Como foi que o mundo das fake news avassalou o discernimento de nossa época, a ponto de instaurar uma espécie de servidão mental na qual o senso comum se submete à afirmação e a sua negativa com a mesma passividade, não raro, guiado pelo malabarismo cínico do mesmo emissor?
O papel da mentira na política assumiu um espaço proeminente, como bem sabe a sociedade brasileira, graças ao novo arsenal tecnológico capaz de adorna-la com atributos da verdade manipulando friamente o discernimento social, sobretudo nos escrutínios eleitorais.
O ambiente de relativização factual criou assim uma espécie de poder emergente a impor sua supremacia aos demais.
Nesse novo maniqueísmo em que se acredita e se duvida de tudo, ao mesmo tempo e com igual intensidade, o discernimento crítico se recolhe a um estado de torpor.
A participação da Razão nas tomadas de decisões individuais e coletivas subsiste nas franjas da sociedade, atrofiando-se o espaço do esclarecimento indissociável da prática argumentativa e da elaboração histórica do conflito social.
Em que, afinal, amparar-se para arguir aquilo que nos chega na forma de massas avassaladoras de pós-verdades escritas, ditas, filmadas, fotografadas, endossadas, quantificadas e replicadas exaustivamente 24 horas por dia?
Todos os poderes –Legislativo, Executivo, Judiciário, Mídia — mas também a ciência e a espiritualidade perdem resiliência e identidade nessa teia elástica que reprocessa o mundo como um solvente de relativização suprimindo as divisas do vivido, do sentido, do presente e do passado. Vale dizer, as raízes da própria identidade.
Tome-se os destampatórios regulares do atual ocupante do Planalto.
Segue o modelo político dominante: o que se afirmara ontem pode ser revogado hoje e o oposto restabelecido amanhã.
Nesse roldão, um porteiro experiente pode ser acusado de ‘confundir’ o número 65 por 58. Embora o contexto narrativo lhe dê razão, será carimbado como mentiroso por ágeis representantes do judiciário, municiadas de laudos que, sugestivamente, homologam a pós-verdade sancionada por perícia de igual extração.
A tradicional manipulação da verdade e da mentira na política não mudou de patamar apenas no Brasil.
Seu uso e abuso é corrente na guerra midiática do poder nos EUA de Trump, mas também na Argentina de Macri, no Chile de Piñerochet, na Rússia de Putin, no cabuloso mundo da monarquia árabe etc
O peso histórico assumido no Brasil, no entanto, distingue-se pelas características de uma democracia em que a mídia convencional sempre exerceu, avant-la- lettre, um grau de manipulação política equivalente ao das fake news . Além disso, a penetração evangélica neopentecostal --dominante na população pobre das periferias-- tornou avassaladora a receptividade à mentira política avalizada por Deus (ouça Boaventura de Sousa Santos na Rádio Carta Maior – clique aqui).
O desfecho da nebulosa disputa presidencial de 2018 fez do país, assim, um laboratório avançado do exercício do poder por exemplar típico desse novo ambiente indiviso entre ficção e realidade.
O custo social e subjetivo é o que se paga em sobressaltos recorrentes, polarizadores e ao mesmo tempo fragmentadores dos direitos e consensos duramente acumulados e sedimentados na Carta de 1988.
O que irá sobrar ao espaço do discernimento crítico quando o desenvolvimento das ferramentas de IA (Inteligência Artificial) viabilizarem aquilo que o historiador e filósofo da Universidade de Jerusalém, Yuval Harari, chama de “hackear o cérebro e os sentidos dos seres humanos” (Valor), ‘compreendendo-os antes e melhor que eles mesmos’?
O mundo das fake news, portanto, poderá figurar apenas como um inocente cálice de Porto no pantagruélico porre de pós-verdade em curso.
Transitar nesse ambiente e devolver a história aos sujeitos de carne, osso e classe requer enxergar além da neblina da rendição ao maquinismo reluzente.
A tentação de se atribuir o amortecimento dos sentidos e da democracia a um vilão tecnológico repete no campo da Razão aquilo que se verifica no universo do trabalho, em que a uberização e a precariedade das formas de ocupação e renda nos são informados como colaterais inexoráveis do avanço tecno-científico, desprovido das relações de produção e de poder que o impulsionam e refletem.
Na realidade, as coisas são menos avulsas do que sugere e versão dominante.
