terça-feira, 19 de novembro de 2019

EUA: Os campos de detenção da Era Trump

Por Marianna Braghini, no site Outras Palavras:

Todos os anos dezenas de milhares latinos, frente a pobreza e a violência, acabam se lançando em perigosas viagens para atravessar a fronteira dos EUA. Eles vêm de países que há décadas estão sob alguma forma de dominação política e econômica dos EUA, cuja agenda de política externa é voltada a garantir as condições de subdesenvolvimento e dependência econômica a que são submetidos os países latino-americanos – e isso o fazem até mesmo por meio da desestabilização de governos via violência armada, gerando crises políticas e conflitos civis.

Em mais uma tentativa de endurecer as regras para entrada no país em sua cruzada anti-imigrantes, o governo Trump anunciou uma proposta de cobrança para os pedidos de asilo feitos. A ideia é cobrar uma taxa inicial de U$ 50 para pedidos de asilo e mais U$ 490 para a concessão de permissão para trabalhar. Além disso, houve um significativo aumento nas taxas para concessão de cidadania e renovação da DACA (Deferred Action for Childhood Arrivals), cujo propósito é impedir a deportação de jovens imigrantes que chegaram ao país quando crianças e que concede, além de proteção contra deportação e permissão para trabalhar – válido por 2 anos com possibilidade de renovação.

A taxa de renovação da DACA era antes de U$ 495 e passará para U$ 765. No caso da concessão de cidadania, a taxa passará de U$ 725 para U$ 1.170 – além dos outros custos necessários aos imigrantes no processo administrativo, como a contratação de advogados.

Segundo dados do Bureau of Labor Statistics dos EUA, em 2018, entre a população latina e hispânica nos EUA, a taxa de emprego foi de 66,3%, maior do que a taxa de ocupação entre brancos (62,8%), o que significa que dentre estas duas camadas da população, o desemprego é menor entre os latinos. Em um estudo sobre a situação dos imigrantes no país, concluiu-se que a contribuição desta camada da população na economia é significativa, ainda que, na verdade, aumentar as licenças para trabalho e concessão de cidadania para imigrantes represente incrementos anuais ao PIB, ao passo em que sua exclusão sumária (um dos pilares da retórica trumpista), exporia o país a uma retração no PIB. Em 2010, 29% dos trabalhadores na área de ciência, tecnologia, engenharia e matemática eram profissionais imigrantes – o que desmonta o discurso de que quase todos os postos de trabalho para imigrantes são terceirizados, precários e no setor de serviços pessoais e domésticos.

A proposta de cobrança não parece ser bem aceita entre a comunidade internacional e, atualmente, apenas três países possuem esta prática.

Em sua coleção de disparates, Trump vem recorrendo a medidas judiciais para dificultar o fluxo de imigrantes no país, mas são as formas mais indiretas de endurecimento da política para imigrantes, que talvez causem menos escândalos na mídia, que podem suscetibilizar significativamente uma opinião pública desfavorável à suas práticas, como as condições desumanas dos centros de detenção para imigrantes, a separação compulsória de famílias, crianças dormindo num chão de concreto…Ao passo em que a ICE (o Controle Alfandegário dos EUA) pressiona o Congresso por mais orçamento – ignorando o que fora aprovado no legislativo e detendo muito mais imigrantes do que seu orçamento pode acomodar.

Governo tenta limitar acesso a higiene de crianças detidas

Em agosto deste ano, o governo federal tentou argumentar que não era obrigado a fornecer sabonetes, pastas de dente, água limpa e outros recursos básicos aos imigrantes encarcerados nos centros de detenção – mesmo para as crianças, dado o curto prazo em que os imigrantes, a princípio, deveriam ser mantidos.

Quando uma corte alegou que as autoridades falhavam em garantir condições de saneamento básico e de segurança às crianças detidas, o governo respondeu que segue o Acordo Flores (que rege a detenção de jovens e crianças imigrantes ilegais), argumentando que não lhe é requerido prover “acomodações específicas” e que instalações seguras e higiênicas não pressupunham o fornecimento de itens de higiene pessoal para crianças mantidas sob custódia (que seria no máximo de 20 dias). Para o governo, a requisição destes itens seria uma mudança no acordo.

Os juízes, por sua vez, decidiram que alimentação apropriada, água limpa e acesso a itens como sabonetes e pasta de dente são essenciais para cumprir o que se entende como manutenção da segurança das crianças. Além das condições precárias que mantém crianças, privá-las desses itens gera mais dólares de lucro às operadoras dos centros.

