Por Karina Berardo, no site da Fundação Maurício Grabois:
“A escravidão é uma espécie de lepra social: tem sido muitas vezes abolida pelos legisladores e restaurada pela educação sob aspectos diversos”. A frase é de Luiz Gama, primeiro jornalista negro do Brasil e foi escrita em 1876, mas permanece atual. O baiano Luiz Gama nasceu em 21 de junho de 1830. Aos 10 anos, filho de uma mulher brasileira negra e de um português branco, ele foi escravizado, condição que permaneceu até os 18 anos, quando conseguiu provar que nasceu livre.
Ele conseguiu aprender a ler e a escrever, serviu o Exército e descobriu o ofício da taquigrafia. Ele foi dono de pelo menos três jornais paulistas no século 19: O Cabrião (1866), Diabo Coxo (1864) e O Radical Paulistano (1869), com temáticas abolicionista.
Há raros registros sobre a infância dele, conforme esclarece a escritora Lígia Ferreira, considerada a maior especialista sobre a obra e vida de Gama. Em 1930, uma carta autobiográfica de Luiz Gama foi encontrada. Nos escritos, ele narra a própria trajetória – uma vida repleta de privações, mas também de muita superação. Em 1838, a mãe foi expulsa do Brasil, por ter participado de revoltas contra o regime escravocrata. Gama ficou com o pai que, alguns anos depois, o vendeu para pagar dívidas de jogo.
Contrariando o destino imposto pela escravidão, Luiz Gama foi o primeiro e único escravo brasileiro a conquistar a própria liberdade, tornar-se advogado, jornalista e poeta. Aos 17 anos aprendeu a ler e a escrever sozinho, já que a lei proibia “pessoas de cor” – preta – de frequentarem escolas. Tal feito, por si só, já seria digno de registro, mas como enfatiza Lígia Ferreira, a trajetória de Gama a partir da libertação do silêncio é ainda mais impactante. “Luiz Gama uniu política, jornalismo e literatura, denunciando injustiças e criticando os que ele considerava responsáveis por cometê-las”, destaca.
Como poeta, ele se assumiu como o primeiro autor negro, algo inovador, de acordo com Lígia Ferreira. A especialista lamenta, porém, que a imagem de Luiz Gama foi diminuída, sua importância como representante da literatura brasileira, como porta-voz da liberdade e como integrante ativo do movimento republicano, não foi reconhecida até hoje.
Direito
O juiz negro Fábio Esteves, que atua em Brasília, conta que passou cinco anos na faculdade de Direito e nunca ouviu falar no período universitário, de Luiz Gama. “É resultado da forma como a educação trata a história do povo brasileiro, sobretudo do povo negro”, sentencia. Para o magistrado, isso acontece porque não há, no contexto educacional, o percurso histórico de um povo que representa mais de 50% da população brasileira.
Ele acrescenta que a ausência de referências de intelectuais negros impacta diretamente na construção da sociedade. “O desenvolvimento de um país está ligado ao conhecimento e as ausências precisam ser amplamente refletidas”. O juiz é o primeiro presidente negro da Associação dos Magistrados do Distrito Federal (AMAGIS), apesar de a entidade existir há 50 anos.
O juiz Fábio Esteves acrescenta e alerta que, mesmo quando negros conseguem romper com a “norma” e passam a integrar o meio acadêmico ou jurídico, por exemplo, permanecem estigmatizados. “Existe uma certa ideia de que o negro tem que falar só de racismo, como se ele não pudesse ou não soubesse falar de outros assuntos, o que não é verdade”.
No dia a dia, dentro do Tribunal do Júri de Brasília, onde atua, Fábio já foi alvo de comentários preconceituosos. Porém, para ele o que incomoda mesmo é perceber a reprodução do preconceito no sistema judiciário. “Isso gera uma deturpação na análise das questões do sistema penal, que é estruturado racialmente”, adverte.
Jornalismo e educação
“Não fui apresentada a Luiz Gama na graduação, não me recordo de aprender sobre nenhum outro escritor negro e nem de discutir questões raciais durante o curso”. A ausência de intelectuais negros também se fez presente na vida acadêmica da jornalista e escritora pernambucana, Fabiana Moraes.