O desenraizamento social e subjetivo promovido pela precarização do trabalho semeou o ressentimento, a perda de sentido, o isolamento e a infantilização narrativa, adestrando os sentidos na sedução pelo Guia, o Pai, o Pastor , o Mito que as fake news e os sistemas eleitorais operados à distância cuidarão de consagrar.
O conjunto homologa o reducionismo alienante que o martelete das contraposições irredutíveis --bons e maus, corruptos e moralistas, puros e sub-humanos...-- massificará com requintes de crueldade e vulgaridade sabidos.
Para quem vê exagero há que se recordar: nos anos 30, uma das sociedades mais sofisticadas do planeta, onde o capitalismo atingiria seu pináculo tecno-científico, submetida a condições de privação material e subjetiva decorrentes da guerra intercapitalista, aderiu em massa a um projeto regressivo de restauração nacional de arcabouço totalitário.
Essa ruptura arrastou toda a humanidade.
Desde então, o Horror respira no ovo chocado pela intersecção pura entre tecnologia, monopólios capitalistas e finanças globalizadas, em processos nos quais a acumulação da riqueza é desenfreadamente perseguida, e alcançada, em detrimento da emancipação social e subjetiva da sociedade.
Para ajudar a entender esse fenômeno, mas não só ele, a série Clássicos em Podcast, iniciada pela Rádio Carta Maior em outubro, com o filósofo Herbert Marcuse --apresentado por Márcio Pochmann, traz agora a filósofa e escritora, doutora pela USP e pela École des Hautes Études de Paris, Olgária Matos.
Olgária nos fala de uma especialista nesse eclipse entre a barbárie e a civilização que passou a nos espreitar permanentemente: Hannah Arendt.
A pensadora judia alemã enxergou no desenraizamento social e subjetivo, intrínseco ao capitalismo totalizante do nosso tempo, a estufa de algo desconcertante: a banalização do mal
A expressão remonta à Operação Reinhard, um plano racionalmente planejado, implementado e gerido em escala industrial pelo Estado nazista para permitir a matança indiscriminada de judeus, comunistas, socialistas, ciganos, eslavos, velhos, prostitutas, deficientes e homossexuais --enfim, o ‘Untermenschen’, os seres sub-humanos, inerentemente descartáveis.
Muitas vezes confundido como indulgente, o conceito na verdade encerra uma alarmante advertência sobre as relações sistêmicas que nos envolvem e condicionam a existência no século XXI
A notícia terrível trazida por Hannh Arendt é a de que a barbárie não necessita mais de seres abjetos para se reproduzir em nosso mundo.
Sua possibilidade é intrínseca ao sistema.
Adolf Eichmann, que dirigiu os maiores campos de extermínio nazistas não era um personagem doentio, anunciou algo assustadoramente a pensadora judia, que cobriu seu julgamento em Israel, 15 anos após a derrota nazista.
O que ele evidenciava era algo pior que isso, anunciou Arendt.
Eichmann era um gestor eficiente, um ‘CEO’ da industrialização da morte, que tinha como meta e planejamento entregar uma solução final para a questão judia na Europa.
O ambiente corporativo global comporta-se atualmente diante dos valores da civilização –e das ameaças ambientais, por exemplo-- com o mesmo distanciamento gerencial dos ‘CEOs’ de Auschwitz-Birkenau.
Metas de desempenho são cumpridas; os bônus são viabilizados e a fatia dos rentistas é entregue na forma de dividendos –isentos, no Brasil do arrocho fiscal.
O custo para a sociedade pode ser um passo adiante no percurso rumo à barbárie.
Arendt escavou a origem dessas relações sistêmicas nas quais os indivíduos e instituições são reduzidos a dentes do maquinismo azeitado em vazio ético.
É aí que se inala, se emite e se replica a banalidade do mal. Muitas vezes travestida em fake news.
Alto lá, porém: a dialética não morreu em Auschwitz-Birkenau, nem se rendeu a Wall Street.
O sangrento desfile de imagens da repressão chilena –replicadas digitalmente pelos manifestantes que lutam nas ruas do país vendido como paradigma de sucesso do que se deseja replicar aqui, desautoriza o fatalismo tecnológico e a prostração histórica.
A banalidade do mal tem um ponto de saturação.
Esse ponto reside na rebelião da esperança, em busca do bem comum, diz a rebelião chilena.
Ouçamos a professora Olgária Matos e Hannah Arendt nesta segundo capítulo da série Clássicos em Podcast da webRádio Carta Maior (clique aqui).
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