O governo tentou novamente alterar regras do Acordo Flores. Mais tarde, no mesmo mês, anunciou mudanças para que, a partir de então, menores de idade pudessem ficar detidos por tempo indeterminado, alterando o prazo máximo de 20 dias permitido. Mas o judiciário federal impediu indefinidamente que Trump pudesse alterar regras que não seguissem as condições acordadas no Acordo Flores.

Os centros de detenção

Não à toa é comum que se refiram aos centros de detenção como campos de detenção, associando o termo aos campos de concentração. No ano passado o Outras Palavras publicou um artigo que denunciava a estirpe de algumas das operadoras privadas contratadas pela agência federal de aplicação das leis de imigração no país – a ICE: empresas militares e de segurança privadas envolvidas em crimes de violações de direitos humanos e trabalhistas. Mas como mostrou reportagem da UPI, até mesmo uma organização batista, a Baptist Children and Family Services, especializada em prover abrigos de emergência, serviços de adoção e outros “trabalhos humanitários”, como indica seu site, foi flagrada, em 2015, desrespeitando regras para alojamento e cuidados com os imigrantes.

Dentre as irregularidades citadas na reportagem, a fiscalização descobriu que ela descumpria os processos admissionais como exames médicos nas primeiras 48h de custódia, checagem de histórico de funcionários, além de ignorar os padrões de tamanho mínimo das celas e não cumprir os critérios de saneamento básico e de segurança. Neste ano, a agência era responsável por cerca de 10% de todas as crianças desacompanhadas e recebeu U$ 430 milhões do governo federal. Apesar de violar as regras, a organização batista ainda é uma das principais empresas contratadas para operar os centros de detenção para crianças.

A empresa falhou em documentar o processo de transferência das crianças detidas e não checava o histórico de tutores que abrigavam provisoriamente as crianças ou de familiares. Ao que parece, outras empresas também não se preocuparam com os procedimentos obrigatórios. Segundo o Washington Post, em 2016, o governo federal admitiu não saber onde se encontravam cerca de 1.500 crianças que estavam sob custódia. Uma investigação também revelou que mais de duas dúzias de crianças relataram ter sofrido abuso sexual; outras foram obrigadas a passar fome ou a trabalhar por pouco ou mesmo nenhum pagamento. Há suspeitas de tráfico humano: uma investigação anterior já havia flagrado oito jovens imigrantes submetidos à trabalho sob ameaça de morte, após terem sido alocados com traficantes de pessoas.

Em 2017 uma juíza em Los Angeles apontou que as autoridades violam o Acordo Flores, reportando o flagrante de que jovens imigrantes detidos na fronteira dormiam no frio, em celas superlotadas, com comida inadequada e água suja. Os problemas persistiram. Uma reportagem da Time descreveu as condições encontradas nos centros: adultos obrigados a ficar de pé por dias devido à falta de espaço, crianças dormindo no chão de concreto, cerca de 900 pessoas em um espaço feito para acomodar no máximo 125 e a denúncia de uma adolescente hondurenha de ter sido assediada por oficiais. Um pediatra que trabalhou nos centros de detenção afirmou que viu bebês tomando água em mamadeiras não-lavadas, que não há fraldas suficientes e que as crianças são submetidas à temperaturas extremas e luzes ligadas 24h por dia. Isso sem falar nos inúmeros surtos de doenças infecciosas.

Os problemas já acontecem há muitos anos e as operadoras privadas que administram os centros de detenção não sofrem sanções – ao contrário, empresas flagradas cometendo irregularidades renovam seus contratos com o governo federal. De acordo com um relatório do Departamento de Segurança Nacional, foram concedidas permissões para o uso de gás lacrimogêneo e para a circulação de imigrantes que cometeram crimes violentos junto aos outros imigrantes. Por meio de formulários, empresas conseguiram permissão para conduzir revistas íntimas em imigrantes sob sua custódia.

As autoridades falham na fiscalização de garantias mínimas de direitos às pessoas detidas. Mesmo frente a denúncias de abusos de direitos humanos, a ICE ainda afirmou, ano passado, que não se responsabiliza pelos casos de agressão sexual nos centros de detenção. Em quatro anos (2015-2018), a agência aplicou apenas duas multas por má administração.

Mortes em custódia

Durante a administração Trump, já foram registradas 26 mortes em centros de detenção para adultos por condições que poderiam ser evitadas, como doenças causadas por falta de saneamento básico. Enquanto isso, o número diário de imigrantes detidos segue aumentando. Todos são encaminhados para centros mal equipados que não promovem assistência médica adequada. No ano passado soube-se que imigrantes com distúrbios mentais eram confinados em solitária – um deles, inclusive, cometeu suicídio dentro da cela.