Essa realidade parecia ser percebida por todos como algo natural, mas não para Fabiana que, aliás, era uma das únicas alunas negras entre os mais de 40 estudantes do curso de jornalismo na Universidade Federal de Pernambuco nos anos 90. Segundo ela, naturalizar a predominância de brancos nos espaços acadêmicos e de negros em atividades braçais é consequência direta do racismo e do sistema escravista. “A reflexão ainda não está associada a essa cor”, lamenta.
Em igual sentido, Cinthia Gomes, pesquisadora da Universidade de São Paulo e integrante da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira), afirma que o apagamento da produção intelectual do negro no passado e no presente define o que chama de racismo epistemológico. Para a pesquisadora, os intelectuais negros tiveram e ainda têm seus feitos invisibilizados de maneira proposital. “A academia não tem noção da magnitude da importância de Gama para o desdobramento da história do país e para seus contemporâneos”.
Mas, para a jornalista Noemia Colonna, a falta de reconhecimento da produção de saberes dos negros e negras nem sempre é “por maldade” ou de propósito. É, na verdade, reflexo do racismo estrutural que permeia toda a sociedade que, segundo Noemia, ainda vive sobre influência de um modelo de educação eurocêntrico. “A nossa universidade é eurocentrada e pessoas fora desse padrão não são consideradas dignas de serem estudadas”, critica.
Ela vai além e afirma que não basta achar ou ter opiniões. Diz que é preciso olhar os números e questiona: qual a proporção de professores e professoras negras nas universidades? A reposta está no último Censo do Ensino Superior realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais em 2017: são apenas 16%. Para a jornalista, essa realidade tão desigual só vai mudar quando as narrativas deixarem de ser predominantemente brancas. “É preciso se desfazer da roupagem colonial que fomos obrigados a vestir”, finaliza.
Resistência e Memória
Para o servidor público e advogado negro Marivaldo Pereira, não reconhecer as lutas do povo negro contra a escravidão no passado e contra opressão no presente é ainda mais grave do que a falta de representatividade. “Não temos espaço na história oficial, nosso sofrimento ainda importa muito pouco para a sociedade”, denuncia.
Ele acrescenta que Luiz Gama não foi o único “apagado” pela narrativa ainda predominante no Brasil. As lutas travadas por Luiza Mahin, mãe de Gama, Zumbi dos Palmares, Dandara, José do Patrocínio, Carolina de Jesus e Marielle Franco, para citar alguns exemplos, também não são lembradas quando se fala da conquista da liberdade e da ocupação de espaços historicamente ocupados por brancos.
Aliás, foi com indignação e protesto que Marivaldo e o Movimento Negro (#VidasNegrasImportam) reagiram diante da homenagem prestada à Princesa Isabel em maio deste ano e, principalmente, do discurso da deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP) em plenário na Câmara dos Deputados. Ela disse: “Lembrando os senhores que, se a Marielle foi uma mulher livre, foi graças à Princesa Isabel”.
Ana Flávia Magalhães Pinto, doutora em História na UNB, explica que a luta pelo fim da escravidão, ao contrário do que ainda prevalece nos livros didáticos e nos discursos políticos, pertence aos negros – e não aos políticos brancos do Brasil do século 19. Marivaldo Pereira complementa: foram as constantes fugas, revoltas e reações do povo negro à violência das quais eram vítimas que inviabilizaram o sistema escravocrata. “A atitude da princesa Isabel está muito longe de ser um ato de humanidade, de bondade ou de reconhecimento da condição humana de nós, negros”, assegura.
De acordo com o relatório do Atlas da Violência de 2019, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 75,5% das vítimas de homicídios no Brasil foram de indivíduos negros. As mortes de pessoas negras, segundo Marivaldo, podem aumentar, pois para ele está em curso um “verdadeiro extermínio” da juventude negra. “Vivemos sob um governo liderado por um presidente declaradamente racista. Mais do que nunca, precisamos estar unidos para denunciar e resistir a tudo isso, e gritar para que parem de nos matar”, aponta.
20 de novembro
O 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, é muito mais do que o resgate da data da morte de Zumbi dos Palmares. Irapuã Santana, pesquisador e procurador do município de Mauá (SP) explica que, ao longo da história do Brasil, a figura do negro sempre foi associada a posição de subalterno.
