposta exigirá esforço teórico complexo – porém, indispensável e urgente, porque está em jogo algo de enorme relevância para as lutas sociais. Vale, entre muitas outras, considerar a contribuição de dois chilenos ouvidos pelos jornalistas em 19/10, quando começou a fase mais intensa da revolta em Santiago e houve saques. “Não gosto que quebrem tudo, mas de repente essas coisas têm que acontecer, para que deixem de brincar conosco, aumentando preço de tudo, menos salários, para que os ricos deste país sejam mais ricos”, disse a vendedora Alejandra Ibánez, de 38 anos. “As pessoas estão cansadas e sem medo”, acrescentou Francisco Vargas, funcionário público de 33 anos.
5. Um novo projeto estará em gestação?
Enquanto Jair Bolsonaro rosna, Alberto Fernández, o novo presidente argentino, age. Nesta sexta-feira (1º/11), menos de uma semana depois de eleito e faltando ainda cinco semanas para tomar posse (em 10/12), ele iniciará sua primeira viagem internacional. O destino foi escolhido a dedo: Cidade do México. Ao encontrar-se com López Obrador – presidente do país e identificado como ele próprio com uma crítica moderada, porém consistente, ao neoliberalismo –, Fernández lançará ao menos dois sinais. Um, a Bolsonaro, sobre a possível constituição de um eixo autônomo na América Latina – contrário, portanto, ao alinhamento canino do presidente brasileiro a Washington. Outro, a Donald Trump, que se apoia em Brasília para tentar impor à região o retorno à condição de quintal.
Desde que eleito, Alberto Fernández não voltou a falar sobre Economia, mas especula-se que tentará tirar seu país da situação dramática em que se encontra contestando as “receitas” do FMI. Reduzirá os juros internos, que o Fundo manda elevar (e Macri obedeceu…). Negará o dogma que manda não intervir nos mercados – lançando um plano ambicioso de estímulos à ocupação dos desempregados e às pequenas e médias empresas.
Movimentos sociais autônomos (como os do Chile e Equador) e governos que resistem ao neoliberalismo (ainda que sem a mesma radicalidade) poderão constituir duas pernas – independentes, porém articuladas – de um novo projeto alternativo para a América Latina?
Parece necessário – inclusive porque o projeto anterior, que marcou a primeira década do século e a metade da segunda, na região, esgotou-se. Mostram-no os casos da Bolívia e Uruguai. No primeiro país, Evo Morales, por certo o presidente que mais fez contra a dominação colonial, venceu por um tris as eleições, no primeiro turno. Uma segunda volta lhe seria muito difícil – como será no Uruguai, para Daniel Martínez, candidato da Frente Ampla.
Mas que bases poderiam sustentar um novo projeto de esquerda na região? A agenda chilena e, por oposição, a argentina oferecem boas pistas: Serviços Públicos, Bens Comuns. Em Santiago, pede-se Previdência digna (e pública), Educação, Saúde, Jornada de 40 horas, Salário mínimo decente, desprivatização da água. Em Buenos Aires, Macri caiu por privatizar tudo o que pôde, permitir que os novos donos dos serviços impusessem tarifas escorchantes, aceitar uma financeirzação que deixou milhões de desocupados e empobrecidos, além de devastar os pequeno empreendedores.
Se, nesta nova etapa que se abre, Fernández, Lopez Obrador, Evo e Daniel Martínez – os quatro possíveis pontos de apoio de uma mudança – adotarem políticas sintonizadas com estes anseio pelo Comum, certamente atrairão a atenção dos que foram às ruas em Santigo e Quito – ou dos muitos que, em todos os países latino-americanos, também ressentem-se da desigualdade e da surdez do sistema político; também sentem que a vida perde o sentido, submetida às lógicas atuais; também também estão, aos poucos, perdendo o medo.
Não será fácil: o silêncio quase sepulcral da velha mídia diante das mortes e das brutalidades dos governos neoliberais no Chile e Equador; ou a tolerância das elites brasileiras às tendências abertamente fascistas de Bolsonaro relembram quanto o capitalismo divorciou-se da democracia.
Não será impossível, tampouco. O planeta está saturado das políticas hoje hegemônicas, como demonstram, por exemplo, o surgimento precoce da geração política dos muito jovens, ou o fato de, mesmo nos Estados Unidos, a ideia de “socialismo” ter se tornado, para a juventude, mais atraente que a de “capitalismo”.
É improvável prever qualquer desfecho. Mas algo parece certo: o Outubro Rebelde reacendeu a disputa política na América Latina. Há de novo, ao menos em esboço, um choque de projetos. Para quem tiver coração, será um deleite envolver-se na disputa. Quem preferir a condição de espectador assistirá, provavelmente, a algo memorável. As luzes estão se apagando, o bzzzzzzz das campainhas vem aí. Escolha seu papel, sua ética, seu lugar. Breve, vai começar!
Espectacular tu articulo www.queverenz.com/europa/espana/valdemoro/
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