Dentre as crianças detidas também ocorreram mortes. Uma mãe e sua bebê de 21 meses dias foram detidas em uma cela com mais 30 pessoas, onde dormiam no chão; após serem encaminhadas para um dos centros de detenção, a criança apresentava sinais de que necessitava de atendimento médico, mas não foram realizados exames e ela foi “medicada” com Vick VapoRub. Após piorar, a bebe foi encaminhada a um hospital, onde morreu por conta de uma infecção respiratória.

De dezembro de 2018 a maio deste ano, cinco crianças morreram após passarem pelos centros de detenção: uma criança de dois anos passou semanas no hospital diagnosticada com pneumonia, mas não resistiu; um jovem de 16 anos faleceu por complicações causadas por uma infecção no lobo frontal; outras crianças por volta de 8 anos de idade também morreram por conta de infecções.

Entre a polêmica e o lucro

Segundo uma reportagem do The Guardian, a política de contratação de operadoras privadas para alojar os imigrantes detidos foi descontinuada pelo Departamento de Justiça com o fim do segundo mandato de Barack Obama, as ações destas empresas mergulharam, mas Trump voltou a lhes conceder a imperdível oportunidade, afinal, um dos pilares de sua campanha é a xenofobia e a promessa de caça aos imigrantes – a média diária de imigrantes detidos cresceu 50% entre 2015 e 2018.

Já são cerca de 53.000 imigrantes espalhados pelos centros de detenção nos EUA. De 2010 a 2018, o gasto federal com estas operações de detenção via ICE, subiu de U$ 1.8 bi para U$ 3.1 bi. Na onda do investimento na detenção de imigrantes, nem sindicatos ficaram de fora. Vinte fundos de aposentadoria de servidores públicos investiam em duas das maiores operadoras do país (GeoGroup e CityCom), somados em cerca de U$ 76 milhões. Questionados, os sindicatos afirmaram seguir índices de mercado de empresas de análise financeira e que a gestão dos fundos é terceirizada – em um dos caso, os representantes foram mais diretos: a motivação é maximizar resultados, não questões sociais.

É peculiar a imagem de um professor da rede pública valorizando seu fundo de pensão às custas do aprisionamento de crianças imigrantes em celas precárias. Segundo a reportagem, mesmo grandes bancos anunciaram cortar os laços com as empresas que administram estes centros, como JP Morgan & Chase e o Bank of América. Governos locais também estão barrando operações com centros de detenção em suas regiões.

Protestos

Em julho deste ano, trabalhadores de uma empresa de móveis, a Wayfair, ao descobrirem um contrato de vendas de móveis para centros de detenção infantil, realizaram uma greve e saíram em protesto. O pedido de centenas de milhares de dólares, inclusive, havia sido realizado pela agência batista mencionada neste artigo. Os diretores da Wayfair responderam a seus trabalhadores que esses “impulsos em busca de mudanças” devem se direcionar às eleições.

Os trabalhadores que se organizaram não eram sindicalizados, não havia organização representativa para protegê-los de ações trabalhistas, retaliações e até mesmo demissão. “Esperamos que atitudes como essa possam estabelecer um precedente e incentivar outros trabalhadores a exigir que seus empregadores parem vender suprimentos para a ICE e a agências similares (…)”, disse um dos organizadores.

No mesmo mês, trabalhadores da Amazon também se posicionaram publicamente contra os contratos da empresa com a ICE. Seu sistema de reconhecimento (Rekognition) facial é utilizado pelas agências federais na busca por imigrantes, por isso trabalhadores saíram em protesto durante um dia especial de vendas na Amazon (o Prime Day) e outras organizações se juntaram a eles. Durante um protesto em uma das livrarias da Amazon, membros da Jews for Racial em Economic Justice foram presos.

Nem mesmo a Google escapou de polêmicas com contratos com a ICE: mais de 700 funcionários assinaram uma carta pública exigindo que a corporação encerre os serviços prestados à agência e se comprometa em não contribuir com clientes envolvidos com abusos de direitos humanos. Pelo menos dois movimentos de trabalhadores de empresas de TI foram criados com o intuito de desencorajar outras empresas a fornecerem serviços para agências como a ICE, o “Tech Wont Build It” e “No Tech for ICE”.

É interessante denotar o aspecto político, internacionalista e “selvagem” (no sentido de não serem conduzidas por um sindicato), destas mobilizações especificas de trabalhadores demandando de suas empresas que não cooperem com uma política endurecida de imigração, ao passo em a administração Trump não mede esforços (leia-se, gastos federais) em sua cruzada contra os imigrantes que buscam um refúgio no país.

Na verdade toda sua política voltada para imigrantes não demonstram somente uma caçada, o tratamento desumano a que são expostos no país, as condições precárias em que são abrigados, os abusos incessantes, a separação compulsória de famílias, mas também uma forma de traumatizar toda uma geração de imigrantes.

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