Entretanto, para ele essa não é a realidade – o que persiste até hoje é a visão racista da sociedade que segue tentando invisibilizar os feitos e conquistas dos negros do passado e do presente. “O dia da Consciência Negra se trata de resgatar o protagonismo negro dentro da nossa própria história. O dia é um contraponto ao 13 de Maio.”
Ele conseguiu aprender a ler e a escrever, serviu o Exército e descobriu o ofício da taquigrafia. Ele foi dono de pelo menos três jornais paulistas no século 19: O Cabrião (1866), Diabo Coxo (1864) e O Radical Paulistano (1869), com temáticas abolicionista.
Há raros registros sobre a infância dele, conforme esclarece a escritora Lígia Ferreira, considerada a maior especialista sobre a obra e vida de Gama. Em 1930, uma carta autobiográfica de Luiz Gama foi encontrada. Nos escritos, ele narra a própria trajetória – uma vida repleta de privações, mas também de muita superação. Em 1838, a mãe foi expulsa do Brasil, por ter participado de revoltas contra o regime escravocrata. Gama ficou com o pai que, alguns anos depois, o vendeu para pagar dívidas de jogo.
Contrariando o destino imposto pela escravidão, Luiz Gama foi o primeiro e único escravo brasileiro a conquistar a própria liberdade, tornar-se advogado, jornalista e poeta. Aos 17 anos aprendeu a ler e a escrever sozinho, já que a lei proibia “pessoas de cor” – preta – de frequentarem escolas. Tal feito, por si só, já seria digno de registro, mas como enfatiza Lígia Ferreira, a trajetória de Gama a partir da libertação do silêncio é ainda mais impactante. “Luiz Gama uniu política, jornalismo e literatura, denunciando injustiças e criticando os que ele considerava responsáveis por cometê-las”, destaca.
Como poeta, ele se assumiu como o primeiro autor negro, algo inovador, de acordo com Lígia Ferreira. A especialista lamenta, porém, que a imagem de Luiz Gama foi diminuída, sua importância como representante da literatura brasileira, como porta-voz da liberdade e como integrante ativo do movimento republicano, não foi reconhecida até hoje.
Direito
O juiz negro Fábio Esteves, que atua em Brasília, conta que passou cinco anos na faculdade de Direito e nunca ouviu falar no período universitário, de Luiz Gama. “É resultado da forma como a educação trata a história do povo brasileiro, sobretudo do povo negro”, sentencia. Para o magistrado, isso acontece porque não há, no contexto educacional, o percurso histórico de um povo que representa mais de 50% da população brasileira.
Ele acrescenta que a ausência de referências de intelectuais negros impacta diretamente na construção da sociedade. “O desenvolvimento de um país está ligado ao conhecimento e as ausências precisam ser amplamente refletidas”. O juiz é o primeiro presidente negro da Associação dos Magistrados do Distrito Federal (AMAGIS), apesar de a entidade existir há 50 anos.
O juiz Fábio Esteves acrescenta e alerta que, mesmo quando negros conseguem romper com a “norma” e passam a integrar o meio acadêmico ou jurídico, por exemplo, permanecem estigmatizados. “Existe uma certa ideia de que o negro tem que falar só de racismo, como se ele não pudesse ou não soubesse falar de outros assuntos, o que não é verdade”.
No dia a dia, dentro do Tribunal do Júri de Brasília, onde atua, Fábio já foi alvo de comentários preconceituosos. Porém, para ele o que incomoda mesmo é perceber a reprodução do preconceito no sistema judiciário. “Isso gera uma deturpação na análise das questões do sistema penal, que é estruturado racialmente”, adverte.
Jornalismo e educação
“Não fui apresentada a Luiz Gama na graduação, não me recordo de aprender sobre nenhum outro escritor negro e nem de discutir questões raciais durante o curso”. A ausência de intelectuais negros também se fez presente na vida acadêmica da jornalista e escritora pernambucana, Fabiana Moraes.
Essa realidade parecia ser percebida por todos como algo natural, mas não para Fabiana que, aliás, era uma das únicas alunas negras entre os mais de 40 estudantes do curso de jornalismo na Universidade Federal de Pernambuco nos anos 90. Segundo ela, naturalizar a predominância de brancos nos espaços acadêmicos e de negros em atividades braçais é consequência direta do racismo e do sistema escravista. “A reflexão ainda não está associada a essa cor”, lamenta.
Em igual sentido, Cinthia Gomes, pesquisadora da Universidade de São Paulo e integrante da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira), afirma que o apagamento da produção intelectual do negro no passado e no presente define o que chama de racismo epistemológico. Para a pesquisadora, os intelectuais negros tiveram e ainda têm seus feitos invisibilizados de maneira proposital. “A academia não tem noção da magnitude da importância de Gama para o desdobramento da história do país e para seus contemporâneos”.
Mas, para a jornalista Noemia Colonna, a falta de reconhecimento da produção de saberes dos negros e negras nem sempre é “por maldade” ou de propósito. É, na verdade, reflexo do racismo estrutural que permeia toda a sociedade que, segundo Noemia, ainda vive sobre influência de um modelo de educação eurocêntrico. “A nossa universidade é eurocentrada e pessoas fora desse padrão não são consideradas dignas de serem estudadas”, critica.
Ela vai além e afirma que não basta achar ou ter opiniões. Diz que é preciso olhar os números e questiona: qual a proporção de professores e professoras negras nas universidades? A reposta está no último Censo do Ensino Superior realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais em 2017: são apenas 16%. Para a jornalista, essa realidade tão desigual só vai mudar quando as narrativas deixarem de ser predominantemente brancas. “É preciso se desfazer da roupagem colonial que fomos obrigados a vestir”, finaliza.
Resistência e Memória
Para o servidor público e advogado negro Marivaldo Pereira, não reconhecer as lutas do povo negro contra a escravidão no passado e contra opressão no presente é ainda mais grave do que a falta de representatividade. “Não temos espaço na história oficial, nosso sofrimento ainda importa muito pouco para a sociedade”, denuncia.
Ele acrescenta que Luiz Gama não foi o único “apagado” pela narrativa ainda predominante no Brasil. As lutas travadas por Luiza Mahin, mãe de Gama, Zumbi dos Palmares, Dandara, José do Patrocínio, Carolina de Jesus e Marielle Franco, para citar alguns exemplos, também não são lembradas quando se fala da conquista da liberdade e da ocupação de espaços historicamente ocupados por brancos.
Aliás, foi com indignação e protesto que Marivaldo e o Movimento Negro (#VidasNegrasImportam) reagiram diante da homenagem prestada à Princesa Isabel em maio deste ano e, principalmente, do discurso da deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP) em plenário na Câmara dos Deputados. Ela disse: “Lembrando os senhores que, se a Marielle foi uma mulher livre, foi graças à Princesa Isabel”.
Ana Flávia Magalhães Pinto, doutora em História na UNB, explica que a luta pelo fim da escravidão, ao contrário do que ainda prevalece nos livros didáticos e nos discursos políticos, pertence aos negros – e não aos políticos brancos do Brasil do século 19. Marivaldo Pereira complementa: foram as constantes fugas, revoltas e reações do povo negro à violência das quais eram vítimas que inviabilizaram o sistema escravocrata. “A atitude da princesa Isabel está muito longe de ser um ato de humanidade, de bondade ou de reconhecimento da condição humana de nós, negros”, assegura.
De acordo com o relatório do Atlas da Violência de 2019, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 75,5% das vítimas de homicídios no Brasil foram de indivíduos negros. As mortes de pessoas negras, segundo Marivaldo, podem aumentar, pois para ele está em curso um “verdadeiro extermínio” da juventude negra. “Vivemos sob um governo liderado por um presidente declaradamente racista. Mais do que nunca, precisamos estar unidos para denunciar e resistir a tudo isso, e gritar para que parem de nos matar”, aponta.
20 de novembro
O 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, é muito mais do que o resgate da data da morte de Zumbi dos Palmares. Irapuã Santana, pesquisador e procurador do município de Mauá (SP) explica que, ao longo da história do Brasil, a figura do negro sempre foi associada a posição de subalterno.
Entretanto, para ele essa não é a realidade – o que persiste até hoje é a visão racista da sociedade que segue tentando invisibilizar os feitos e conquistas dos negros do passado e do presente. “O dia da Consciência Negra se trata de resgatar o protagonismo negro dentro da nossa própria história. O dia é um contraponto ao 13 de Maio.”
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